Logo Grabois Logo Grabois

Leia a última edição Logo Grabois

Inscreva-se para receber nossa Newsletter

    Cultura

    Futuro da Igreja e peso do passado: o Conclave após Francisco

    Filmes e séries ajudam a refletir sobre o papel histórico e político da Igreja Católica diante do Conclave nesta quarta-feira (7)

    POR: Carolina Maria Ruy

    7 min de leitura

    Cardeais adentram a Basílica de São Pedro para a Missa Exequial do Papa Francisco, no Vaticano, em 24 de abril de 2025.
📍 Átrio da Basílica de São Pedro, Praça de São Pedro. Foto: Ricardo Stuckert / PR
    Cardeais adentram a Basílica de São Pedro para a Missa Exequial do Papa Francisco, no Vaticano, em 24 de abril de 2025. 📍 Átrio da Basílica de São Pedro, Praça de São Pedro. Foto: Ricardo Stuckert / PR

    A cultura e os dilemas da história da Igreja Católica – A Igreja Católica exerceu um protagonismo político marcante entre os séculos VII e XV. Esse domínio foi crucial para a consolidação do que chamamos de mundo ocidental, impondo padrões de conduta, crenças e uma rígida definição dos papéis sociais. Por meio de seus dogmas, colaborou para a construção de impérios e legitimou, com a disseminação do medo e de teorias sobre a alma e a salvação, invasões, dominação violenta de povos, processos de catequização, escravização e diversas formas de abuso.

    Por outro lado, discussões em seu interior também deram origem a ideias humanistas, como aquelas que inspiraram a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base.

    Em seus 12 anos de pontificado, o argentino Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, conseguiu renovar a imagem da Igreja, abalada por décadas de conservadorismo, repressão, escândalos sexuais e financeiros, além de perseguições políticas. Francisco não mudou a instituição, mas lhe deu ares mais leves, humanitários e mais graça.

    Leia mais: Entenda o que realmente Marx pensa sobre religião

    No momento em que escrevo, sua morte, em 21 de abril de 2025, ainda repercute, e um novo Conclave tem início nesta quarta-feira (7) — o quinto nos últimos 50 anos. Embora cinco papas em meio século pareçam muito para quem os testemunhou, trata-se de um intervalo breve diante da longa trajetória da instituição.

    Uma história marcada por debates filosóficos, que também ecoam na cultura. Desde tempos imemoriais, a religião é tema recorrente nas artes — teatro, música, literatura, pintura e cinema —, não como mera fantasia, mas como veículo de questionamentos e reflexões que renovam, com o tempo, a compreensão da fé e da espiritualidade.

    O filme Irmão Sol, Irmã Lua, de Franco Zeffirelli (1972), por exemplo, apresenta um dilema moral quando Francisco de Assis, despojado de bens materiais, confronta a opulência da Igreja ao chegar a Roma e ser recebido pelo Papa Inocêncio II (até o ano de 1143).

    “Não armazenem seu tesouro aqui na Terra. Não podem servir a Deus e ao dinheiro”, diz Francisco de Assis.

    O Papa, por sua vez, responde:

    “Descobri a minha vocação há muito tempo, mas o entusiasmo se perdeu com as responsabilidades da administração. Estamos cercados de riqueza e poder. E você, em sua pobreza, me causa vergonha.”

    Cartaz do filme Irmão Sol, Irmã Lua, de Franco Zeffirelli (1972). Imagem: Reprodução

    A narrativa se desenrola na transição da Alta para a Baixa Idade Média, período que já sinalizava o surgimento da burguesia — refletido na família de Francisco — e questionamentos ao poder clerical, que, no entanto, ainda perduraria por quase cinco séculos.

    Esse cenário de transformações — marcado pelo declínio da autoridade absoluta da Igreja e da monarquia — é retratado na série Os Bórgias, de Neil Jordan (2011), centrada na figura de Rodrigo Bórgia, o Papa Alexandre VI (falecido em 1503).

    A série aborda eventos históricos como a peste, o fato de o Papa constituir família — incluindo amantes e filhos —, o papel de Lucrécia Bórgia, o uso político dos casamentos e a presença de Maquiavel, cuja obra nasce das mudanças políticas daquele período e inaugura uma nova concepção de poder. É um contexto que representa o surgimento de uma nova classe dirigente, que desbanca a hegemonia eclesiástica e real.

    Já no século XX, Karol Józef Wojtyła, eleito Papa em outubro de 1978, adotando o nome João Paulo II, imprimiu ao cargo um inédito perfil midiático e voltado à cultura de massa.

    Anticomunista, João Paulo II liderou a Igreja nos anos finais da Guerra Fria e enfraqueceu grupos progressistas, o que afetou diretamente organizações populares e a militância de esquerda, como as Juventudes Católicas, a JOC, a JUC, a Ação Católica Operária e os padres operários, entre outros.

    A crítica ao afastamento entre o pontífice e o povo pobre é retratada na comédia O Banheiro do Papa, de Enrique Fernández e César Charlone (2008), que mostra a expectativa de uma família da cidade uruguaia de Melo, próxima à fronteira com o Brasil, durante a visita de João Paulo II.

    A população pobre sonha com lucros vindos dos turistas, mas a realidade frustra as esperanças: ninguém consome nada, e o esforço se desfaz com a brevidade da visita. É uma história que mostra a contradição entre a pompa da Igreja e as carências do povo.

    Atualmente, a instituição está longe de ter a influência que exerceu até o século XV. No entanto, mesmo diante das tensões entre tradição e modernidade, a Igreja manteve suas bases e continua capaz de mobilizar multidões.

    Cartaz do filme Conclave (2024). Direção: Edward Berger. Obra ganhou como melhor roteiro adaptado no Oscar 2025. Foto: Reprodução

    Esse embate entre passado e presente é tematizado no filme Conclave, de Edward Berger (2024), cujo enredo gira em torno da eleição de um novo Papa. Um momento emblemático ocorre quando o cardeal de Cabul, o mexicano Vincent, afirma:

    “Nos últimos dias, temos demonstrado ser um grupo de homens pequenos, mesquinhos. Interessados somente em nós mesmos, em Roma, na eleição e no poder.”

    Sua fala ecoa a do cardeal Lawrence (Ralph Fiennes), que pondera sobre a importância da dúvida:

    “A certeza é inimiga da tolerância. Mesmo Cristo não estava certo no fim: ‘Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?’ Rezemos para que Deus nos conceda um Papa que duvide. Que Ele nos conceda um Papa que peque, peça perdão — e siga em frente.”

    Vincent e Lawrence apontam para a urgência de reformas, o reconhecimento da fragilidade humana e, ao mesmo tempo, o resgate do princípio fundamental da fé: a comunhão e o crescimento espiritual.

    As quatro obras citadas — Irmão Sol, Irmã Lua, Os Bórgias, O Banheiro do Papa e Conclave — promovem reflexões sobre a história, o poder e os dilemas da Igreja Católica.

    Um debate que se impõe a partir do legado do Papa Francisco, cuja trajetória resgata a memória de lideranças religiosas inspiradoras como Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno e, atualmente, Padre Júlio Lancellotti.

    Assim, ressalto não apenas o entrelaçamento entre cultura e religiosidade, mas também, a despeito do reacionarismo que atravessa a história da Igreja, o contraditório deste debate: as ideias e ações humanistas que influenciaram a formação de líderes e movimentos progressistas, como, no Brasil, as Ligas Camponesas, o MST, o PT e o PCdoB.

    Veja debate Contradições no seio do povo e os valores em disputa pelas religiosidades

     

    Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical, também coordena o Grupo de Pesquisa Cultura & Sociedade da Fundação Maurício Grabois.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.