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    Internacional

    50 anos do fim da Guerra do Vietnã: derrotas, mentiras e resistência

    Cinco décadas após a queda de Saigon, o legado da Guerra do Vietnã ainda ecoa no mundo: derrotas imperiais, protestos populares, mentiras de Estado e solidariedade internacional

    POR: Carolina Maria Ruy

    11 min de leitura

    Tanque do Exército Popular do Vietnã invade o Palácio da Independência em Saigon, às 11h30 de 30 de abril de 1975, marcando o fim da Guerra do Vietnã. Foto: Françoise Demulder / Gamma / Arquivo histórico
    Tanque do Exército Popular do Vietnã invade o Palácio da Independência em Saigon, às 11h30 de 30 de abril de 1975, marcando o fim da Guerra do Vietnã. Foto: Françoise Demulder / Gamma / Arquivo histórico

    Há 50 anos, em 30 de abril de 1975, a Guerra do Vietnã chegou ao fim. Os comunistas do Norte derrotaram gloriosamente o exército dos EUA, garantindo a unidade do país. Isso é o mais importante. Mas há muito mais a dizer e a refletir sobre este episódio sangrento.

    Se grandes eventos como a Primeira Guerra Mundial (1914–1918), a Revolução Russa de 1917, a Crise de 1929 e a Segunda Guerra (1939–1945) redefiniram a história na primeira metade do século XX, a Guerra do Vietnã, durante longos vinte anos, foi a maior expressão da Guerra Fria, que atravessou quase toda a segunda metade do século, redefinindo, mais uma vez, a ordem mundial.

    Quando as forças armadas dos EUA aterrissaram no Vietnã, em 1964, com a orientação de fortalecer o Sul para combater o Norte do país, o exército de Ho Chi Minh já havia vencido a França imperialista, que lutou (e perdeu) para manter sua colônia na Indochina.

    Comunista e apoiado por China e União Soviética, o pequeno país, quente e chuvoso, com sua extensa costa litorânea, despertou nos EUA o medo de que seus adversários ganhassem terreno daquele lado do mapa.

    Leia mais: Há 80 anos terminava a Segunda Guerra — e o Ocidente ainda não aprendeu a lição

    Eles haviam saído vitoriosos de duas guerras mundiais, mantinham grande influência sobre a Europa Ocidental com o plano de recuperação para os países devastados pelas guerras, implementaram um regime de controle e repressão na América Latina através de ditaduras, como a ditadura militar brasileira, viviam o período que ficou conhecido como Era de Ouro do Capitalismo, com um sistema massivo de produção e consumo, e já contavam com um ostensivo poderio econômico e militar. Com esta bagagem, os EUA sobrevoaram oceanos e pisaram no Vietnã com um “ego” bastante inflado.

    Mas a ideia sobre a vitória certa que eles tinham em mente, logo se perderia naquela floresta tropical, tornando-se um ideal cada vez mais inalcançável.

    Do napalm às revelações: o colapso moral dos EUA

     

    Corpos de mulheres e crianças vietnamitas após o Massacre de My Lai, em 16 de março de 1968. A imagem, feita pelo fotógrafo do Exército dos EUA Ronald L. Haeberle, revela a brutalidade da ação militar americana que matou centenas de civis desarmados durante a Guerra do Vietnã. Foto: Ronald L. Haeberle / U.S. Army / Domínio público

    A prepotência estadunidense é um ponto que merece atenção nesta história. Enquanto documentários, reportagens e depoimentos atestam como o clima de desumanização foi incentivado por altos comandantes, a ficção encena situações factíveis.

    Por exemplo, é do clássico Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (1979), uma das mais terríveis e reveladoras frases do cinema, proferida pelo tenente-coronel Bill Kilgore (interpretado por Robert Duvall):

    “Eu adoro o cheiro de napalm pela manhã. Cheira a… vitória.”

    Com isso, ele mostra a frieza e a indiferença dos americanos com as mortes e com toda a destruição. O contexto da frase mostra um ataque aéreo organizado para “liberar” uma praia dominada pelos vietcongues, para os militares dos EUA pudessem surfar.

    Outra prática que vinha do alto escalão e que marcou a história dos EUA no Vietnã foram as notícias falsas que o governo transmitia ao seu povo.

    Leia também: The Post, o jornalismo e a Guerra do Vietnã

    É conhecido o episódio de 1971, quando o ex-analista militar Daniel Ellsberg revelou documentos secretos que escondiam mentiras do governo sobre a guerra. Suas denúncias fortaleceram protestos que se alastravam desde 1968, quando os conflitos sangrentos começaram a ser transmitidos ao vivo e em cores nas televisões, que eram objetos de desejo na explosão do consumismo.

    Ellsberg revelou que o governo, mesmo sabendo que não tinha condições de vencer aquela guerra, continuou bombardeando o Vietnã, o Laos e o Camboja e mandando os jovens americanos para morrer no Oriente.

    O governo americano soube que não ganharia a guerra logo pós a chamada “Ofensiva do Tet”, em janeiro de 1968. Dali em diante, foi impossível sustentar a certeza da cúpula militar e política sobre a vitória americana.

    Mas, ao invés de recuarem, eles implementaram uma prática de demonstração desmedida de violência. Algo que ficou marcado pelo massacre de My Lai, logo em março de 1968.

    No cinquentenário do massacre (março de 2018), a jornalista Evelyn Theiss, em artigo para a Revista Time1, disse que:

    “Quando o fotógrafo Ron Haerbele desembarcou perto da aldeia de My Lai, no Vietnã, na manhã de 16 de março de 1968, junto com a unidade do Exército com a qual estava – Companhia Charlie, Primeiro Batalhão, Vigésimo Regimento da Infantaria –, os moradores não ficaram abalados. Os americanos já haviam visitado a região antes, sem incidentes.
    Mas naquele dia, dentro de minutos, conforme um relatório oficial do Exército informou, as tropas abriram fogo. Nas horas que se seguiram, as forças americanas arrasaram o vilarejo. Eles estupraram, torturaram e mataram centenas de idosos, mulheres e crianças.
    Mais de um ano depois, quando as chocantes fotografias de Haerbele daquelas atrocidades foram publicadas, elas desnudaram uma verdade aterradora: os ‘garotos’ americanos eram tão capazes de selvageria descontrolada quanto qualquer soldado, em qualquer lugar.”

    Haerbele, o fotógrafo, teve um importante papel ao revelar ao mundo não só os horrores daquela Guerra, como também a mentalidade que era incentivada entre os soldados. A matéria da Revista Time registra memórias perturbadoras do fotógrafo que presenciou a matança do povo vietnamita:

    “Nos diziam: ‘A vida não tem significado para essas pessoas’: o inimigo não é como nós. Eles não são humanos.”

    Ele foi um dos muitos jornalistas que registraram o conflito. Por isso, é vasto o material sobre as ações dos EUA no Vietnã — material que não deixa dúvidas sobre as mentiras e a brutalidade praticadas à época.

    No artigo O Vietnã foi aqui2, da Revista Fapesp, a jornalista Ruth Helena Bellinghini, afirmou que três imagens se tornaram emblemáticas:

    “A foto do monge budista imolando-se em protesto em 1963; a do agente americano explodindo com um fuzil a cabeça de um vietcongue ajoelhado a seus pés e a inesquecível foto, de 1972, da menina nua correndo queimada por napalm”.

    Isso tudo impulsionou os movimentos contra a guerra, que passaram a pressionar o governo americano.

    Ecos da guerra

    Curioso ressaltar que este era um assunto tão presente nas manchetes que, até no Brasil, formou-se — na intelectualidade e no operariado — um sentimento de solidariedade aos combatentes de Ho Chi Minh.

    Ainda segundo o artigo O Vietnã foi aqui:

    “Em 1968, com a ocupação da embaixada norte-americana, na Ofensiva de Tet. O Vietnã passou a ser tão popular que nas greves em Contagem e Osasco o nome do país era palavra de ordem, as imagens da guerra apareciam até no Canal 100 nos cinemas, que só mostrava futebol”.

    O Exército dos EUA usou sua tecnologia, aviões, bombas, armas químicas que deixaram sequelas; usou um grande contingente de soldados fortes e bem alimentados. Mas, a despeito de toda aquela força, o governo foi esmagado por protestos dentro de casa e pela determinação vietnamita. Para o jornalista Amiad Horowitz:

    “Cada revés militar dos EUA não era apenas uma perda tática, mas também política, corroendo o apoio interno e deslegitimando a guerra no cenário internacional.”

    Em artigo3 publicado no site People`s World, Horowitz explica que a resistência do Vietnã está no fato de que eles não lutavam por dominação, mas por libertação:

    “Sob a liderança de Ho Chi Minh e do Partido Comunista do Vietnã, buscavam a reunificação nacional, a independência e o fim da ocupação estrangeira. Sua luta estava enraizada em décadas de resistência anticolonial — contra os colonialistas franceses, os fascistas japoneses e, agora, os imperialistas norte-americanos.”

    Além disso, o apoio financeiro e militar da União Soviética e da China, que se manteve durante todo a guerra, ajudou o Vietnã do Norte a vencê-la.

    1975: vitória comunista

    A retirada das tropas americanas começou em 1973, após os Acordos de Paz de Paris. Em 30 de abril de 1975, o Vietnã do Norte conquistou Saigon, unificando o país sob regime comunista e colocando um fim àquela guerra insana.

    Guerra que matou mais de 1 milhão de vietnamitas e cerca de 58 mil norte-americanos, além dos graves danos ambientais causados pelo uso de armas químicas, como o agente laranja, e bombas de napalm.

    Em Era dos Extremos4, o historiador Eric Hobsbawm fala que o Vietnã desmoralizou e dividiu os EUA, e revelou o isolamento da superpotência, já que “nenhum de seus aliados europeus mandou sequer contingentes nominais”.

    Ele levanta que é quase impossível compreender o que levou os EUA a se envolveram numa guerra condenada, contra a qual seus aliados, os neutros e até a URSS tinham os alertado. Hobsbawn sugere que o fato se explica pela “densa nuvem de incompreensão, confusão e paranoia dentro da qual os principais atores da Guerra Fria tateavam o caminho”.

    Para ilustrar, ele lembra um fato pitoresco, o então primeiro-ministro da União Soviética, Nikita Khrushchov, teria dito ao secretário de Estado dos Estados Unidos, Dean Rusk:

    “Se vocês quiserem, vão em frente e combatam nas selvas do Vietnã. Os franceses lutaram lá durante sete anos e acabaram tendo que sair. Talvez os americanos possam aguentar um pouco mais, mas vão acabar tendo que sair também.”5

    Segundo o historiador, o fato de os EUA terem se enfraquecido com a Guerra do Vietnã, não alterou a ordem bipolar ou “a natureza do confronto nos vários teatros regionais da Guerra Fria”.

    O objetivo dos EUA no Vietnã — demonstrar superioridade diante do Bloco Comunista — falhou fragorosamente. Poucos anos mais tarde, entretanto, a própria Guerra Fria terminaria mal para os comunistas.

    Fracassos imperiais

     

    Ensaio geral do desfile militar e cívico em comemoração aos 50 anos da Libertação do Sul e da Reunificação do Vietnão.

    Vietnamitas acompanham o ensaio do desfile comemorativo pelos 50 anos da Libertação do Sul e da Reunificação Nacional, realizado na cidade de Ho Chi Minh, nome atual da antiga Saigon, capital do Vietnã do Sul antes da reunificação. O evento celebra o 30 de abril de 1975, data da queda de Saigon e do fim da Guerra do Vietnã. (27/04/2025) Foto: Việt Nam News via Facebook

    Hoje, depois de tantos anos, porém, a ideia de um triunfo absoluto dos EUA em 1991 é questionável. Além de enfraquecidos, divididos e humilhados pelo Vietnã, quando saíram do país, a Era de Ouro do pós-Segunda Guerra havia sido liquidada pela Crise do Petróleo de 1973. Crise da qual o capitalismo nunca se recuperou totalmente.

    Em 2008, uma nova crise abalou o neoliberalismo, desarranjando cadeias econômicas, impulsionando o crescimento global da extrema-direita e colocando em xeque os propalados “valores ocidentais”.

    Os EUA repetiram no Afeganistão, entre 2001 e 2021, os erros do Vietnã, além de continuar promovendo e financiando guerras pelo mundo para manter sua imagem de superioridade econômica e milita — e para disseminar o imperialismo político e cultural.

    Enquanto isso, a despeito do fim da Guerra Fria, o Oriente comunista — do qual o Vietnã é parte — segue se fortalecendo.


    Notas

    1 The Photographer Who Showed the World What Really Happened at My Lai, Evelyn Theiss, Time.com, 15 de março de 2018.

    2 O Vietnã foi aqui – Imprensa brasileira usou guerras na Ásia para falar de conflitos internos, Ruth Helena Bellinghini, Revista Fapesp, edição 101, julho de 2004.

    3 50 Years After Reunification, Vietnam Still Stands as Proof Imperialism Can Be Defeated, Amiad Horowitz, People’s World, 17 de abril de 2025.

    4 Era dos Extremos: O Breve Século XX, Eric Hobsbawm, Companhia das Letras, 1994.

    5 A informação está em uma nota de rodapé na página 241 da 2ª edição de Era dos Extremos: O Breve Século XX (Hobsbawm, 1994), publicada pela Companhia das Letras.


    Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical, também coordena o Grupo de Pesquisa Cultura & Sociedade da Fundação Maurício Grabois.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.

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