Capitalismo de Estado e nacional-desenvolvimentismo no Brasil – Parte II
No primeiro texto desta série de cinco artigos, discutimos as diferentes formas de capitalismo de Estado a partir das formulações de Lenin, Stalin e Mao Tsé-tung, e propusemos a existência de uma possível quarta forma, expressa no nacional-desenvolvimentismo brasileiro.
Nesta segunda parte, examinamos como a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, operou a mais profunda transformação da história do Brasil, com a criação do Estado nacional moderno, a industrialização sob controle estatal e a implementação de uma legislação trabalhista avançada — elementos que configuram uma experiência concreta de capitalismo de Estado.
Transformações realizadas pela Revolução de 1930
Cerca de uma década depois da formulação de Lenin, o Brasil empreenderia uma revolução liderada por Getúlio Vargas, conhecida como Revolução de 1930, que operaria a transformação mais profunda da nossa história: criou o Estado nacional moderno, promoveu a transformação de uma economia primário-exportadora numa economia urbano-industrial moderna sob controle nacional, implementou uma das legislações trabalhistas mais avançadas do mundo, utilizou o Estado como principal alavanca do desenvolvimento, inclusive adotando o I Plano Quinquenal1, precisamente quando a URSS comemorava a espetacular vitória de seus dois primeiros Planos Quinquenais, de 1928 a 1938.
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Indústria pesada
Para sustentar o processo de industrialização sob controle nacional e movido pela concepção nacional-desenvolvimentista, Getúlio deflagrou a implantação da indústria pesada ao criar a Companhia Siderúrgica Nacional, a Fábrica Nacional de Motores, a Companhia Nacional de Álcalis, a Companhia Vale do Rio Doce, a Hidrelétrica de Paulo Afonso – o setor I da economia, na acepção de Marx (1977). No período, também foi conquistada uma das legislações trabalhistas mais avançadas do planeta mediante a instituição, em 1943, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), conquista que se manteve até recentemente, quando foi emasculada por um governo-tampão e outro de natureza fascista.
Em seu terceiro governo, na primeira metade dos anos 1950, Getúlio consolidou a indústria pesada, com destaque para a criação da Petrobrás, além de haver tentado criar a Eletrobrás2. Criou o CNPq para fomentar a ciência e a tecnologia e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) para financiar o investimento industrial3. Enviou um projeto de lei ao Congresso Nacional para limitar a remessa de lucros para o exterior (VARGAS apud SOUZA, 2007, p. 22).
Conquistas fundamentais
Destacam-se duas conquistas fundamentais do getulismo: a industrialização sob controle nacional e uma das mais avançadas legislações trabalhistas do mundo. Entre as características mais importantes do processo de industrialização getulista, destacam-se controle nacional sobre a economia nacional, mercado interno puxado pelo poder de compra do salário, ação do Estado na economia e monopólio sob comando do Estado, reservando a área concorrencial para a burguesa nacional.
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Implantou-se nesse período a indústria de bens de consumo popular, o setor IIa da economia, basicamente sob controle da burguesia nacional, ao mesmo tempo em que se começou a implementar a indústria pesada e de meios de produção, o setor I, sob controle do Estado.
Burguesia industrial e trabalhadores
O período getulista foi o momento mais importante da revolução brasileira. Na relação de forças entre, de um lado, o imperialismo, a oligarquia cafeeira e as oligarquias regionais pré-capitalistas e latifundiárias e, de outro, a nascente burguesia industrial, os trabalhadores e as camadas médias urbanas, Getúlio adotou o programa que interessava a estes últimos. Inquestionavelmente, a Revolução de 30 realizou o mais profundo processo de transformação no país.
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Embora a correlação de forças de então pudesse favorecer ao reacionarismo das oligarquias nacionais e estrangeiras, a crise de 1929 trouxe à tona o conjunto de contradições do capitalismo dependente brasileiro, possibilitando Getúlio chegar ao poder e estabelecer um novo pacto, fundamentado numa aliança entre o Estado, a burguesia industrial nacional e os trabalhadores, mudando a correlação de forças a favor do desenvolvimento nacional independente. Na verdade, criou o Estado nacional brasileiro, construindo uma sorte de capitalismo de Estado no Brasil.
Na terceira parte desta série, analisamos a concepção nacional-desenvolvimentista de Getúlio Vargas. A partir de sua experiência de governo, Vargas formulou uma doutrina baseada na centralidade do trabalho, na independência econômica e no papel ativo do Estado como planejador e produtor. O texto também aborda sua relação com os trabalhadores, sua visão sobre o imperialismo e as raízes do projeto que seria retomado por João Goulart.
Notas:
1Isto está claro em vários trechos de seu diário no período de fins de 1938 e começo de 1939. Vejamos a anotação feita por ele no diário no dia 3 de janeiro de 1939: “Despacho com a Agricultura e Exterior (…). Recebi depois os ministros do Exterior e Fazenda, com os quais tratei da organização do orçamento extraordinário para a execução do Plano Quinquenal” (VARGAS, Celina; SOARES, Leda (Orgs). Getúlio Vargas – Diário. vol II, 1937/1942, Rio de Janeiro, Siciliano/FGV, 1995, p.189).
2Encaminhou um projeto para o Congresso, mas só seria aprovado dez anos depois e seria sancionado por João Goulart.
3Além disso, “através da Instrução 70 da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) e da reforma cambial de 1953, o governo buscou encarecer os bens de capital importados a fim de estimular sua produção interna” (SOUZA, 2007, p. 23).
Nilson Araújo de Souza é pesquisador do GP 1: Desenvolvimento nacional e Socialismo – Economista, Mestre em Economia pela UFRGS, Doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico (UNAM), com pós-Doutorado em Economia pela USP; professor aposentado pela UFMS, professor visitante voluntário do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina da UNILA; membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB, Diretor da Fundação Maurício Grabois e do Instituto Claudio Campos, presidente do Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo; autor de vários livros, antigos e ensaios sobre economia brasileira, latino-americana e mundial, destacando-se “Economia brasileira contemporânea – de Getúlio a Lula” e “Economia internacional contemporânea – da depressão de 1929 ao colapso financeiro de 2008”, além de haver organizado vários livros com diversos autores.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.