O mito de democracia racial no Brasil é um discurso ideológico para negar direitos à população negra, para contestar, naturalizar e evitar punir o racismo. Ele sempre esteve assentado na tese da passividade dos escravizados. Durante muito tempo, esta ideia foi hegemônica no pensamento social predominante. Contudo, a partir da obra de Clóvis Moura, caracterizando o racismo estrutural como elemento fundante do Estado brasileiro, iniciou-se um processo de desmonte desta tese e, posteriormente, passou-se a existir uma contestação aberta ao mito de democracia racial e por políticas de reparação.
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Em Rebeliões da Senzala, livro de estreia de Clóvis Moura, publicado em 1959, ele registra, pela primeira vez, a questão de classe e raça como dois quesitos inseparáveis para explicar o processo de escravidão e do racismo estrutural no país. Seu pressuposto básico é o papel ativo do negro na resistência à escravidão. Contudo, ele reconhece as limitações do processo:
“Com exceção da experiência de conteúdo controvertido do Haiti, nenhum movimento de escravos conseguiu estabelecer Estado próprio. O papel dessas lutas foi sempre outro: solapar as bases materiais e consequentemente as relações de trabalho existentes entre senhor e escravo”.
Entretanto, Clóvis Moura continua:
“O escravo era o esqueleto que sustentava os músculos e a carne da sociedade escravista, porque era o produtor da riqueza geral, através do seu trabalho.” (Rebeliões da senzala. Introdução. LECH Ed. 3ª Edição. 1981)
A produção intelectual de Clóvis Moura, desde o início, se constituiu sobre dois aspectos centrais: a formulação teórica e a crítica às ideias conservadoras sobre a escravidão. Do ponto de vista da formulação, o que é inovador na sua obra é a utilização do marxismo como método de análise da sociedade escravocrata. Para ele, não tem como analisar este período sem levar em conta as contradições de classe entre senhor e escravo, ainda que o escravizado estivesse despossuído das condições subjetivas de elaboração de um projeto de sociedade. No aspecto da crítica, ele não usa meias palavras e é contundente:
“O estudo sobre o negro brasileiro, nos seus diversos aspectos, tem sido mediado por preconceitos acadêmicos de um lado, comprometidos com uma pretensa imparcialidade cientifica, e, de outro, por uma ideologia racista racionalizada, que representa os resíduos da superestrutura escravista, e, ao mesmo tempo, a sua continuação, na dinâmica ideológica da sociedade competitiva que a sucedeu.” (Sociologia do negro brasileiro, Capítulo I, Editora.1988)
Clóvis Moura demonstrou que a obra da escravidão sempre esteve – e ainda está – presente na estrutura do Estado brasileiro, nas suas leis e instituições e que, a partir delas, são reproduzidas pela sociedade. O racismo estrutural está na origem, como causa primeira, do sofrimento de milhões de brasileiros e brasileiras, negros e negras vítimas deste sistema que os relega à periferia da sociedade, que os faz ocupar as piores e mais desqualificadas vagas do mercado de trabalho, que os submete à barreiras intransponíveis e invisíveis no acesso educação, que os coloca longe das instâncias de poder, que os faz superlotar as prisões e, muito frequentemente, os faz tombar sob as balas da repressão policial. Reconhecer este fato e promover ampla política de reparação é um passo decisivo para a construção de uma democracia que vá além da democracia liberal. A atualidade da obra de Clóvis Moura está em desnudar esta realidade e ser um guia para a resistência negra e para a luta por políticas de reparação.
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Neste ano, comemoramos o centenário de nascimento de Clóvis Moura, piauiense – jornalista, escritor, militante antirracista, comunista. Suas ideias estão presentes em cada insurgência do povo negro, em todos os terrenos onde ela esteja acontecendo. Afinal, são 100 anos de um insurgente contra o racismo.
Agenda:
Entre os dias 20 e 22 de maio, a Fundação Maurício Grabois e instituições parceiras realizam, em Salvador (BA), o Seminário 100 anos de Clóvis Moura – Legado e Atualidade, com debates sobre sua contribuição à luta antirracista, à teoria social e ao pensamento marxista no Brasil.

Seminário 100 anos de Clóvis Moura – Legado e Atualidade. Imagem: Divulgação
Everaldo Augusto é professor, mestre em Literatura Brasileira. Foi presidente da Federação e Sindicato dos Bancários da Bahia, presidente da CUT Bahia, dirigente nacional da CUT e CTB.
*Uma síntese deste artigo foi publicado em 09/05/2025, no Jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.