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    Internacional

    Estatais seguem como eixo do socialismo de mercado na China

    Ao contrário da tese da restauração capitalista, o papel das empresas estatais revela a permanência de elementos centrais do socialismo na China, sob liderança do Partido Comunista.

    POR: Nilton Vasconcelos

    10 min de leitura

    Trabalhadores atuam na empresa estatal chinesa Harbin Turbine Company Limited, subsidiária da Harbin Electric Corporation. Crédito: Xinhua/Wang Jianwei
    Trabalhadores atuam na empresa estatal chinesa Harbin Turbine Company Limited, subsidiária da Harbin Electric Corporation. Crédito: Xinhua/Wang Jianwei

    Setor privado e estatal no socialismo de mercado – A Lei de Promoção do Setor Privado da China, recentemente implementada, marca uma nova fase da “abertura e reforma” chinesa, iniciada com Deng Xiaoping e aprofundada por Xi Jinping. Atualmente, o setor privado contribui com mais de 60% do PIB e 80% do emprego urbano. A promoção desse setor associa-se à maior atração de investimentos externos, num contexto em que as empresas estrangeiras passaram a responder por 25% do produto industrial daquele país.

    Essas informações estimulam a discussão sobre uma eventual restauração capitalista na China – processo que, segundo críticos do desenvolvimento chinês, teria iniciado após a morte de Mao Tsé-Tung, há 50 anos. 

    Na teoria marxista, o socialismo é apresentado como uma etapa inferior do comunismo, ou ainda como um período político de transição para um outro modo de produção que substituiria o capitalismo – o comunismo (Lênin, Estado e Revolução, cap. 5). Essa etapa seria suficientemente prolongada para permitir o desenvolvimento das forças produtivas e a superação das classes sociais, quando não fará mais sentido a existência do Estado para o exercício da dominação de classes. 

    Confira especial: Capitalismo de Estado e nacional-desenvolvimentismo no Brasil

    A magnitude das tarefas é ainda mais elevada quando o processo revolucionário ocorre em sociedades economicamente atrasadas, nas quais as contradições decorrentes da expansão do capital para todos os recantos do mundo estavam suficientemente amadurecidas – o elo mais frágil da cadeia imperialista, nos termos de Lênin. Nesses casos, como na URSS e na China, é necessário um esforço adicional para elevar o desenvolvimento das forças produtivas.

    Essa formulação geral não responde, por óbvio, às complexas condições de cada uma das formações econômicas, tampouco às formulações teóricas necessárias ao enfrentamento dos problemas da construção do socialismo – entre as quais o papel do Estado, a participação dos trabalhadores, o desenvolvimento tecnológico, o aprimoramento da vida cultural, do lazer e das relações sociais em geral, bem como a organização da economia, a oferta suficiente de bens, a formação dos preços etc.

    Na teoria de Marx e Engels, o socialismo teria como características principais:

    • abolição da propriedade privada dos meios de produção;
    • controle dos trabalhadores sobre a produção;
    • planejamento econômico centralizado;
    • superação do trabalho alienado;
    • eliminação das contradições entre cidade e campo, trabalho manual e intelectual.

    Na China de hoje:

    • a propriedade privada dos meios de produção é ampla e crescente;
    • as relações de trabalho assalariado, alienado, com jornadas extensas e extração da mais-valia predominam;
    • o mercado opera orientando parcialmente os investimentos e estabelecendo preços;
    • a desigualdade e o surgimento de um grande número de bilionários são consequência do processo de acumulação.

    Por outro lado, algumas práticas são aderentes à perspectiva comunista, entre as quais:

    • o planejamento estatal centralizado, que orienta o desenvolvimento econômico e social;
    • a propriedade pública dos meios de produção de setores estratégicos, por meio de empresas estatais;
    • a redução em larga escala da pobreza;
    • a melhoria das condições de vida;
    • o controle estatal do mercado financeiro;
    • a rejeição ao modelo capitalista ocidental;
    • o papel dirigente do Partido Comunista.

    O socialismo chinês é caracterizado como sendo “de mercado”. Efetivamente, o mercado, como forma social historicamente determinada, existia antes do capitalismo, mas não era o princípio dominante da organização econômica.  No modo de produção feudal, a terra não era mercadoria, o trabalho não era livre, e o excedente era obtido através de tributo, e não por troca mercantil. 

    No capitalismo, o mercado passa a ter um papel dominante, representando uma transformação qualitativa da forma histórica do mercado, que passa a mediar todas as relações sociais fundamentais. Mais e mais dimensões da atividade humana são submetidas ao mercado. A força de trabalho se transforma em mercadoria, toda a produção é realizada para o mercado, que regula a produção, o investimento, a circulação, a distribuição e o consumo. 

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    O mercado é ainda um mecanismo gerador de crises – de superprodução, de escassez –, incrementando as contradições entre o capital e o trabalho. A busca de maior lucratividade pode induzir investimentos intensivos em setores com pouca oferta, com o potencial de resultar em excesso de oferta no ciclo seguinte, o que leva a um processo caótico e anárquico da produção, com implicações nas relações sociais, sobretudo no emprego.

    O planejamento estatal centralizado é a resposta marxista à anarquia da produção. Visa identificar as necessidades estratégicas e sociais do país, organizar a produção, definir metas para os diversos setores, tornar a economia mais previsível. Esse sistema só é possível com a propriedade pública dos meios de produção.

    Na URSS, em 1928, o planejamento centralizado foi implantado como alternativa à NEP (Nova Política Econômica), representando uma solução oposta à regulação pelo mercado, com forte incremento da estatização dos meios de produção e restrição extensiva ao setor privado. Na China, o primeiro plano quinquenal foi adotado em 1953, quatro anos após a fundação da República Popular, baseado no modelo soviético e com ampliação da presença de empresas estatais.

    A partir dos anos 1970, a experiência chinesa passou a adotar uma solução que combinasse planejamento centralizado, estatização de setores estratégicos, presença crescente do setor privado, com abertura ao mercado. Foram analisadas exaustivamente as experiências do Leste Europeu, resultando numa solução própria – daí a denominação de “socialismo com características chinesas”.

    Na atualidade, as empresas estatais chinesas têm controle total ou parcial de setores considerados estratégicos: energia (setor elétrico, petróleo e gás, nuclear); finanças (bancos, seguros); infraestrutura (ferrovias, portos, aeroportos); telecomunicações (mídia, telefonia); tecnologia e indústria pesada; mineração; e defesa e aviação. 

    Em outros setores, tais como, automotivo, tecnologia microeletrônica e-commerce e varejo, as estatais têm presença, mas observa-se o predomínio de empresas privadas.

    Organismos internacionais, a exemplo do Banco Mundial, estimam que as estatais respondiam por cerca de 35% a 40% do PIB, em 2018 (1). Elas exercem forte papel em políticas anticíclicas e se traduzem na espinha dorsal das estratégias de desenvolvimento estabelecidas nos planos quinquenais.

    Segundo levantamento da Confederação Empresarial da China (2), em 2010, das 500 maiores empresas chinesas distribuídas em 75 setores da economia, em 29 deles nenhuma empresa privada foi identificada; em outros dez setores, as estatais estavam presentes, mas desempenhavam um papel menor. No total desses 39 setores, as estatais controlavam 85% do total de ativos de todas as 500 empresas da lista. 

    No ranking da Fortune Global 500 (2022-2024), os ativos das estatais chinesas correspondiam a 84% e 89 % do total, em 2022 e 2024, respectivamente.

    As empresas privadas na China são estimadas em dezenas de milhões, e as empresas estatais, em aproximadamente 150 mil, com variações nos números conforme a fonte, mas numa mesma ordem de grandeza. Dentre essas, pouco menos de 100 conglomerados estatais são controladas centralizadamente pela SASAC (Comissão de Supervisão e Administração de Ativos Estatais). São conglomerados enormes, com aproximadamente 40 mil subsidiárias, representando de 60% a 70% dos ativos de todas as estatais. Essas empresas são consideradas um “instrumento fundamental para a consecução de políticas industriais voltadas ao upgrading tecnológico da economia da China (3).

    O conceito de dupla circulação, implantado no planejamento quinquenal que encerra em 2025, mais uma vez contou com o papel indispensável das empresas estatais. Na dupla circulação, internamente, o objetivo é o fortalecimento do consumo e das cadeias produtivas locais, a proteção contra crises externas, a redução do risco de sanções e da dependência de insumos tecnológicos. Na circulação externa, objetiva incrementar o comércio exterior, com diversificação dos parceiros internacionais, em especial o Sul Global. 

    Neste particular, da mencionada circulação externa, a experiência chinesa difere do socialismo soviético. A URSS tinha poucos laços com a economia capitalista mundial, limitando o comércio ao bloco socialista e aos países aliados em decorrência da restrição às práticas de mercado e da adoção de preços planejados, sendo realizado por meio de organismos do Estado.

    Outro aspecto central é o papel do Partido Comunista Chinês na economia e nas empresas estatais chinesas, através das quais exerce a liderança na implementação das estratégias nacionais. O sistema está estruturado em três níveis, com a SASAC, no nível superior, como reguladora e proprietária das empresas de investimento e operação de capital, que se encontram no nível intermediário, e que são acionistas das empresas estatais, que estão no nível inferior. Em cada nível dessa estrutura de governança, estão as organizações do Partido, cujo papel é coordenar os três níveis do sistema estatal para cumprir as metas previstas no planejamento quinquenal (4). 

    O que pretendemos ressaltar é que, indiscutivelmente, as estatais continuam a desempenhar papel crucial no direcionamento da economia chinesa, estabelecendo a propriedade pública dos meios de produção em larga escala. Este processo tende a se configurar mais como uma adaptação na perspectiva da concepção marxista de transição socialista do que como uma regressão capitalista. 

    Como fase transitória, ainda há características herdadas do velho sistema: não há uma ruptura total, mas um processo de transformação econômica e social. Mais que isso, observam-se movimentos de avanços e recuos, ditados pelas circunstâncias do processo de construção socialista, cujo desdobramento depende, naturalmente, da correlação de forças na sociedade e no mundo. 

    Notas

    1. ZHANG, Chunlin.
      How Much Do State-Owned Enterprises Contribute to China’s GDP and Employment?. Banco Mundial.

    2. Report on Chinese Industrial Policies. Confederação Nacional da Indústria.

    3. VILLA, J. D.
      Empresas estatais, política industrial e inovação endógena no plano Made in China 2025. Revista Princípios, v. 43, n. 171, p. 167–186, 2025.

    4. XIANKUN, Jin; LIPING, Xu; XIN, Yu; ADHIKARI, Ajay.
      Governança política nas empresas estatais da China. Revista Chinesa de Pesquisa Contábil, v. 15, n. 2, jun. 2022.

    Nilton Vasconcelos é doutor em Administração Pública, ex-secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Governo do Estado da BahiaÉ membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e conflitos institucionas no Brasil.

    *A coluna de Nilton Vasconcelos tem periodicidade mensal e é publicada no dia 3 de cada mês.

    **Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.


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