Nascido na cidade de Amarante, Piauí, em 10 de junho de 1925, o intelectual Clóvis Steiger de Assis Moura completaria 100 anos nesta terça-feira (10).
Comunista negro, historiador, sociólogo, jornalista e poeta, Moura é autor de 26 livros, além de uma série de artigos publicados em periódicos.
Intelectual orgânico, ele desenvolveu fora da academia uma vasta e pungente obra de inspiração marxista sobre as relações raciais e o papel dos negros escravizados na construção da identidade brasileira, caracterizando o racismo como elemento fundante do Estado brasileiro.
Com Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas (1959), a partir de pesquisa sobre os documentos do período escravagista, Moura mudou os rumos do debate sobre a população escravizada no Brasil, ao estabelecer o quilombo como uma unidade política com papel de destaque no combate ao regime escravagista.
No ano de seu centenário, o livro ganha um nova edição, em uma parceria da Fundação Maurício Grabois com a Editora Anita Garibaldi, que acontecerá na Livraria Tapera Taperá, em São Paulo (SP), no dia 3 de julho.
Referência para o movimento negro organizado
O arcabouço teórico sobre o a resistência dos negros escravizados e o potencial emancipador das lutas travadas por sua libertação serviram de inspiração para a ação da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro), organização antirracista criada em 1988, em Salvador (BA).
Em 1991, durante o primeiro Encontro Nacional de Entidades Negras (Enen), Moura esteve presente no momento da discussão do documento proposto pelos integrantes do encontro: Extermínio programado da população negra, em um momento marcado pela ação de grupos de extermínio e políticas de esterilização em massa de mulheres negras, com a laqueadura involuntária. Edson França, presidente da Unegro, estava no encontro e aponta:
“O Clóvis Moura foi uma pessoa que avalizou o documento para a gente e nos deu diretrizes de atuação no movimento negro. Fomos, no primeiro momento, a única, depois a principal organização do movimento negro que defendia o pensamento de Clóvis Moura para a luta racial. Com o tempo, ele passou a ser quase que uma unanimidade no movimento negro.”
E complementa:
“A relação que nós, negros, comunistas, que construímos o movimento negro com o Clóvis Moura, é de total simbiose, e tendo ele como nosso principal ideólogo, uma pessoa muito presente. Participou dos nossos primeiros encontros, fez palestras importantes, preparou um calendário sobre fatos e acontecimentos relacionados à população negra.”
Em 1994, Moura entregou à Editora Anita Garibaldi sua principal obra: Dialética radical do Brasil negro, onde aborda o racismo inserido no contexto do imperialismo e do neocolonialismo. O livro foi relançado em 2024. Compre online na Livraria Anita.
Comunismo e atividade na imprensa
Ligado tanto à ação política quanto à escrita, Moura difundiu o ideário comunista em uma série de publicações com as quais colaborou até o final de sua vida. Na cisão do movimento comunista, consumada no Brasil entre 1961 e 1962, Clóvis Moura ficou no Partido Comunista do Brasil reorganizado, que assumiria a sigla PCdoB, onde se manteve até o momento de sua partida, em 2003.
“No ano de seu centenário, o PCdoB, em conjunto com o pensamento avançado, marxista e progressista do país, com o movimento negro brasileiro e demais movimentos do povo e dos trabalhadores, celebra a rica contribuição desse grande brasileiro, responsável por importantes avanços na interpretação do país e na construção de um Brasil soberano, democrático, desenvolvido e sem racismo, sob a perspectiva da conquista do socialismo”, celebrou o partido em texto dedicado à memória de Clóvis Moura.
A aproximação de Moura com o comunismo começou em 1947 por meio de Astrojildo Pereira, principal fundador do Partido Comunista do Brasil quando passou a colaborar com a revista Literatura, da qual Pereira era editor
No início da década de 1950, mudou-se com a família para São Paulo, onde trabalhou no jornal Última Hora. Em 1951, em Araraquara (SP), criou a revista Flama, um dos porta-vozes das ideias comunistas. Também atuou nos jornais comunistas O Momento, Hoje e Jacuba.
A partir de novembro de 1977, Clóvis Moura passou a compor o Conselho de Direção do jornal Movimento, ligado ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), então partido de oposição à ditadura militar (1964-1985) e intelectuais progressistas como Chico Buarque de Holanda, Elifas Andreato e Maria Amélia Telles
Em conjunto com o jornalista José Carlos Ruy, articulou matérias que noticiaram a Guerrilha do Araguaia, a resistência armada organizada pelo PCdoB no Sul do estado do Pará. Escreveu, em 1982, o prefácio da primeira edição da revista Guerrilha do Araguaia – uma epopeia pela liberdade, censurada e apreendida pela ditadura militar.
Durante a década de 1980, Clóvis Moura publicou uma série de artigos sobre o tema na revista Princípios, fundada por João Amazonas, alguns deles serão publicados no site da Fundação Maurício Grabois durante o mês de seu centenário.
Apesar de ter cursado a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras em Salvador na década de 1940, Moura teve o reconhecimento acadêmico de sua produção apenas na década de 1980, quando recebeu o título de Doutor Honório Saber pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), o que possibilitou que participasse como examinador em bancas de mestrado e doutorado na USP e na Unicamp.
“Clóvis Moura contribuiu particularmente ao campo da sociologia histórica e da sociologia do conhecimento sendo autor de dois livros emblemáticos a este respeito, A Sociologia posta em questão (1978) e As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira (1990)”, destaca Fábio Nogueira professor adjunto da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) na nota biográfica sobre o intelectual para a Sociedade Brasileira de Sociologia.
Entre as obras publicadas por Clóvis Moura entre as décadas de 1980 e 1990, Nogueira destaca Quilombos e a rebelião negra (1981), Sociologia do negro brasileiro (1988) e A dialética radical do Brasil negro (1994), “obras que amplificam e redefinem aspectos ligados a dinâmica sócio-histórica do associativismo negro e sua resistência ao escravismo e a marginalização na sociedade capitalista competitiva”.
Nos anos 2000, Clóvis Moura se aproximou do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e publicou A sociologia política da guerra camponesa de Canudos – Do desparecimento de Belo Monte ao MST (2000).
“Intelectual, marxista e apaixonado pela vida, destacou-se pela retidão de seu caráter, perseverança e bom humor. Em seus últimos anos de vida, colaborou estreitamente com os movimentos, escrevendo ensaios para a Editora Expressão Popular”, homenageou o MST em sua página por ocasião dos 20 anos de seu falecimento.
Clóvis Moura faleceu no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, no dia 23 de dezembro de 2023, aos 78 anos de idade. Naquele ano, o intelectual comunista havia publicado sua última obra em vida: A encruzilhada dos Orixás: problemas e dilemas do negro brasileiro. Em 2024, de forma póstuma, foi publicado o Dicionário da escravidão negra no Brasil.
“Trabalhando nessa nesga não-institucional, onde as costumeiras dificuldades de pesquisador aumentam, consideravelmente, Clóvis Moura foi construindo, ele com ele, nos recantos de sua rica biblioteca, vasta e notável obra – histórica e sociológica – sobre a saga heróica do negro-escravo e do negro-quase-cidadão na sociedade nacional. Todos os estudiosos da questão racial brasileira estão familiarizados com seus livros, cujos títulos constam obrigatoriamente das bibliografias dos estudos que vão surgindo, por se constituírem em referências indispensáveis às reflexões científicas sobre essa temática a um só tempo tão apaixonada e tão apaixonante”, escreveu João Baptista Borges Pereira no Prefácio.