Fraqueza econômica e retrocessos ideológicos (Parte 1): Lições de Roma para o Brasil – Muita gente, principalmente no campo da chamada esquerda, coça a cabeça para compreender o motivo de uma fatia substancial do proletariado brasileiro ter aderido à onda de extrema-direita, ao neopentecostalismo, que cresceu intensamente nas periferias das grandes e médias cidades nas últimas décadas, e, mais recentemente, ao repúdio ao emprego formal com carteira assinada (CLT), especialmente entre os mais jovens. As chaves para compreender adequadamente esses movimentos estão na análise atenta da relação entre infraestrutura e superestrutura, conceitos profundamente caros ao marxismo, ao materialismo histórico-dialético.
Essas questões que nos incomodam profundamente, essas novas formas de pensar e agir, comportamentos repletos de repugnância ao que é coletivo, o individualismo exacerbado, o negacionismo científico, entre outros fenômenos, não brotam do nada ou porque a extrema-direita conseguiu impor sua agenda mental através das redes sociais e da manipulação das emoções feita pelas big techs — ainda que esses dois elementos conjugados tenham importância no nosso raciocínio. É necessário, acima de tudo, entender como grandes transformações na infraestrutura econômica do Brasil, progressivamente, possibilitaram alterações profundas no comportamento da sociedade brasileira — e como esses comportamentos, na relação dialética dos fenômenos, impulsionam os movimentos econômicos.
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De antemão, adianto: fortes retrações econômicas e/ou mudanças de profundidade nos padrões de produção geram, em geral, comportamentos coletivos essencialmente negativos. O oposto também é verdadeiro. Vamos, então, dar uma olhada em uma grande virada histórica que serve para ilustrar, ainda que superficialmente, o nosso raciocínio sobre a atualidade. Poderia pegar inúmeros outros exemplos, mas fico com um que tem intensa repercussão histórica e remonta a cerca de 1700 anos atrás!
Crise e fé: do Império Romano ao domínio cristão na Europa feudal
Até o século III, o cristianismo era um movimento fragmentado, disperso pela imensidão do Império Romano, com diversas interpretações teológicas e inúmeros livros/evangelhos que norteavam a fé e as ações dos cristãos. Era um movimento perseguido pelo Estado Romano em ondas, algumas maiores, outras menores. No império, reinava o politeísmo, e aquela seita de adoradores de um único deus e crentes de que um pregador de Nazaré, nominado Jesus, era seu filho, tinha baixo impacto efetivo nos destinos das sociedades que viviam sob o império. As perseguições se davam essencialmente pela recusa dos cristãos em cumprir um preceito básico: anualmente, fazer um ato de adoração aos imperadores, considerados “deuses vivos”, e, claro, pela recusa em pagar impostos ao Estado.
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Contudo, no século III, a parte ocidental do império, especialmente concentrada na Europa, vivenciou uma grande crise econômica, capitaneada pela escassez de mão de obra escrava, resultando em forte queda na produção agrícola e nos demais setores econômicos que utilizavam essencialmente o trabalho forçado, com múltiplos desdobramentos dali em diante. Por séculos a fio, a escravidão protagonizada por Roma era parte integrante da sua expansão: prisioneiros de guerra eram escravizados em massa e postos a trabalhar nas terras da elite latifundiária, nas minas, nas construções de obras públicas, como “motores” dos navios romanos etc. No século II, Roma atingiu o auge da sua expansão territorial, o que iniciou, aos poucos, o corte de fluxo de novos escravizados — especialmente na região europeia ocidental e na Itália, epicentro daquela civilização profundamente dependente dessa força de trabalho. A crise produtiva explodiria no século seguinte.
Para encurtar o assunto, com a crise econômica se espalhando rapidamente pela parte ocidental, a decorrência foi o enfraquecimento do Estado Imperial e de sua capacidade de: 1) recolher impostos;
2) reverter uma parte dos impostos para a manutenção da política de Pão e Circo (desculpem a comparação grosseira, mas era uma espécie de Bolsa Família de Roma);
3) manter o enorme aparato burocrático estatal que dava suporte ao controle das províncias;
4) manter, pelo Estado, boa parte das famosas legiões romanas, que, progressivamente, passaram a ser pagas diretamente pelos generais que as comandavam, já que, em regra, eles eram grandes proprietários de terras e outras riquezas advindas da dominação imperial;
5) lidar com a fragmentação na liderança política, abrindo um longo período de lutas intestinas brutais pelo controle do Estado, especialmente entre comandantes militares.
Pois foi a partir daí que o cristianismo vicejou, cresceu vertiginosamente, incorporou dezenas de milhares de novos adeptos, tornou-se uma força política a ser considerada no jogo imperial e, no século IV, passou, progressivamente, de religião perseguida a religião legalizada, sob o imperador Constantino (303–337) e, em sequência, à religião do Estado Romano, logo, obrigatória para todos, em 380, já sob o governo do imperador Teodósio. Roma cairia definitivamente um século depois, e o cristianismo, agora sob o predomínio da Igreja Católica Apostólica Romana, dominaria a maior parte do Ocidente Europeu por cerca de mil anos. Uma dominação que combinava teologia, imposição de regras morais e de comportamento e, claro, economia. E cresceu por quê? Por obra do Divino? Há quem acredite nisso, mas a explicação é bem mais terrena. Lembram-se da infraestrutura e superestrutura?

ilustração retrata servos trabalhando nas terras de um senhor feudal. Imagem do Saltério da Rainha Maria (fol. 78v), início do século XIV. Crédito: Autor anônimo (Mestre da Rainha Maria). Digitalização de 2009, disponibilizada por Ann Scott. Domínio público. Fonte: Wikimedia Commons
Com a infraestrutura (a produção econômica) entrando em colapso — declínio acentuado — e com o enfraquecimento intenso do Estado, as comunidades cristãs passaram a cumprir um papel extraordinário. O cristianismo, desde os primórdios, primava por organizar comunidades que compartilhavam entre si os bens dos seus membros. Cristãos com mais posses doavam significativa parcela dos seus bens para que as comunidades abrigassem escravos fugidos e homens livres profundamente pobres (que abundavam em Roma, mas que por séculos eram minimamente atendidos pelo “Pão e Circo”), possibilitando, progressivamente, uma incorporação em larga escala de cidadãos e escravos ao movimento. O cristianismo era um comunismo primitivo de compartilhamento, com um forte senso coletivista e ancorado em um dos preceitos essenciais do que está nos evangelhos: proteger os fracos, abrigar os desprovidos de teto, dar pão a quem tem fome, água a quem tem sede e conforto espiritual à espera da redenção final. Em uma sociedade em franco processo de desagregação, tudo isso é profundamente poderoso.
A parte ocidental do império passou a vivenciar um forte processo de ruralização, com declínio acentuado das cidades — processo intensificado pelas chamadas “invasões germânicas” (cuja base essencial de sobrevivência era a agricultura e o pastoreio). A Europa entrou em processo de transição de uma economia ancorada na escravidão e no forte comércio internacional dentro do império, para a formação de uma economia rural, com a terra controlada por uma pequena elite guerreira, enquanto a massa popular, se quisesse sobreviver, precisava cultivar a terra dessa elite. Foi a “feudalização”.
E a Igreja Católica passou a ser ela própria proprietária de vastos territórios na Europa, vários dos quais só foram dela retirados quando da unificação da Itália na segunda metade do século XIX. A estrutura feudal era vista como uma coletividade com papéis bem definidos entre as classes sociais a serviço de Deus na Terra: os senhores feudais, donos das terras, tinham a função de proteger a massa camponesa e a Igreja; a Igreja tinha a função de proteger espiritualmente os senhores feudais e a massa camponesa. Como alguém tinha que trabalhar para alimentar todo mundo, isso, claro, ficava a cargo dos camponeses, na conjugação de dois elementos da estrutura econômica: a corveia (trabalho obrigatório nas terras de uso exclusivo do senhor feudal) e a talha (imposto pago em produção agrícola nas terras cedidas aos camponeses pelo senhor feudal), complementados, claro, pelo glorioso dízimo pago por todos para a Igreja.
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Portanto, não existe vácuo na política, na economia e nem nas ideias que predominam nas sociedades conforme cada tempo histórico. Existem, isso sim, períodos de transição entre modos de produção — e ideias, leis, usos e costumes estruturados em torno deles. As crises desses modos de produção desenvolvem novas formas de organização econômica e propiciam o surgimento de novas formas de pensamento, em transição, até que essas novas formas de produzir e pensar se tornem predominantes, ao menos por um determinado tempo — e assim sucessivamente. É a dialética das coisas, da vida, da natureza, da história. E mesmo dentro dos modos de produção, quando vivenciam crises intensas que não resultam imediatamente em uma nova estrutura econômica, surgem nuances, modificações sensíveis. Sigamos.
Brasil atual tem passado de desmonte da indústria nacional
Deixo Roma de lado, por enquanto, e corto para o Brasil do nosso tempo. Quarenta anos atrás, a indústria instalada no Brasil — entre capital nacional, estatal e estrangeiro — representava cerca de 30% do PIB. Nessa composição, a indústria de transformação, o coração da produção industrial, aquela que transforma matérias-primas em bens de consumo e bens de capital, sozinha, representava cerca de 20% desse total. O Brasil, a despeito do seu desenvolvimento capitalista tardio, havia chegado a um bom patamar de industrialização, com boas cadeias produtivas, especialmente nas áreas da produção de automóveis, da indústria pesada, de bens de consumo e de infraestrutura. Era o resultado, à época, de aproximadamente meio século de envolvimento direto do Estado nacional como impulsionador fundamental dessa industrialização, desde a famosa “política de substituição de importações”, desencadeada por Getúlio Vargas a partir dos anos 30.
Essa política foi o vértice da vertiginosa industrialização brasileira, alavancada também pela formação exponencial de um mercado consumidor interno, impulsionado pela urbanização e pelo estabelecimento da legislação trabalhista que beneficiava especialmente o proletariado urbano — a famosa CLT — ancorada na política do salário mínimo e demais direitos conquistados pelo povo brasileiro. Ainda que se possa — e deva — criticar a excessiva concentração do desenvolvimento industrial brasileiro na região Sudeste, em detrimento das demais, especialmente do Norte e Nordeste, aprofundando desequilíbrios regionais, o fato é que a combinação “Estado como indutor do desenvolvimento” e industrialização fez com que o Brasil chegasse ao patamar de país capitalista com o maior crescimento econômico do século XX.
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Mas veio a crise, especialmente aquela originada pelo enorme endividamento externo brasileiro durante a ditadura militar de 1964, que, contraditoriamente, expandiu muito esse desenvolvimento calcado em grandes operações estatais e impulsionamento industrial. Em 1964, o Brasil ocupava a 64ª posição no PIB mundial, pulando para a 8ª em 1980. A ditadura militar, ancorada nos ciclos de desenvolvimento da Era Vargas (1930–1960, incluso aqui o período do presidente Juscelino), catapultou o desenvolvimento econômico brasileiro, financiado em boa parte pelo endividamento externo. No mesmo ciclo (1964–1985), a dívida externa brasileira saltou de US$ 4 bilhões para US$ 105 bilhões. Em meados dos anos 1970, a ditadura começou a enfrentar sérios problemas para realizar os pagamentos exigidos pelos países exportadores de capitais, especialmente os EUA e a Europa, resultando em uma profunda crise de hiperinflação, aperto gigantesco nos reajustes salariais, a fim de diminuir o consumo interno para que o país ampliasse suas exportações e viabilizasse o pagamento da dívida. O resultado foi a completa desmoralização da ditadura nos seus últimos anos, as grandes greves dos metalúrgicos do ABC e de outras categorias na virada dos anos 1970 para os 1980 e todo o movimento cívico que resultou na eleição de Tancredo Neves em janeiro de 1985, pondo fim à ditadura. Mas a crise não estancou.

Metalúrgicos em greve lotam estádio em São Bernardo do Campo (SP), no final dos anos 1970. As greves no ABC paulista marcaram a rearticulação política dos trabalhadores e selaram o início da decadência da ditadura empresarial-militar de 1964. Crédito: Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Foto do álbum Greve dos Metalúrgicos do ABC (1979–1980), n. 04. Fonte: Flickr – APESP
O Brasil viveu a chamada “década perdida”, os anos 80 e, na minha opinião, outra década assim, a de 90, com a implantação das políticas neoliberais, pelas mãos das forças conservadoras e reacionárias, acantonadas nos governos Collor e FHC, e a reconhecida diminuição acentuada do Estado nacional em desenvolver ações impulsionadoras do desenvolvimento econômico geral. Mesmo nos governos Lula-Dilma (2003–2016), houve retração na participação industrial brasileira. Em 2003, primeiro ano da “Era Lula”, ela era responsável por 16% do PIB. Já em 2015, último ano efetivo do governo Dilma, que foi golpeado no ano seguinte, estava na casa dos 11%.
É importante destacar que a indústria de transformação, em geral, é responsável pela formação de cadeias produtivas que pagam melhores salários, demandam investimentos maiores em inovação tecnológica e criam empregos em larga escala, entre diretos e indiretos — mesmo considerando as inovações tecnológicas que conduzem à diminuição do trabalho humano. Não é à toa que, nos EUA, Donald Trump faz o que faz, manejando a “guerra tarifária”, com o intuito de retomar a industrialização por lá.
É nesse contexto que começam a se moldar novas formas de pensar e sobreviver em meio ao colapso do trabalho formal e à ascensão do individualismo. Esses desdobramentos — e as ideias que os acompanham — são o tema da Parte 2.
Altair Freitas é historiador, membro do Comitê Central do PCdoB, diretor da Escola Nacional João Amazonas, secretário de Formação e Propaganda do PCdoB/SP.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.