A questão da revolução no século XXI – Já vamos vivendo os primeiros 25 anos do século XXI, e não faltam estudos e ensaios, acadêmicos ou não, que procuram vislumbrar como serão os desafios da democracia, do socialismo, do meio ambiente, do crescimento e bem-estar econômico etc. neste século que transcorre celeremente. E, cada ano que passa mostra o aprofundamento das incertezas de como serão os anos vindouros, mergulhados que estamos em um agravamento sistemático da crise do sistema econômico hegemônico — o capitalismo na sua fase neoliberal.
Isso se manifesta nas relações internacionais com a perda gradativa do papel dos EUA como potência hegemônica, em torno da qual giravam — e, em certo sentido, ainda giram — a economia e a política mundiais, e no surgimento de novos polos de poder, como China, Rússia, União Europeia, Japão e Índia, entre outros. Estes procuram ir ocupando o espaço político e econômico deixado pelas dificuldades que o imperialismo americano encontra para manter sob seu controle.
Crise do capitalismo neoliberal e a nova ordem mundial
Acrescente-se a isso o desempenho vitorioso das experiências socialistas em curso, como a China, o Vietnã, o Laos etc., que vão recolocando na ordem do dia, sob novas condições, o socialismo como sistema econômico político e social, capaz de apresentar uma saída para os impasses a que nos levaram a hegemonia do capitalismos nos últimos séculos.
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Tudo isso contribui para que as análises sobre como se desenvolverá a nova realidade socioeconômica vigente no mundo neste século se constituam em um desafio teórico e político hercúleo.
Por que falar de socialismo? Veja reflexão de Elias Jabbour na TV Grabois:
Ocorre que pouco ou quase nada tem sido questionado ou produzido teoricamente no que se refere a como se desenvolverão, no transcorrer deste século, os processos de mudanças revolucionárias que inevitavelmente terão de ocorrer se quisermos superar os entraves — no fundamental de natureza estrutural — que o capitalismo, em sua atual fase de financeirização, impõe ao mundo, a ferro e fogo.
Por óbvio, na subjetividade da sociedade, não estão dadas as condições objetivas para que se desenhem os caminhos a serem trilhados para levarmos as massas a respaldarem processos de mudanças estruturais, ou seja revolucionários, que a vida está a exigir em vários países do globo, com destaque para o Brasil. Pelo contrário, vivemos um período em que as ideias e propostas de cunho avançado, política e socialmente, não têm galvanizado amplas parcelas da sociedade. Verifica-se, ao invés disso, um processo de desinteresse pela busca de soluções políticas coletivas para os problemas que nos afligem. Predomina a busca, no plano pessoal, de soluções individuais e, no plano político-social, de lideranças messiânicas que apontem saídas para as múltiplas crises que vivemos.
Ou seja, predomina, no inconsciente coletivo das amplas massas, uma descrença na política como o meio onde seus problemas podem ser equacionados e coletivamente resolvidos. E, como dissemos um pouco acima, predomina uma atitude, despolitizada, com a qual se busca saídas individuais e messiânicas que nada mais são que saídas políticas reacionárias para a superação dos problemas que as afligem.
Assim, um dos temas que devem passar a fazer parte dos estudos e das discussões, sobre como superarmos os graves entraves ao nosso pleno desenvolvimento, é o do desafio de como avançarmos, nos tempos atuais, no rumo de uma revolução socialista no Brasil. Ou seja, como se coloca, para os revolucionários deste início de século, o “desafio de fazer a revolução”!
A questão é complexa e não comporta soluções simples. O século XX, visto em retrospectiva, pode ser considerado um século de revoluções. As consequências da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), entre potências imperialistas, abriram caminho para a revolução bolchevique, em 1917, liderada por Lenin; para a revolução húngara de 1919, liderada por Béla Kun; para a tentativa de revolução na Alemanha em 1923; e para outros experimentos da mesma natureza. Os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) criaram um novo cenário propício ao avanço revolucionário, que, no bojo do amplo movimento de descolonização impulsionado pela ex-URSS, criou as condições para vitórias épicas, como a Revolução Chinesa de 1949, liderada por Mao Tsé-tung; a do Vietnã em agosto de 1945, liderada por Ho Chi Minh, quando se libertou do jugo do imperialismo francês; a revolução cubana de 1959, liderada por Fidel; a da Argélia, também derrotando o imperialismo francês, em 1962; e várias outras de cunho nacional e mesmo popular que levaram vários países africanos e asiáticos à libertação do jugo colonial.

Presidente Ho Chi Minh proclama a independência do Vietnã da França, na Praça Ba Dinh, em Hanói, no dia 2 de setembro de 1945. Foto: Autor desconhecido – Wikimedia Commons, domínio público.
Porém, em todo esse complexo e multifacetado processo político que possibilitou o desenvolvimento de caminhos revolucionários — que mudaram radicalmente a ordem econômica, política e social desses países — vivia-se uma conjuntura política na qual o capitalismo se encontrava numa fase de reorganização de suas forças, com o deslocamento do poder hegemônico da Inglaterra para os EUA. E, ao mesmo tempo — fruto da vitória das forças democráticas na Segunda Guerra Mundial, e do papel nela desempenhada pela ex-URSS — existia uma simpatia das massas populares em relação à experiência socialista que se desenvolvia na ex-URSS. E esta tornou-se uma força política que se opunha ao predomínio do capitalismo ocidental, e mesmo como força impulsionadora e estimuladora do processo de descolonização e de revolução social em vários países. Eram os tempos em que a chamada Guerra Fria modelava as relações internacionais e interferia nas relações internas dos países.
Retrocesso após o colapso da URSS e o fim do século XX
Contudo, o evoluir do tempo e da história nos colocou, na última década do século XX, diante de uma mudança significativa do ambiente político das décadas anteriores. Com a derrocada da ex-URSS (1991), iniciou-se um processo de regressão do ímpeto revolucionário, que tinha vigorado durante o século que findava, e iniciamos um período de ascensão das forças reacionárias, e do estabelecimento de uma nova fase no desenvolvimento do capitalismo. Nele acentuaram-se a concentração de renda, o predomínio do capital financeiro sobre o produtivo, o aumento da exploração da mão de obra assalariada, o estabelecimento de relações capitalistas entre as nações regidas pelas regras do neoliberalismo — que concentra riqueza nos países centrais do sistema, impede o desenvolvimento dos países da periferia e redefine algumas conquistas sociais que permitiram a existência de um certo estado de bem-estar social, nos países centrais do capitalismo: os EUA, os países da Europa Ocidental e o Japão. E, mais significativo, para a formação de uma consciência progressista — e mesmo revolucionária — das massas, o desmoronamento da ex-URSS passou a ideia de que não é possível a existência de um regime socioeconômico fora dos marcos do capitalismo.
Brasil no século XXI: entre reação e resistência
É diante desse cenário que se coloca, para nós no Brasil, o desafio de trilhar o caminho revolucionário no século XXI. Vivemos numa fase da vida nacional, na qual as forças de direita e extrema-direita passaram a ter um protagonismo político institucional e parlamentar que há décadas não se presenciava. Do fim da ditadura, em 1985, e particularmente a partir da vigência da Constituição de 1988, até os dias atuais, por meio de complexos movimentos políticos, fomos dirigidos politicamente por uma direita tradicional calcada nos moldes do liberalismo clássico e do neoliberalismo.
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Tivemos, nesse percurso, o interregno dos governos Lula e Dilma (2003-2016) que, embora não tenham realizado as reformas estruturais que o país necessita para superar o seu atraso secular, implementaram políticas sociais que mitigaram as duras condições das camadas populares, e mais vulneráveis da sociedade, e retomaram políticas econômicas com as quais o Estado passou a ter um papel de indutor do desenvolvimento e atuou na cena internacional de forma proativa e soberana. Porém, nesse pequeno intervalo — quando a ascensão de camadas pobres da sociedade lhes permitiu ter acesso a alguns bens de consumo que iam além da subsistência precária em que sempre viveram —, elas passaram a consumir bens de consumo muito além dos itens da cesta básica; frequentar os shoppings centers; viajar de avião; ingressar nas universidades de ponta.
Ou seja, quando na sociedade começaram a surgir os sinais de que se realizava, a partir de políticas governamentais, um tímido processo de redistribuição de renda, as forças reacionárias se articularam, mobilizaram incontáveis meios materiais e espirituais, conspiraram e, por meio do impeachment realizado contra a presidente Dilma Rousseff (2016), levaram ao fim essa tímida experiência de um governo preocupado com o povo. E assim abriram caminho para que a insatisfação latente que existia na sociedade fosse capturada pela extrema-direita, que elegeu Bolsonaro presidente.
Porém, o governo Bolsonaro (2019-2022) foi um verdadeiro desastre político e social, e, em uma campanha difícil e polarizada, foi derrotado por Lula, que, em 2023, assumiu seu terceiro mandato como presidente.Embora as forças progressistas, em conjunto com forças de centro — formando uma ampla frente política anti-Bolsonaro —, tenham eleito Lula presidente, as condições que Lula encontrou e enfrenta, nesse seu novo governo, são muito diversas da situação que existiu em seus governos anteriores.
Crescem os desafios que Governo Lula 3 precisa superar
A composição do Congresso Nacional eleito é fundamentalmente conservadora e mesmo reacionária. A extrema-direita, além de contar com expressiva bancada parlamentar, ainda dirige oito importantes estados da federação, dezenas de municípios, estando presente de forma ativa e militante, em todo o território nacional, e controlando um complexo e sofisticado sistema de comunicação digital, que mantém em constante mobilização suas bases políticas. É nesse cenário que temos de pensar o desafio de lutar pela revolução no século XXI.
Reformas estruturais e a perspectiva revolucionária no Brasil atual
Assim, a luta por reformas estruturais — que são defendidas por certas forças políticas de esquerda, com destaque para o PCdoB — tem diante de si o desafio de como levar adiante essa luta nos marcos do Estado Liberal Burguês que nos governa. Pois essas reformas só serão efetivadas se forem introduzidas mudanças em profundidade na atual estrutura política do Estado brasileiro.
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De saída, é necessário realizar uma reforma Constitucional, que em certo sentido reescreva a atual Constituição, fazendo-a retornar aos termos com que foi escrita e aprovada em 1988, pois, ao longo dos anos, ela foi tão profundamente modificada no sentido de fazê-la retroceder nas conquistas que a fizeram merecer o nome de Constituição Cidadã, que, hoje, mais se assemelha a uma colcha de retalhos. Em alguns de seus dispositivos atuais se estabelecem flagrantes contradições, em relação aos originalmente nela inscritos, fazendo com que se torne inviável a luta por um Projeto Nacional, autônomo, soberano e socialmente mais justo.
Por um lado, da forma como estão conformadas as forças políticas, e estruturadas as instituições que dirigem o atual Estado Nacional, e, por outro, com a baixa participação das forças sociais objetivamente progressistas — em tese, as mais interessadas nas mudanças estruturais necessárias para destravarmos os caminhos para a nossa realização como Nação soberana —, teremos pela frente um árduo caminho, para não dizer a impossibilidade de levar à frente esse Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento. Dificuldades essas que, pela magnitude e complexidade, não serão superadas nos marcos da luta institucional e parlamentar, mas estão a exigir uma verdadeira revolução social para seu êxito.
Cabe a nós, do campo progressista e democrático consequente, e mormente aos socialistas e comunistas, enfrentarmos o desafio de desbravar os caminhos da Revolução Socialista no século XXI. Essa tarefa deve começar desde já pelas forças acima referidas, que, apoiando-se nas experiências históricas, mas fundamentalmente referenciadas na realidade dos dias atuais — do Brasil e do mundo — busquem construir as bases teóricas, políticas e sociais que nos levem a trilhar o caminho emancipacionista da Revolução Social.
Ronald Freitas é membro do Comitê Central do PCdoB e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da FMG.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.