Quem caminhava pelas ruas de Ipanema pela noite desta segunda-feira (02/06) notou que algo de peculiar acontecia na tradicional Travessa do bairro. Uma fila enorme saía das portas da livraria e avançava pelas calçadas. Esse foi o resultado do concorrido lançamento do livro de Jandira Feghali no Rio de Janeiro que reuniu mais de 500 pessoas para uma sessão de autógrafos com a presença da ministra da Cultura, Margareth Menezes.
Foi Jürgen Habermas quem primeiro descreveu como nos séculos XVIII e XIX cafés e salões literários eram utilizados como espaços de debate público fora das tradicionais instituições políticas. Em seu clássico “Mudança estrutural da esfera pública”, livro publicado originalmente em 1962, o sociólogo alemão definiu como esfera pública esse espaço onde intelectuais se reuniam para debater questões políticas fora do Parlamento. Em 1982, o historiador norteamericano Robert Darnton relatou algo semelhante em “Boemia literária e revolução”, obra em que narra as aventuras do submundo das letras em clubes e cafés no período da Revolução Francesa.
Pois bem, quem passou pelo lançamento de “Cultura é poder: reflexões sobre o papel da cultura no processo emancipatório da sociedade brasileira” (Ed. Oficina Raquel, 2025), primeiro livro de Jandira Feghali, saiu com essa sensação de que vivia ali um momento rico da esfera pública. Mas ali, talvez a noção de “contrapúblicos subalternos” formulada por Nancy Fraser seja a mais próxima do que ocorreu, na medida em que traduz de forma mais clara os modos contra-hegemônicos de ação política na esfera pública.
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No salão principal, personalidades do mundo cultural como as atrizes Marieta Severo e Camila Morgado, o ator Marco Nanini, o diretor Silvio Tendler, a coordenadora do Comitê de Cultura do estado do Rio Beatriz Brandão, a professora da ECO UFRJ Ivana Bentes, a diretora da EBC Antonia Pellegrino, o embaixador do Líbano Alejandro Bitar, as deputadas estaduais Dani Balbi (PCdoB) e Renata Souza (PSOL) e tantos outros discutiam os rumos da cultura brasileira de forma descontraída. Viúva de Carlinhos Lyra, a produtora Magda Botafogo relembrou alguns “causos” e músicas do compositor como o Hino da UNE e a Canção do Subdesenvolvido enquanto aguardava por seu autógrafo.
Já no segundo andar, nas mesas do Zazá Bistrô, altas discussões políticas e subversivas reuniam intelectuais que participavam do evento. Numa mesa, o psiquiatra Luiz Antônio Martins e o assessor de relações internacionais da Fiocruz Tiago Nery discutiam a construção do Complexo Industrial da Saúde no país. Em outra, o presidente da Casa de Ruy Barbosa, Alexandre Santini, e o ex-presidente da Ancine, Manoel Rangel, pensavam a produção cultural no cenário latino-americano. Num canto, Luis Fernandes, Secretário-Executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação informava em uma roda que o comunista Elias Ramos acabara de ser nomeado presidente da Finep enquanto a professora da UERJ, Clara Araújo, registrava a importância da luta de Jandira Feghali para a inserção das mulheres na política. Animado, o jornalista André Fernandes, da Agência de Notícias das Favelas (ANF), contava os detalhes de como será a Casa das Favelas na Festa Literária de Paraty (Flip) neste ano. Noutro lado, o presidente do Instituto Pereira Passos (IPP), Elias Jabbour, era estimulado a lançar sua pré-candidatura como deputado federal no ano que vem em cada roda que se aproximava. Na entrada do bistrô, era a mesa da jurista Carol Proner e de Marinete Silva, mãe de Marielle Franco, a que mais chamava atenção. Já Florence Jacq contava que após 27 anos deixou o mandato de Carlos Minc na Alerj para assessorar a secretária municipal de CTI, Tatiana Roque. Para quem não se recorda, Florence é enteada do grande escritor Arthur Poerner, autor de “O poder jovem”, livro que é considerado a bíblia do movimento estudantil brasileiro.
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A militância comunista também ocupou a livraria como se a Travessa fosse um aparelho. Dirigentes do partido de Jandira como Rodrigo Weisz e Marcella Freire debatiam efusivamente a estrategia do PCdoB para o próximo período. Tudo isso acontecendo enquanto folheavam as 202 páginas de “Cultura é poder”.
O livro está dividido em duas partes. Na primeira, a autora discute o seu referencial teórico. Ali aparecem nomes do pensamento social brasileiro como Darcy Ribeiro, Celso Furtado e Carlos Lessa, mas também outros intelectuais da América Latina como Álvaro Garcia Linera, Néstor García Canclini e Alberto Acosta, além de marxistas como Gramsci, Raymond Williams e Eric Hobsbawm. A segunda parte do livro é voltada para as políticas públicas de cultura, muitas delas formuladas pela própria Jandira. Vale lembrar que, entre um mandato e outro como deputada federal pelo PCdoB, Jandira foi Secretária Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. Já como parlamentar, foi a responsável pela elaboração da Lei da Política Nacional Aldir Blanc.
Certa vez, alguns anos atrás, alguém disse que Jandira Feghali poderia não ser a ministra oficial da Cultura, mas que para a sociedade civil ela seria certamente a ministra popular da Cultura. O lançamento de ontem mostrou que essa afirmação ainda é válida.
Theófilo Rodrigues é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UCAM. É Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Cultura & Sociedade da Fundação Maurício Grabois.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.