O espectro da guerra na Europa – Sistematicamente destilada por monocórdica e incessante campanha de intoxicação promovida pelos grandes meios de comunicação daquém e dalém mar, a russofobia prospera na Europa dos monopólios e dos trustes, que se prepara para entrar diretamente na guerra em curso entre a Federação Russa e a Ucrânia cripto fascista.
Sempre é importante lembrar que, contrariamente ao que sustentam os sabujos do imperialismo, esta guerra começou com o golpe de Estado parlamentar de 22 de fevereiro de 2014, que depôs o presidente Victor Yanukovych, por ser contrário aos que pretendiam quebrar o estatuto de neutralidade da Ucrânia, para fazê-la aderir à União Europeia e à máquina de guerra comandada pelo Pentágono.
De Obama, dos líderes da União Europeia e da direita em geral, vieram aplausos aos golpistas. Mas as populações de língua russa da região do Donbas (Lugansk e Donetsk) recusaram-se a aceitar o golpe. Proclamaram a independência dispostas a defendê-la de armas na mão.
Entretanto, a junta cripto fascista que assumira o poder na Ucrânia desfechou uma vaga de perseguições contra russos em geral e comunistas em especial, revogando a lei que reconhecia o russo como língua oficial em regiões onde ele predominava.
As fontes minimamente objetivas (muito raras no Ocidente) reconhecem que Putin empenhou-se em evitar uma escalada no confronto, solicitando publicamente aos dirigentes das duas já proclamadas repúblicas populares de Lugansk e de Donetsk que postergassem o referendum para ratificar a independência, de modo a permitir negociações com o governo instalado em Kiev.
Leia também: O pântano neoliberal, Putin e a Cruzada anti russa da Otan
As negociações não prosperaram. A junta golpista logo recorreu à solução de força, atacando as regiões insubmissas e ocupando boa parte de seu território. Destacou-se nesta ofensiva uma tropa de choque neonazista que após se apoderar, em junho de 2014, da cidade de Mariupol, no litoral do mar de Azov, adotou o nome de batalhão Azov.
Assumiu na sequência as dimensões de um regimento, que foi formalmente integrado à Guarda Nacional Ucraniana. Cabe-lhe a principal responsabilidade pelos métodos de guerra suja contra a população de língua russa (torturas, estupros, pilhagem e limpezas étnicas). Em agosto, porém, os autonomistas do Donetsk viraram a sorte das armas, infligindo pesada derrota aos agressores em uma batalha nas redondezas da cidade de Ilovaisk, que constrangeu a junta de Kiev a retomar as negociações.

Soldados norte-americanos chegam à Polônia para participar de exercícios militares conjuntos. Desde 1990, EUA desrespeitam compromisso de não ampliar OTAN e instalam bases militares em torno da Rússia
Negociações
Em setembro de 2014, uma discussão trilateral com a participação da Rússia, da Ucrânia e da União Europeia em Minsk (Belarus) estabeleceu um protocolo de cessar-fogo em Lugansk e Donetsk. O êxito foi muito pequeno; os combates se reativaram até que um novo encontro, em fevereiro de 2015, chamado de Minsk II, reduziu a intensidade do confronto (retirada de armamento pesado da linha de frente, troca de prisioneiros etc.), mas sem chegar a um acordo durável.
A extrema direita ultranacionalista, instalada na cúpula do Estado ucraniano, preferiu manter o estado de guerra, multiplicando os ataques às duas regiões conflagradas e continuando a considerá-las “territórios ocupados”, a serem recuperados com o apoio de seus protetores ocidentais.
As tensões se agravaram lenta, mas inexoravelmente. Relativamente ao objetivo estratégico da Otan, manter a Rússia cercada na frente europeia, a Ucrânia é peça essencial. Para a Rússia, estratégico é o objetivo de não se deixar asfixiar pela Otan.

Chama eterna no Túmulo do Soldado Desconhecido, em Moscou, símbolo da memória dos milhões de soviéticos mortos na Segunda Guerra Mundial. O monumento está localizado junto à muralha do Kremlin e é um dos principais locais de homenagem na Rússia.
Crédito: Oleg Bor – Obra própria, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons.
Guerra aberta
O desencadeamento, em 24 de fevereiro de 2022, da operação militar especial, tornou aberta a guerra latente que prosseguia há mais de sete anos. Difícil saber se, ao tomar a iniciativa e assumir os riscos de invadir a Ucrânia, o governo russo esperava uma vitória rápida e decisiva sobre o regime de Zelenski ou se pretendia, primordialmente, garantir a independência de Lugansk e de Donetsk. Certamente visava também a comprovar, no campo de batalha, que o cerco da Otan podia ser rompido.
Foi grande a comoção orquestrada no Ocidente perante a operação militar especial russa na Ucrânia. Podemos, entretanto, duvidar da sinceridade da pretensão “humanitária” dessa reação. Ou a defesa dos direitos e valores humanitários é uma posição de princípio abrangendo toda a humanidade, ou é uma fórmula retórica vazia.
A atitude majoritariamente tíbia, quando não conivente, da opinião pública Ocidental perante o genocídio do povo palestino de Gaza, mostrou a que ponto sua compaixão é seletiva. Nessa incoerência de sentimentos coletivos, além da russofobia, há uma boa dose de racismo e de nostalgia colonialista.
Considerada no complexo de suas consequências, a guerra da Ucrânia reativou o ódio por Moscou dos tempos da guerra fria, voltando a polarizar o antagonismo geopolítico entre o bloco hegemônico comandado pelos Estados-Unidos e o bloco eurasiático Rússia/China.
Sem dúvida, esses blocos não são monolíticos, nem abrangem todos os países relevantes. Mas influenciam em larga medida o curso dos acontecimentos. Sem o apoio financeiro e militar de seus patronos do Ocidente, o fantoche Zelenski já teria sido varrido para a lata de lixo da história.
À medida em que a guerra em curso se prolonga e intensifica, a Otan aumenta seu arsenal, não apenas para suprir a Ucrânia, mas também em vista da ampliação do confronto. “Se a Europa quer evitar a guerra, ela deve se preparar para a guerra” escreveu em 19 de março passado um plumitivo francês, retomando o velho argumento que sempre justificou as corridas armamentistas. A propósito dessa e de outras ameaças europeias, Vladimir Putin lembrou como terminaram as invasões de seu país por Napoleão em 1812 e por Hitler em 1941.
João Quartim de Moraes é professor universitário, formado em Filosofia e em Direito na Universidade de São Paulo. Em 1968-69 participou da resistência clandestina à ditadura militar. Passou os anos setenta exilado na França. Após a anistia, voltou ao Brasil. Professor de Filosofia na Unicamp Publicou vários livros e muitíssimos artigos no Brasil e na Europa. É pesquisador sênior do Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Seus temas centrais: história do pensamento político, materialismo antigo e moderno, marxismo, instituições brasileiras.
Este é um artigo de opinião. As opiniões expressas pelos autores não refletem, necessariamente, a linha editorial da Fundação Maurício Grabois.