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    Sustentabilidade

    Aerossóis: quando combater a poluição acelera o aquecimento global

    Entenda por que a redução de aerossóis, muitas vezes vistos como vilões do clima, pode acelerar as mudanças climáticas — e conheça os desafios científicos e políticos por trás do chamado 'efeito desmascaramento

    POR: Allan Kardec Duailibe Barros Filho

    11 min de leitura

    Imagem "Mais perto da atmosfera da Terra" Crédito: Виталий Смолыгин , disponível no Pixabay .
Licença: CC0 – Domínio Público.
    Imagem "Mais perto da atmosfera da Terra" Crédito: Виталий Смолыгин , disponível no Pixabay . Licença: CC0 – Domínio Público.

    Dentre as muitas partículas lançadas na atmosfera por atividades humanas, os gases de efeito estufa ganharam notória atenção por sua capacidade de reter calor, possivelmente alterando o balanço energético planetário.

    No entanto, paralelamente ao aumento das concentrações de dióxido de carbono, metano e óxidos nitrosos, outro grupo de substâncias tem exercido um papel relevante, embora menos discutido: os aerossóis.

    Esses pequenos materiais particulados em suspensão atuam como agentes de resfriamento atmosférico.

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    Eles refletem a luz solar de volta ao espaço e modificam as propriedades das nuvens, reduzindo a quantidade de radiação solar que atinge a superfície.

    Paradoxalmente, nas últimas décadas, à medida que políticas ambientais e tecnologias limparam o ar em diversas regiões do globo, a redução desses poluentes podem contribuir para um aquecimento mais rápido e mais intenso do planeta.

    Como os aerossóis ajudam a reduzir o aquecimento global

    Essa contradição foi tratada com grande profundidade no artigo publicado na revista Nature Communications , sob o título “Aerossóis superam os gases de efeito estufa, causando um clima mais quente e extremos climáticos mais intensos rumo à neutralidade de carbono” [1].

    Os autores demonstram, com base em simulações e dados observacionais, que as reduções nas emissões de aerossóis, ao retirarem esse escudo atmosférico temporário, acabam expondo o pleno efeito de aquecimento dos gases estufa acumulados ao longo do tempo.

    Esse fenômeno é conhecido como o “efeito de desmascaramento”.  Ele revela o paradoxo climático em que o combate à poluição do ar, embora vital para a saúde pública, pode acelerar o aquecimento global no curto prazo.

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    No estudo “Reduções recentes nas emissões de aerossóis aumentaram o desequilíbrio energético da Terra” , publicado na Nature Communications Earth & Environment [2], evidências robustas indicam que a recente diminuição das emissões de aerossóis de origem antrópica tem contribuído significativamente para o aumento do desequilíbrio energético da Terra.

    Esse desequilíbrio, caracterizado por uma entrada de energia solar superior à saída de energia térmica, intensifica o aquecimento da superfície terrestre e oceânica.

    Evidências científicas: a redução de aerossóis acelera o aquecimento global

    Segundo os autores, a regulamentação imposta pela Organização Marítima Internacional (IMO) em 2020, que reduziu drasticamente o teor de enxofre nos combustíveis marítimos, é um exemplo emblemático dessa transição. Embora tenha resultado em menor emissão de dióxido de enxofre — precursor de aerossóis de sulfato —, o resultado líquido foi um aumento da absorção de radiação solar pelos oceanos, com impactos visíveis nas temperaturas da superfície marinha.

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    O impacto regional desse fenômeno foi detalhado no estudo “O desmascaramento dos aerossóis intensifica o aquecimento climático no sul da Ásia” [3]. Os autores destacam que a Ásia Meridional, que durante décadas sofreu com altos níveis de poluição por partículas finas, agora começa a experimentar um aquecimento acelerado à medida que as emissões de aerossóis diminuem por força de políticas ambientais e alterações estruturais na matriz energética.

    A retirada progressiva desses poluentes tem ampliado a radiação solar incidente, especialmente durante a pré-monção, resultando em mudanças abruptas nos padrões de precipitação, ondas de calor mais severas e impactos profundos na agricultura regional.

    Ar mais limpo pode significar um planeta mais quente

    Spray aerossol Imagem: PiccoloNamek, publicado na Wikipédia. Licença: CC BY-SA 3.0.

    A importância de compreender os efeitos colaterais das políticas de redução de aerossóis é reforçada por outro trabalho intitulado “Políticas agressivas de mitigação de aerossóis reduzem as chances de manter o aquecimento global abaixo de 1,5 °C” , publicado na Earth’s Future [4].

    O estudo aponta que, se por um lado a mitigação dos aerossóis reduz a carga de poluentes atmosféricos e melhora a qualidade do ar, por outro ela dificulta a manutenção da meta de aquecimento estabelecida pelo Acordo de Paris. Em cenários simulados, a remoção acelerada de aerossóis leva a um aumento na força radiativa líquida do sistema climático.

    No artigo “Evidências robustas da reversão da tendência no forçamento climático efetivo dos aerossóis” , publicado na revista Atmospheric Chemistry and Physics [5], os autores oferecem evidências consistentes de que a tendência da radiação exercida pelos aerossóis está se invertendo.

    A diminuição no uso de combustíveis ricos em enxofre, especialmente em países do Hemisfério Norte, tem sido associada a uma reversão nos efeitos de resfriamento atmosférico historicamente provocados por esses poluentes. Esse processo, ainda em seus estágios iniciais, deve intensificar-se à medida que mais nações adotem medidas ambientais para reduzir as emissões industriais.

    Como a poluição atmosférica mascarava o aquecimento

    A análise crítica desse panorama aparece em um estudo provocativo hospedado no repositório arXiv , intitulado “O maior elefante na sala: o mascaramento por aerossóis” [6]. O artigo argumenta que o papel dos aerossóis na contenção do aquecimento global tem sido sistematicamente subestimado pelos modelos climáticos tradicionais e pelas políticas de mitigação.

    Os autores chamam atenção para o risco de um aquecimento abrupto e inesperado caso ocorra uma remoção generalizada e não coordenada das fontes de aerossóis, sem o devido controle das emissões de CO₂. Nesse cenário, a Terra experimentaria um choque térmico climático, com aumento rápido das temperaturas médias e amplificação de eventos extremos.

    Monitoramento climático em risco: o envelhecimento das missões CERES

    O site da NASA, em sua seção de ciências climáticas, também contribui com a divulgação de dados e análises acessíveis ao público em geral.

    No artigo “Aerossóis: pequenas partículas com grandes efeitos climáticos” [7], a agência espacial americana, a NASA, esclarece que os aerossóis antropogênicos contribuíram para um resfriamento estimado em até 0,4 °C, mascarando parcialmente o aquecimento induzido pelo CO₂.

    A redução dessas partículas, embora benéfica para a saúde pública, representa uma faca de dois gumes ao eliminar esse efeito tampão, tornando visível a verdadeira magnitude do problema.

    Complementando essa perspectiva, a reportagem “O paradoxo da poluição: como a redução do smog aquece os oceanos” [8], publicada pela revista Yale Environment 360 [8], analisa como a redução da poluição atmosférica tem aquecido os oceanos, alterando padrões de circulação atmosférica e marítima.

    Por fim, a plataforma do programa Copernicus, da União Europeia, publicou um artigo revelador intitulado “Aerossóis: a redução das emissões de SO₂ está contribuindo para o aquecimento global?” [9]. O texto examina especificamente a relação entre a redução das emissões de dióxido de enxofre e o aumento das temperaturas globais.

    Ele ressalta que, embora tais reduções sejam necessárias para atender aos padrões de qualidade do ar e prevenir doenças respiratórias, seus efeitos colaterais sobre o clima precisam ser contabilizados nas políticas ambientais.

    O artigo “Céus mais limpos podem estar acelerando o aquecimento global” , publicado na respeitável revista Science [10], também vai na mesma direção.

    A partir dos dados do sistema CERES da NASA, os pesquisadores constataram um aumento notável na quantidade de energia solar absorvida pela Terra desde 2001, sendo que cerca de 40% desse incremento, entre 2001 e 2019, pode ser atribuído à menor presença de poluentes refletivos na atmosfera.

    O estudo também aponta que parte da diminuição da refletividade planetária não pode ser explicada apenas pela queda na poluição, indicando possíveis contribuições de fatores como o derretimento de gelo, mudanças na cobertura de nuvens e nas correntes oceânicas.

    Os autores destacam que, embora o controle da poluição seja essencial, seus efeitos retardados sobre o clima — como o aumento da temperatura e a alteração de padrões meteorológicos — precisam ser cuidadosamente integrados aos modelos climáticos.

    Modelos climáticos precisam integrar os efeitos dos aerossóis

    Além disso, alertam para o risco de interrupção no monitoramento de longo prazo, devido ao envelhecimento dos satélites atuais da missão CERES.

    Diante dessa vasta literatura, emerge um retrato complexo e desafiador das interações entre os aerossóis e o sistema climático terrestre.

    A atmosfera não responde de maneira linear ou simples às intervenções humanas.

    Enquanto o combate à poluição do ar é uma conquista inegável para a saúde pública global, seus impactos climáticos devem ser cuidadosamente monitorados. A evidência acumulada indica que os aerossóis exerceram um papel de contenção parcial do aquecimento global por décadas, ocultando os efeitos mais severos do acúmulo de gases estufa.

    A política de sua remoção progressiva, se não for acompanhada de políticas públicas menos ideológicas e mais centradas em pesquisas científicas, pode precipitar uma nova fase de aquecimento acelerado, com consequências potencialmente irreversíveis para os sistemas naturais e humanos.

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    É imperativo, portanto, que as políticas públicas adotem uma visão da grande complexidade do problema, considerando simultaneamente as fontes de poluição de curto e longo prazo.

    Não cabem, ao que se evidencia, contas simples na equação da vida.

    Aliás, nunca houve na História soluções simples para problemas complexos!

    Os modelos climáticos precisam incorporar com maior precisão os efeitos dos aerossóis, suas variações regionais e sua evolução ao longo do tempo.

    A ciência climática está apenas começando a compreender plenamente os múltiplos papéis que essas partículas desempenham na dinâmica planetária.

    Reconhecer esse papel é o primeiro passo para construir estratégias de mitigação mais eficazes, justas e resilientes frente à crescente crise ambiental do século XXI.

    Notas e referências

    No texto, os títulos foram traduzidos para português. As referencias originais estão aqui.

    1. ZHU, J. et al. Aerosols overtake greenhouse gases causing a warmer climate and more weather extremes toward carbon neutrality . Nature Communications , v. 13, p. 6127, 2022. Leia aqui
    2. HODNEBROG, Ø. et al. Recent reductions in aerosol emissions have increased Earth’s energy imbalance . Communications Earth & Environment , v. 5, n. 49, 2024. Leia aqui
    3. RAMANATHAN, V.; FENG, Y. Aerosol demasking enhances climate warming over South Asia. Nature Geoscience , v. 2, n. 9, p. 645–648, 2009. Leia aqui
    4. SMITH, C. J. et al. Aggressive aerosol mitigation policies reduce chances of keeping global warming below 2°C . Earth’s Future , v. 9, n. 11, e2021EF002145, 2021. Leia aqui
    5. BELLUOIN, N. et al. Robust evidence for reversal of the trend in aerosol effective climate forcing . Atmospheric Chemistry and Physics , v. 23, p. 3771–3788, 2023. Leia aqui
    6. EHRLICH, S.; MAURITSEN, T. The largest elephant in the room: aerosol masking. ArXiv [Preprint], arXiv:2207.12242, 2022. Leia aqui
    7. NASA. Aerosols: small particles with big climate effects. Climate website, n.d. Leia aqui
    8. YALE ENVIRONMENT 360. Pollution paradox: how cleaning up smog drives ocean warming. Feature article, 2023. Leia aqui
    9. COPERNICUS EU. Aerosols: are SO₂ emissions reductions contributing to global warming? Atmosphere Monitoring Service, 2023. Leia aqui
    10. SCHMIDT, G. A. et al. Clearer skies may be accelerating global warming . Science , v. 384, n. 6692, p. 147–148, 2024. Leia aqui

     

    Allan Kardec Duailibe Barros Filho é doutor em engenharia da informação pela Universidade de Nagoya (Japão). É professor titular da UFMA (Universidade Federal do Maranhão). Foi diretor da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) e atualmente é presidente da Gasmar (Companhia Maranhense de Gás).

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.