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    Fórum CELAC–China: Ventos do Sul Global moldam uma nova ordem mundial

    Pesquisador do Cebrac, Tiago Nogara analisa as bases dos acordos firmados entre Brasil e China.

    POR: Tiago Nogara

    11 min de leitura

    Foto: Agência Brasil / Ricardo Stuckert
    Foto: Agência Brasil / Ricardo Stuckert

    Nos últimos dias, avanços significativos foram registrados no marco da cooperação entre a China e os países da América Latina. Esses progressos foram estruturados por uma sequência de eventos que teve início com o comparecimento de diversos líderes globais ao Desfile da Vitória na Rússia, passando pelo 4º Fórum China–CELAC realizado em Pequim, e culminando com encontros bilaterais entre China e Brasil. Esses acontecimentos ocorreram justamente no momento em que a estratégia do governo de Donald Trump — marcada pelo unilateralismo e protecionismo como formas de confrontar a China — começava a demonstrar sinais de desgaste, com o recuo momentâneo sinalizado durante a semana dando um semblante de derrota às iniciativas norte-americanas.

    É impossível negar que a sequência e a simultaneidade desses eventos apontam na mesma direção. As declarações conjuntas dos presidentes Xi Jinping e Lula em defesa do multilateralismo; as imagens em Moscou de Nicolás Maduro — que resiste há anos às duríssimas sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos — ao lado de Ibrahim Traoré, herdeiro da alma de Thomas Sankara em Burkina Faso; e a adesão da Colômbia à Iniciativa Cinturão e Rota no contexto do Fórum China–CELAC, no qual os países latino-americanos mais uma vez expressaram sua ampla e majoritária valorização dos laços com a China. Tudo isso sugere a ascensão de uma vontade coletiva voltada à consolidação de um novo tempo, marcado pelo contraste com as práticas neocoloniais que ainda prevalecem na mentalidade de parte dos estrategistas das potências norte-atlânticas.

    “Não é exagero dizer que, apesar dos mais de 15 mil quilômetros que nos separam, nunca estivemos tão próximos”, afirmou Lula ao descrever o atual estágio das relações entre Brasil e China, durante sua visita a Pequim. Na ocasião do 4º Fórum China–CELAC, o presidente brasileiro criticou duramente o unilateralismo e o protecionismo da administração Trump, classificou as relações sino-brasileiras como imprescindíveis para a defesa do multilateralismo e da cooperação, e assinou diversos novos acordos bilaterais com o presidente Xi Jinping.

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    Entre os 36 acordos anunciados entre Brasil e China, destaca-se uma ampla variedade temática. Avançou-se na busca por sinergias entre o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Plano Nova Indústria Brasil e o Programa Rotas da Integração Sul-Americana com a Iniciativa Cinturão e Rota, por meio de um protocolo de monitoramento conjunto que enfatiza a convergência entre as partes. O já tradicional e bem-sucedido programa CBERS passou a prever o compartilhamento de dados espaciais gerados pelos satélites CBERS-6 e CBERS-5 com os países da CELAC, em moldes semelhantes ao acordo que, em 2009, forneceu dados do CBERS-2B para países africanos. Houve também avanços em áreas como saúde, facilitação comercial, swap cambial, agricultura, inteligência artificial, entre outras. De especial relevância, os países acordaram a criação de um Centro de Transferência de Tecnologia — sinal claro do compromisso da China com o desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil.

    No plano político, não apenas as declarações individuais dos presidentes Lula e Xi Jinping tiveram um tom assertivo diante dos grandes desafios globais, como também resultaram em pronunciamentos conjuntos. A primeira declaração conjunta tratou da defesa do multilateralismo, denunciando as crescentes ondas de intolerância e protecionismo, e reiterando que esse caminho não traz vencedores, mas prejuízos coletivos. Lula afirmou que “China e Brasil concordam que ninguém sai ganhando das guerras tarifárias e comerciais. O protecionismo jamais é uma solução correta para responder aos desafios. China e Brasil vão defender juntos o livre comércio e o sistema multilateral; cultivar um ambiente internacional de cooperação aberta, inclusiva e não discriminatória.” A segunda declaração tratou da guerra na Ucrânia, apelando por uma solução negociada e pacífica. Após a assinatura, Lula declarou que “superar a insensatez dos conflitos armados também é pré-condição para o desenvolvimento”, e citou o documento “Os Entendimentos Comuns entre o Brasil e a China para uma Resolução Política para a Crise na Ucrânia”, elaborado conjuntamente no ano anterior, como base para um diálogo abrangente que permita a restauração da paz.

    Esses avanços ocorrem em um contexto de crescente sinergia entre Brasil e China. Frente ao protecionismo de Trump, os dois países vêm fortalecendo de forma consistente seu comércio bilateral, com produtos brasileiros — como a soja — ganhando espaço em mercados antes dominados por exportadores norte-americanos. Nas últimas semanas, avançaram as negociações entre Brasil, China e Peru para a construção de um corredor ferroviário bioceânico ligando o Atlântico ao Pacífico por meio dos territórios brasileiro e peruano — uma rota logística estratégica para dinamizar o comércio regional com a China e o restante da Ásia-Pacífico.

    Foi também nesse contexto que, durante o Fórum China–CELAC, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, confirmou a adesão do país à Iniciativa Cinturão e Rota, declarando que “vamos assinar a Rota da Seda. Tanto a América Latina quanto a Colômbia são livres, soberanas e independentes. E as relações que estabelecemos com qualquer povo do mundo, do norte, leste, oeste ou sul, devem ser baseadas em condições de liberdade e igualdade.” A medida tem grande peso simbólico, já que a Colômbia é a quarta maior economia da América Latina, é o único país da região com status de “parceira global” da OTAN e é uma tradicional aliada dos Estados Unidos, que mantêm diversas bases militares no país. A adesão ocorre poucos meses após Petro entrar em confronto com a administração Trump diante das deportações truculentas de imigrantes colombianos, quando declarou que “se o Norte não nos quer, o Sul deve se unir.”

    Em seu discurso no Fórum, o presidente Xi Jinping destacou que o comércio entre a China e a América Latina e Caribe ultrapassou, pela primeira vez, os 500 bilhões de dólares no último ano, e anunciou uma linha de crédito de 9,2 bilhões de dólares para a região. Diversas iniciativas também foram lançadas. No âmbito do Programa de Conectividade entre os Povos, Xi anunciou que, nos próximos três anos, a China oferecerá mais de 3.500 bolsas de estudo para países da CELAC, 10.000 oportunidades de formação na China, 500 bolsas para professores internacionais de língua chinesa, 300 vagas de capacitação para especialistas em redução da pobreza, 1.000 bolsas financiadas pelo programa “Ponte Chinesa”, além de apoio ao desenvolvimento do ensino da língua chinesa na região.

    Foram ainda anunciadas diversas medidas alinhadas às grandes iniciativas globais da China, como a Iniciativa de Civilização Global, a Iniciativa de Desenvolvimento Global e a Iniciativa de Segurança Global. Por meio da Declaração de Pequim, os países da CELAC e a China reafirmaram o compromisso conjunto com o multilateralismo, a paz mundial, a igualdade entre as nações e a cooperação para o desenvolvimento compartilhado.

    Nesse cenário, o contraste entre as abordagens de China e Estados Unidos em relação à América Latina é incontornável. Respaldada por uma história comum de resistência ao neocolonialismo e às assimetrias estruturais da ordem global, a China vem se consolidando como referência de esperança na construção de um mundo baseado na paz e no desenvolvimento conjunto. Em contrapartida, os Estados Unidos continuam a apostar numa lógica de soma zero, com ações unilaterais, discriminatórias e fundadas em doutrinas geopolíticas que esvaziam o espaço para o diálogo cooperativo.

    Durante a semana, o enviado especial de Trump para a América Latina, Mauricio Claver-Carone, criticou a visita de Lula à China, dizendo que “a ironia agora é vermos Lula na China quando, francamente, a maioria da sua comunidade de negócios está em Nova York, o maior mercado de capitais do mundo.” Na mesma linha, defendeu a preservação das cadeias de suprimento Norte–Sul e rechaçou o que chamou de “ziguezaguear do Leste para o Oeste.”

    Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais comum que autoridades norte-americanas ameacem países latino-americanos diante do fortalecimento de seus laços com a China. São recorrentes narrativas como a da suposta “armadilha da dívida” chinesa, do alegado “duplo uso” de obras vinculadas à Iniciativa Cinturão e Rota (com eventual aplicação militar), da presumida “espionagem chinesa” via infraestrutura digital e 5G, e da ideia de que a China seria a responsável pela desindustrialização latino-americana.

    Desconstruir essas teses tem sido tarefa central das lideranças que defendem a cooperação Sul–Sul. A verdadeira “armadilha da dívida” na América Latina foi forjada em Washington, não em Pequim — empurrando os países da região à bancarrota nos anos 1980 e abrindo caminho para a imposição de reformas neoliberais por instituições multilaterais. Os projetos de infraestrutura vinculados à Iniciativa Cinturão e Rota têm sido decisivos no reposicionamento das economias latino-americanas nas cadeias globais de valor — como demonstra a conclusão do Porto de Chancay, no Peru, considerado um divisor de águas para a região. O verdadeiro uso militar do território latino-americano não vem da China, mas dos Estados Unidos, que mantêm mais de 70 instalações militares ativas na região sob o comando do USSOUTHCOM e do Departamento de Defesa.

    Do mesmo modo, os episódios comprovados de espionagem não partiram do Oriente, mas das agências de inteligência norte-americanas. Seria impossível enumerá-los todos aqui, mas escândalos como a espionagem da NSA contra a presidente Dilma Rousseff e a Petrobras permanecem como provas evidentes do “telhado de vidro” dos Estados Unidos. Enquanto isso, os serviços digitais chineses, de alta qualidade e custo acessível, têm promovido avanços importantes nas economias latino-americanas, contribuindo também para a modernização de suas infraestruturas.

    Quanto à narrativa da desindustrialização induzida pela China, ela não resiste a qualquer análise séria. É amplamente reconhecido que o esvaziamento industrial da América Latina resultou das políticas liberalizantes e entreguistas adotadas nos marcos do Consenso de Washington — inicialmente aplicadas no contexto das renegociações das dívidas externas nas décadas de 1980 e 1990. Em sentido oposto, a China preservou o papel estratégico das empresas estatais e da propriedade pública em sua economia, consolidando-se, nas décadas seguintes, como potência industrial e tecnológica global. Os acordos com o Brasil e outros países da região deixam claro que a China não só é mercado-chave para exportações latino-americanas, como também se dispõe a fomentar transferência de tecnologia, cooperação científica, intercâmbio educacional e investimentos produtivos em infraestrutura.

    E as lideranças latino-americanas estão plenamente conscientes disso. Foi nesse espírito que Lula afirmou que “a Declaração de Pequim é um alento muito grande, de que você tem um país com a potência econômica da China pensando em contribuir para o desenvolvimento dos países mais pobres da América Latina e da África.” E, rejeitando as pressões das potências norte-atlânticas contra o aprofundamento dos laços sino-latino-americanos, acrescentou: “Ao invés de as pessoas ficarem preocupadas com a China, todo mundo deveria utilizar a mesma forma. Há quanto tempo que não há investimento norte-americano na América Central e na América Latina? Há quanto tempo que não há investimento da União Europeia na América Latina? Há quanto tempo que não tem investimento na África?”

    Por muitos anos, se discutiu na política global se predominariam os ventos do Ocidente ou do Oriente. Os ventos conduzidos pelo 4º Fórum CELAC-China e pela Declaração de Pequim vêm do Leste, e são soprados pelo conjunto dos países do Sul Global, trazendo um recado de esperança: de leste a oeste, de norte a sul, a defesa do multilateralismo, das negociações pacíficas e da cooperação para o desenvolvimento devem guiar a construção de uma nova ordem mundial marcada por um futuro comum para a humanidade.

    Tiago Nogara é Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). É pesquisador do Cebrac.

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