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    China

    Por trás da trégua comercial entre EUA e China: disputas, recuos e estratégias globais

    Acordo de 90 dias reduz tarifas e sinaliza retomada do diálogo, mas não encerra a guerra por influência global, tecnologia e mercados estratégicos

    POR: Diego Pautasso

    6 min de leitura

    Bandeiras dos Estados Unidos e da China lado a lado durante sessão da Comissão Conjunta sobre Comércio e Economia (JCCT), em Washington.
Foto de arquivo tirada em 23/11/2016. Imagem: Xinhua/Yin Bogu
    Bandeiras dos Estados Unidos e da China lado a lado durante sessão da Comissão Conjunta sobre Comércio e Economia (JCCT), em Washington. Foto de arquivo tirada em 23/11/2016. Imagem: Xinhua/Yin Bogu

    Por detrás da trégua comercial entre EUA-China – Na última segunda-feira (12), os Estados Unidos e a China anunciaram um novo acordo comercial bilateral que, ao menos em aparência, busca reduzir as tensões comerciais entre as duas maiores economias do mundo. No total, a pausa de 90 dias reduz as tarifas de importação dos EUA de 145% para 30% sobre produtos chineses, e as tarifas chinesas sobre produtos dos EUA de 125% para 10%.

    O anúncio surge em um momento particularmente delicado nas relações internacionais, marcado por uma ordem global em transição, crescente multipolaridade e desafios sem precedentes na governança multilateral. Na prática, é o reconhecimento tácito de que a correlação de forças mudou e o léxico imperial tem limites.

    Raízes da escalada estadunidense

    Se foi no governo Obama que a China passou a ser o Pivô da Ásia a ser contido pelos EUA, foi a partir do governo Trump (2017–2021) que se escalou a Guerra Comercial. Como sublinhamos em outra oportunidade — leia China reage à guerra tarifária e expõe declínio da hegemonia dos EUA —,  a batalha tarifária, desde o início, ocultava os objetivos de fundo de Washington, voltados a interditar o desenvolvimento tecnológico e produtivo da China e sua ascensão global.

    Biden deu provas de se tratar de uma disputa muito além de tarifas. Seu governo desencadeou restrições às empresas chinesas (como Huawei e ZTE) e uma campanha de contenção tecnológica — notadamente no setor de semicondutores. A bem da verdade, Biden intensificou as restrições à China quanto a chips avançados, equipamentos de manufatura de alta precisão e talentos técnicos ocidentais.

    Com o retorno de Trump à Casa Branca, Pequim não nutria muitas expectativas de mudança da política externa de Washington. A questão é que a China já estava calejada, enfrentando há quase uma década o cerco dos EUA com todo tipo de sanções, chantagens e ameaças. E aprendeu a conviver com isso — melhor ainda, aprendeu a superar. Mais importante: o país asiático já tinha superado a principal cartada estadunidense voltada a tentar interditar o desenvolvimento chinês no segmento de semicondutores — e o tirou saiu pela culatra. Ademais, apesar da mobilização de todos os meios por parte dos governos estadunidenses, a China continuou a obter superávits comerciais enormes na casa dos 300 bilhões de dólares.

    Aqui cabe uma breve digressão: no livro escrito por Trump chamado A Arte do Negócio, de 1987, estava expresso sua forma de fazer política. Criar posição de força e manter o controle da situação, mobilizando a mídia e a espetacularização como tática, para um jogo de soma zero, em que para alguém ganhar, outro precisa perder. Mesmo sem recair em uma abordagem individualista de processos complexos, sem dúvida, diz muito sobre o perfil da liderança estadunidense.

    Os chineses não desconheciam nem essa trajetória de Trump, muito menos o consenso bipartidário que se forjou voltado a conter a China. A elite dos EUA parecia desconhecer a China e sua abordagem política. Foi exatamente o que vimos, de modo que os chineses se mantiveram coesos e sem titubear sobre sua tomada de decisão. Paralelamente, mesclando tradições e tática marxista, os líderes chineses souberam evitar confronto direto, agindo com flexibilidade, paciência e inteligência. Enquanto resistem ao atrito prolongado, aproveitam as contradições internas dos EUA e esperam o momento certo para reagir.

    A trucada dos EUA

    Quando desencadeou o tarifaço generalizado em 2 de abril, Trump imaginou refazer a ordem mundial a partir de Washington. Após recuar para 10% de taxação para os demais países do mundo por 90 dias, a Casa Branca resolveu escalar contra China, achando que imporia a sua vontade ao interlocutor asiático. A China, com base na reciprocidade, retribuiu as taxações até chegar a patamares inviáveis.

    Leia também: A diferença é a China, estúpido!

    A questão de fundo é que a China tem dependido menos das exportações em face do mercado doméstico; e menos ainda do mercado dos EUA, em face do Sul Global. Ademais, os produtos importados pela China dos EUA — como soja e petróleo (e derivados) — são de mais fácil substituição do que o contrário. Por fim, mas não menos importante, Pequim não aceitaria ser tratado com desrespeito e vassalagem.

    O governo chinês deu tempo ao tempo, enquanto o governo Trump fazia sinalizações recorrentes em favor da reabertura das negociações. Ou seja, depois de todo alvoroço, com indecisões recorrentes, os EUA voltam à mesa de negociação na estaca zero, de modo que a questão será discutida bilateralmente — e nada avançará sem acordo. A trucada não deu em nada.

    O curativo e a ferida

    O acordo sinaliza uma trégua entre as duas potências, cuja escalada tarifária traria sequelas globais. O curativo, contudo, é pequeno para o tamanho da lesão. Enquanto os EUA têm dificuldade de conciliar a necessidade de conter a China com a realidade da interdependência econômica, o país asiático segue aprofundando a presença em outros mercados através da Belt and Road (BRI). O intento dos EUA de “desacoplamento” da economia chinesa é tão difícil quanto romper com as amarras do rentismo e recuperar o dinamismo produtivo.

    Washington sabe que o custo do confronto aberto com a China está se tornando cada vez mais alto, dada a acelerada alteração da correlação de forças em todos os âmbitos. Se, por um lado, o acordo comercial entre EUA e China pode ser interpretado como um retorno às negociações diplomáticas, por outro, não se pode perder de vista que as contradições parecem recrudescer. Enfim, os caminhos da transição sistêmica são tão nebulosos quanto perigosos.

    Diego Pautasso é pós-doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (2018), doutor (2010) e mestre (2006) em Ciência Política, além de graduado (2003) em Geografia pela UFRGS. É professor do Colégio Militar de Porto Alegre e diretor de pesquisas do Centro de Estudos Avançados Brasil-China (CEBRAC). Autor dos livros “Imperialismo – ainda faz sentido na Era da Globalização?” e “China e Rússia no Pós-Guerra Fria”, bem como coautor de “A China e a Nova Rota da Seda”“Teoria das Relações Internacionais: contribuições marxistas” e “Domenico Losurdo: crítico do nosso tempo”. E-mail: dgpautasso@gmail.com

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.