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    Agricultura

    Como a era digital está mudando a agricultura familiar brasileira

    Entenda como a Agricultura 4.0 e 5.0 estão mudando o campo brasileiro e por que a agricultura familiar enfrenta barreiras para aderir às novas tecnologias

    POR: Carlos Rogério de Carvalho Nunes

    10 min de leitura

    Aplicativo da Emater-DF possibilita que produtor rural registre, catalogue e controle toda a produção de seu terreno. Na foto, o produtor rural Geraldo Magela.Foto: Renato Araujo/Agência Brasília
    Aplicativo da Emater-DF possibilita que produtor rural registre, catalogue e controle toda a produção de seu terreno. Na foto, o produtor rural Geraldo Magela.Foto: Renato Araujo/Agência Brasília

    A agricultura familiar no Brasil está passando por profundas transformações. Essas mudanças atingem a atividade agropecuária como um todo, pois “a transformação digital da agricultura […] é […] parte de uma transformação geral que está ocorrendo em toda a economia e na sociedade” (BUAINAIN, 2021, p. 20). Assim como já falamos da gig economy sobre os trabalhadores em serviços de entrega de mercadorias e transporte de pessoas (NUNES, 2025), agora faremos uma breve análise sobre os efeitos da era digital na agricultura familiar. Para isso, é necessária uma breve digressão.

    Histórico e evolução da agricultura no Brasil

    Antes do povoamento europeu nesse continente há 525 anos, praticava-se aqui a atividade de coletores e caçadores para a sobrevivência humana. Os primeiros habitantes viviam como nômades. A produção de alimentos sempre foi de sobrevivência para os membros da comunidade. Porém a colonização mudou toda essa realidade. Com a introdução da cultura do pau-brasil, da cana-de-açúcar, do extrativismo mineral, do café, dentre os principais, supria-se a metrópole colonizadora de produtos agrários e extrativistas essenciais para os países europeus ocidentais (PRADO JR., 2011).

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    Com o advento do capitalismo industrial nas terras europeias, em finais do século XVIII, assim como a mudança de atividades da monocultura do século XIX, o Brasil inicia o processo de crescimento territorial de suas terras agricultáveis e mantém a atividade primária voltada para países que já iniciavam suas revoluções industriais. Até o início do século XX, não tivemos avanços significativos para o aumento da produtividade no campo. Este só se transforma em cenário de crescimento de produtividade com o advento de novas tecnologias e das pesquisas em ciências naturais a partir de meados do século XX (DIAS, 2023).

    Em levantamento recente de dados relativos à produção agrária brasileira, segundo fontes patronais, revela que entre 90% e 95% dos produtores rurais usam algum tipo de tecnologia digital (TOMAZELA, 2024). O uso é desde a utilização de software para operações bancárias até manejo agrícola. Esse fato indica que o setor produtivo do agronegócio brasileiro está acompanhando firmemente a tendência de inclusão digital em máquinas e equipamentos na produção agrária, movimento que já ocorre nos setores da indústria e comércio e serviços.

    “A evolução da agricultura está diretamente ligada com a transferência de tecnologia” (DIAS, 2023, p. 5).

     

    Agricultura 4.0 e 5.0: inovação tecnológica no campo

    A era digital, oriunda do desenvolvimento da Indústria 4.0, alcançou o mundo rural. Esse fato fez com que todos os sistemas produtivos utilizassem esse avanço tecnológico. E assim como existe a Indústria 4.0, temos também a Agricultura 4.0, em que os conhecimentos desenvolvidos para a produção industrial foram direcionados também à produção agrícola.

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    Apesar da dificuldade de instalar internet na vastidão do território brasileiro, é notória a iniciativa do setor produtivo em parceria com órgãos governamentais no sentido de facilitar o acesso à internet e, assim, melhorar a gestão do setor rural. Essa parceria fez com que o produto do campo chegasse o mais rápido e eficientemente possível ao consumidor, acelerando o ciclo de produção e comercialização e contribuindo para que o produto primário agregue valor constantemente.

    A era digital na agricultura, porém, não atende ao conjunto dos que vivem do campo brasileiro. A incidência de uso de tecnologias avançadas na produção rural é mais intensa entre os grandes proprietários do que entre os médios e pequenos produtores rurais. Na agricultura familiar, essa realidade é inversa à do agronegócio. A realidade do setor rural brasileiro é heterogênea, pois, além desses dois setores, temos também uma quantidade considerável de assalariados rurais — aqueles que dedicam uma jornada de trabalho e recebem um salário por essa jornada. Esse contingente soma cerca de 2,5 milhões de trabalhadores.

    É, no entanto, o contingente de agricultores familiares o mais significativo. Segundo dados do IBGE, de 2017, foram catalogados 3,9 milhões de propriedades reconhecidas como de agricultura familiar (BRASIL, 2021), o que representa 77% dos estabelecimentos agrícolas brasileiros (SANTOS, 2024).

    A agricultura familiar é herdeira de conhecimentos tradicionais, fator importante para a preservação ambiental e a biodiversidade. Observando a história, percebemos uma virada na produção agrícola: a Revolução Verde. Segundo Matos (2011), essa revolução “foi a introdução de estudos sistemáticos e aplicação de tecnologia na produção agrícola” (SANTOS, 2024, p. 2) e teve como período de referência no Brasil os anos de 1950 e 1960. Isso nos leva a afirmar que o uso da tecnologia na agricultura familiar brasileira ainda é incipiente.

    A agricultura familiar tem um papel importante para o desenvolvimento rural no Brasil. Essa importância teve como marco a implantação do Caderno Especial do Censo Agropecuário em 2009. Com informações básicas sobre a agricultura familiar, foi possível aos órgãos do governo, às instituições de pesquisa e aos sindicatos dos trabalhadores rurais convergirem informações e conhecimentos para defender e desenvolver a agricultura familiar. Foi um momento oportuno em que as práticas agrícolas tradicionais e os saberes locais se uniram na perspectiva de manter e avançar na agricultura familiar.

    Os efeitos da tecnologia na produção agrícola são amplos e contraditórios. É evidente que os sensores de monitoramento e a inteligência artificial são eficazes no desenvolvimento da produção agrícola. Com esses instrumentos — e outros decorrentes do avanço tecnológico — a Agricultura 4.0 possibilitou a geração e garantia da qualidade e da produtividade agrícolas. Pesquisas já apontam que estamos diante de um novo ciclo da era digital no setor rural: a Agricultura 5.0, onde a rapidez do avanço tecnológico está sendo utilizada no campo brasileiro, e cuja característica principal é a personalização e adaptação de soluções para necessidades específicas.

    Por outro lado, existem desvantagens do avanço tecnológico na agricultura familiar. Nessa prevalece o conhecimento popular, transmitido de geração em geração. Os novos conhecimentos desafiam essa tradição, que, com o decorrer da atividade agrícola familiar, pode entrar em conflito com o conhecimento científico-tecnológico, evidenciando pouca adesão das novas tecnologias por parte da agricultura familiar.

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    O avanço das novas tecnologias é heterogêneo. Ele varia tanto nas diferentes regiões geográficas quanto nos tipos de atividade, ou seja, adapta-se às especificidades de cada atividade, conforme Souza et al. (2019). Um dos principais fatores que dificultam o acesso da agricultura familiar às novas tecnologias é o tamanho das propriedades. Os dispositivos com alta precisão tecnológica são, na maioria das vezes, incompatíveis com a escala de produção das pequenas propriedades dos agricultores familiares, segundo o mesmo autor. Outros fatores importantes são a limitação da assistência técnica e a insuficiência de recursos financeiros, impedindo que o agricultor familiar tenha acesso às novas tecnologias para sua produção rural.

    Importante ressaltar que o uso de novas tecnologias na agricultura familiar diz respeito tanto ao aumento da produtividade da terra quanto do trabalho. A pesquisa do referido autor ainda traz dados muito interessantes quanto ao uso dessas tecnologias nas diferentes regiões do país. As regiões Sudeste e Sul concentram os maiores índices de adoção de novas tecnologias na agricultura familiar. Na região Centro-Oeste, predominam índices médios, enquanto nas regiões Norte e Nordeste os índices são baixos ou muito baixos. Como resultado da pesquisa, o autor afirma que “a agricultura familiar, com pouca terra e capital, […] seguiu por uma via mais intensiva do fator trabalho” (SOUZA, 2019, p. 610).

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    Existe uma concentração da produção agrícola no Brasil. As grandes propriedades rurais, cerca de 980 mil estabelecimentos, são responsáveis por 62,3% do valor bruto da produção – VBP. Ao passo que 3,7 milhões de pequenas propriedades garantem 37,7% do VBP, segundo o Censo Agropecuário de 2017. Esse dado nos remete à necessidade de atenção à Agricultura Familiar quanto à sua capacidade de gerar valor na produção. Segundo Antônio Buainain (2021):

    “O relativo atraso tecnológico de um grande número de produtores, em particular dos pequenos, deve-se […] às dificuldades e obstáculos enfrentados pelos agricultores familiares […] no âmbito das condições de inovação” (p. 12).

    Ou seja, esse atraso não se deve apenas ao tamanho da propriedade, mas ao contexto geral que limita a possibilidade de o agricultor familiar acessar as vantagens da inovação tecnológica.

    Papel do Estado na inclusão rural e tecnológica

    Podemos afirmar que a “transformação digital da agricultura é parte de uma transformação geral que está ocorrendo em toda a economia e sociedade” (BUAINAIN, 2021, p. 22). A mudança é ampla e envolve todos os setores produtivos da sociedade.

    Quanto ao papel do Estado, concordamos também com o autor quando ele afirma que “o Estado ainda possui certo protagonismo nessa onda de inovação” (idem, p. 84). Na verdade, o Estado é o maior incentivador para que a inovação tecnológica chegue ao agricultor familiar. Instituições como a Embrapa, universidades públicas e políticas agrícolas são incentivos reais para que agricultores familiares não fiquem parados no tempo e no espaço e acompanhem as inovações tecnológicas em curso no país e no mundo.

    Referências

    1. BUAINAIN, A. M.; CAVALCANTE, P.; CONSOLINE, L. Estado atual da agricultura digital no Brasil: inclusão dos agricultores familiares e pequenos produtores rurais. Documentos de Projetos (LC/TS.2021/61). Santiago: Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), 2021.
    2. BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Potencialidades e desafios do agro 4.0: GT III “Cadeias Produtivas e Desenvolvimento de Fornecedores” – Câmara do Agro 4.0 (MAPA/MCTI). Secretaria de Inovação, Desenvolvimento Sustentável e Irrigação. Brasília: Mapa/ACES, 2021.
    3. DIAS, Fernando Xavier et al. Transferência de tecnologia na Agricultura 4.0. Revista Observatorio de la Economía Latinoamericana , Curitiba, v. 21, n. 11, p. 21865-21887, 2023.
    4. MATOS, A.K.V. Revolução verde, biotecnologia e tecnologias alternativas. Cadernos da FUCAMP , v. 10, n. 12, p. 01-17, 2011.
    5. PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: Colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
    6. SANTOS, I.M.G.L.; DIAS, E.M.; PEIXOTO, A.S.B. Elementos clave para un proceso de difusión de tecnologías 4.0 en la agroindustria: un estudio de caso con proyectos que involucran a productores rurales. Revista de Gestão e Secretariado , São Paulo, SP, v. 15, n. 2, p. 01-15, 2024.
    7. SOUZA, Paulo Marcelo de. Diferenças regionais de tecnologias na agricultura familiar no Brasil. Revista de Economia e Sociologia Rural , v. 57, n. 4, p. 594-617, 2019.
    8. TOMAZELA, José Maria. Mais de 95% dos produtores rurais utilizam algum tipo de tecnologia digital. BrasilAgro , 8 jan. 2024.
    9. SEBRAE. Relatório de inteligência: agricultura. Polo Sebrae Agro, junho de 2024.

     

    Carlos Rogério de Carvalho Nunes é coordenador do Grupo de Pesquisa Era Digital da Fundação Maurício Grabois.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.