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    Ciência e Tecnologia

    Como algoritmos estão substituindo a política nas cidades brasileiras — e por que isso é um risco

    Adoção de tecnologias digitais na gestão urbana — especialmente na segurança pública — está entregando o controle social a grandes empresas privadas. Autor analisa o caso do Smart Sampa para discutir como a substituição da política democrática por soluções algorítmicas aprofunda a lógica capitalista no espaço urbano

    POR: Cristhiano Duarte

    28 min de leitura

    Câmera de vigilância em zona urbana de Bogotá, Colômbia. Foto: Jusezam, via Wikimedia Commons — CC BY-SA 3.0
Foto de Jusezam, via Wikimedia Commons — CC BY-SA 3.0
    Câmera de vigilância em zona urbana de Bogotá, Colômbia. Foto: Jusezam, via Wikimedia Commons — CC BY-SA 3.0 Foto de Jusezam, via Wikimedia Commons — CC BY-SA 3.0

    Fantasmas assombram as cidades inteligentes – Parte 2: o smart solucionismo policial

    Começo a coluna do mês de junho como de praxe, pedindo desculpas aos meus queridos leitores e leitoras. Meu planejamento deixou de ser uma realidade quando me foi oferecida a oportunidade de desenvolver uma parte significativa da minha pesquisa em terras Trumpianas. O que tenho receio de estar vendo emergir por aqui mais cedo ou mais tarde também vai aparecer na nossa humilde digressão mensal [1]. 

    Este é o segundo artigo da série Fantasmas assombram as cidades inteligentes. O primeiro [2], intitulado Tecnofeudalismo ou capitalismo? A separação política e econômica nas cidades inteligentes, abriu o debate sobre os impactos das novas tecnologias na organização urbana sob a lógica do capital. Esse é o fio da meada que a coluna desse mês visa expandir.

    Evitando entrar em rota de colisão com os proponentes do tecnofeudalismo [7,8], quero mostrar como a emergência e expansão do controle digital da vida contemporânea podem e devem ser entendidas como mais uma expansão do econômico sobre o político. Uma expansão tão inimaginável que nem mesmo uma das mais sofisticadas intelligentsia do Marxismo ocidental conseguiu antecipar [5]. 

    À luz da separação entre o político e o econômico e da presente tentativa (bem-intencionada?) do senado brasileiro em propor uma regulamentação da inteligência artificial [9], ambas dentro dos marcos do capitalismo contemporâneo, podemos nos perguntar: o que as chamadas cidades inteligentes e a boa e velha questão do policiamento têm a ver com isso? Bom…colocando mais uma vez meu gasto chapéu de materialista histórico, gosto de pensar que existe uma resposta minimamente razoável pra essa pergunta. 

    Em uma palavra: tudo! 

    Smart Cities e o Solucionismo do Vale do Silício

    Talvez um bom ponto de partida seja a problematização do conceito das smart cities (cidades inteligentes), tal como a adotada por Evgeny Morozov e Francesca Bria [10]. Segundo xs autorxs, o próprio termo aponta algo que não deveria passar em branco: o que há de tão inteligente nas chamadas cidades inteligentes que as tornam dignas de receber tal qualificação? 

    Smart, aqui traduzido livremente como inteligente, é o adjetivo quintessencial da nossa era digital [11]. Nos acostumamos a ver smart coisas em todos os cantos. Escovas de dente smart, TVs smart, relógios smart, telefones smart, portarias smart, lâmpadas smart, fechaduras smart, casas smart a lista é praticamente infinita. Entretanto, não é tão fácil apontar o que há de inerentemente inteligente em todos os objetos — se alguma coisa. O que parece é que o rótulo tenta capturar uma constelação ambígua de significados, e mais frequentemente é usado como um sinônimo sexy daquilo que se propõe a ser flexível, autocontrolável, autônomo, engenhoso, inovador, futurista, ou até mesmo ecologicamente correto. Com todas essas classificações positivas, quem em sã consciência poderia se opor a uma ‘smart coisa’? Não gostaríamos todos de viver, então, numa cidade smart? Mais atrativas, as cidades inteligentes atrairiam cidadãos inteligentes. Por conseguinte, cidadãos inteligentes atrairiam dinheiro inteligente. Naturalmente, dinheiro inteligente seria usado pro bem comum, provavelmente no ‘projetamento’ de mais coisas ainda mais smart. Pronto, ciclo fechado, fim da história 2.0, agora na versão ‘smart’. Mas qual o início desse fim da história, e, mais importante, o que ele esconde sob véu da normatividade do conceito ‘smart.

    Leia também: STF acerta ao fixar responsabilidade para big techs, por Orlando Silva

    Aqui é onde começamos a sair do superficial e ir ao complexo. Dando uma pista sobre uma possível mudança no regime de acumulação do grande capital [12], segundo quem estuda a genealogia do termo, o conceito das smart cities (cidades inteligentes) aparece pela primeira vez quando da reorientação de grandes empresas de tecnologia—como a IBM, por exemplo—para além do modelo tradicional de vendas de hardware e software, em direção à venda de serviços, incluindo consultorias. No caminho para efetivar a sua estratégia para um ‘planeta mais inteligente’, através de uma re-orientação para a entrega de soluções otimizadas tanto para o setor público quanto para o setor privado, a IBM tropeçou no termo ‘smart’ com relação às cidades, colocando a terminologia em ampla circulação na comunidade dos negócios. Vale dizer que a empresa inicialmente registrou o termo ‘smarter cities’ (cidades mais inteligentes, em tradução livre), mas acabou terminando sem o grau aumentativo: apenas ‘smart cities’. Outros termos que enfatizavam a dimensão ecológica ao invés da dimensão tecnológica caíram em desuso: a cidade verde, a cidade sustentável, a cidade amiga da natureza, a cidade com zero carbono e etc. Ainda que todas essas ‘cidades’ sejam tão ou mais inteligentes que as smart cities, agora parece que até o desafio de encontrar meios acessíveis de enfrentar o colapso climático passa por soluções corporativas digitais, numa mostra clara do solucionismo do Vale do Silício: entregue-me teus dados e devolvo-te melhores soluções. Esse ponto vai ficar mais claro em alguns minutos, mas antes precisamos ir um pouco mais fundo. 

    Segundo Morozov e Bria, da perspectiva das cidades, as motivações por trás da opção pelas soluções de questões urbanas baseadas na captura-cum-entrega de dados para grandes empresas de tecnologia podem ser (a grosso modo) classificadas em dois tipos: normativa [15] e pragmática. A primeira reflete os esforços de longa data de empregar tecnologias disponíveis para atingir objetivos políticos ambiciosos e universalmente aceitos, tais como: participação política direta, personalização de serviços públicos, desburocratização da interação com a máquina governamental local e nacional, criação de espaços públicos urbanos menos discriminatórios, redução de tensões e promoção da criatividade e das descobertas acidentais—algo como o uso da tecnologia como consequência natural do caldo de cultura em que estamos imersos. Já a segunda motivação, a pragmática, inclui uma gama muito maior e heterogênea de objetivos, mas com uma forte relação material entre si. Algumas cidades optam por tecnologias smart porque essas vendem a ideia de uma solução (algoritmicamente) inteligente para problemas específicos: congestionamento causado por vias construídas sem planejamento de longo prazo, coleta de lixo por caminhões demasiado grandes que rodam vazios ou demasiado pequenos e em constante stress mecânico, entupimento de sistemas antigos de captação de águas pluviais, detecção de fenômenos climáticos extremos que colocariam  em risco populações que não tiveram escolha a não ser construírem moradias em locais ‘de risco’ e etc. Algumas cidades vão atrás das tecnologias smart porque elas oferecem contribuições positivas no balancete dos ‘gestores’—um corte de gastos com uma promessa de melhoria na qualidade dos serviços, o que é muito bem visto aos olhos da austeridade neo-liberal. Nesse contexto, seria necessário apenas um amplo sistema de sensores. Eles seriam responsáveis pela captura e envio de dados em tempo real para uma central de controle com um algoritmo integrado que, em tese, determinaria as melhores rotas, controlaria os semáforos baseados no histórico de uso das vias, despacharia os caminhões de limpeza urbana quando necessários, acionaria uma equipe de limpeza ao entender que a próxima chuva tem a capacidade de causar uma inundação e etc. 

    Os sensores a tudo ouvem e tudo veem (dados, dados, dados…), o algoritmo aprende e operacionaliza a gestão (controle). As causas dos problemas urbanos nunca são enfrentadas diretamente. O véu tecnológico do solucionismo do Vale do Silício vendido, ou melhor, comprado por quem administra as nossas cidades, diz que são os dados que irão nos salvar. Causas são substituídas por correlações, numa mostra clara de como o caldo de cultura promovido pelos arautos da Inteligência Artificial começa a colonizar a maneira como pensamos [16]—nada de novo no front.  

    O ‘benevolente’ solucionismo californiano gera lucro, e quanto a isso não podemos ter dúvidas. O mercado—porque é disso que se trata — das smart cities deve alcançar o valor de 3 trilhões de dólares em 2025 [17]. O McKinsey Global Institute, por exemplo, estima que o potencial impacto econômico dos produtos e aplicativos ligados à Internet das Coisas deve se colocar na faixa de 3,9 – 11,1 trilhões de dólares em 2025 [10].  Smart, ou inteligente, é a acumulação de riqueza por um punhado de empresas de tecnologias que não trabalham com a democratização das decisões públicas, mas que vendem soluções pra questões absolutamente concretas e reais através da coleta massiva e da análise automatizada de dados—produzidos por nós, e entregues de mão beijada ao capital digital [40]. Tudo sob o véu dessa entidade semi-mística que passamos a chamar de inteligência artificial [41]. 

    Leia mais: IA não é inteligente nem artificial, por que? História, limites e desafios éticos da tecnologia

    Entretanto, como Marx bem nos ensinou, a ‘realização’ e a ‘distribuição’ são apenas dois dos momentos vividos pelo capital [18]. O segredo intencionalmente esquecido pelos economistas liberais se encontra na fundamentalidade da produção, e a força de trabalho, fator fundamental no momento da produção, ou commodity fundamental pra ser mais exato, a fim de ser produzido e reproduzido, deve ser controlada custe o que custar.

    Smart Cities e o Poder de Policiamento – Parte 1

    Dentro do roll de opções pragmáticas citadas acima, uma dimensão parece ser central no nosso argumento. Algumas das chamadas smart cities têm ido ao mercado em busca de ‘soluções inteligentes’ para segurança pública e policiamento urbano. Seja em mega eventos como as Olimpíadas [19] ou o Carnaval [20] — salva-vidas econômicos ancorados no setor do turismo pra cidades que outrora eram grandes centros produtores. Seja no dia a dia da vida das cidades, visto que independentemente do tamanho do aglomerado urbano, o solucionismo policial segue a mesma cartilha: de circuitos integrados de câmeras de vigilância [21] ao policiamento preditivo [22] — passando, obviamente, pelo patrulhamento de fronteiras [23] e decisões de seguridade social [24]. Quanto maior a vigilância, melhor os dados coletados. Quanto mais fiel o dataset, melhor o treinamento do algoritmo. Quanto mais eficiente o algoritmo, melhor a solução empregada. Simples assim! O que os ‘gestores smart’ parecem querer esquecer é que a solução algorítmica nunca se debruça sobre o motivo da convulsão social, mas sim sobre as melhores maneiras de pacificá-la [42]. Ainda que esse não fosse o caso, a rendição do político para o econômico que estamos presenciando é patente, pra não dizer patética. 

    Dentro do cenário nacional, considere, por exemplo, o caso mais dramático dos últimos anos: o projeto Smart Sampa, ou o largo passo em direção à entrega total da responsabilização democrática para o econômico que não foge à regra na cidade de São Paulo. Como o próprio website do programa se gaba em dizer: inteligência pra deixar a cidade mais segura [25]—um tapa na cara de todos aqueles e aquelas que trabalharam no policiamento municipal e não têm sido suficientemente inteligentes para pacificar São Paulo. Não restam dúvidas de que o programa se encaixa perfeitamente no contexto das smart cities, todas as caixas são marcadas: tecnologia de ponta, eficiência algorítmica, (20 mil) câmeras inteligentes de vigilância, análise de dados para identificação facial, uma central de processamento remoto, drones de patrulha e até mesmo um cão robô [26]. O maior sistema de monitoramento de segurança da América Latina! O negócio—porque é disso que se trata, certo?—conta até com um ‘prisômetro’, uns dados soltos que aludem a um possível aumento da eficiência policial, mas que não dizem muita coisa quando analisados de maneira isolada [25]. Qual o aumento em relação aos anos anteriores, qual foi o impacto direto na redução da ‘criminalidade’ e pequenos furtos nas regiões integradas, quantas das pessoas presas eram não racializadas, quantos dos flagrantes resultaram em prisões, quantas mulheres foram salvas da violência doméstica, quantos chefes de facções foram identificados, qual o impacto na prevenção de futuros ‘crimes’, como os dados (se eles existem) são usados para o treinamento do algoritmo de identificação facial?

    No detalhe, o Smart Sampa é, na verdade, um serviço prestado por um consórcio contratado pela prefeitura municipal da cidade de São Paulo “cujo objetivo é garantir uma pronta resposta na segurança à população de São Paulo”—guardem bem essa passagem. O consórcio, o SMART CITY SP, é formado pelas empresas CLD – Construtora, Laços Detentores e Eletrônica LTDA (construção civil); Flama Serviços LTDA (vigilância e segurança privada); Camerite Sistemas S.A (desenvolvimento de softwares); e PK9 Tecnologia e Serviços LTDA (serviços), com um custo mensal para o serviço de R$ 9,8 milhões, e duração de 60 meses—uma bagatela de R$ 588 milhões ao todo! Uma rápida busca no Portal da Transparência e no Jusbrasil revela que 3/4 das empresas envolvidas no consórcio têm uma ficha corrida de processos trabalhistas tão longa que faria inveja a qualquer ‘criminoso’ que essas empresas se dedicam a ajudar a combater. Outro detalhe não pode passar despercebido. Ainda que o edital e a posterior contratação do serviço tenham sido oficialmente celebrados, a licitação teve que ser suspensa em duas ocasiões distintas, e provocaram investigações pelo Ministério Público com relação a potenciais brechas em áreas incluindo segurança de dados—o potencial perfilamento racial, num sistema que já é feito para encarcerar desproporcionalmente uma população jovem, negra e periférica também foi motivo de debate [28]. Se algoritmos de aprendizado de máquina e inteligência artificial apenas repetem padrões de correlações já encontrados nos dados em que são treinados, basta uma rápida lida no Anuário Brasileiro de Segurança Pública [29] pra saber exatamente quem serão os alvos preferenciais do smart solucionismo oferecido pela Sampa Inteligente

    De maneira geral, o programa Smart Sampa se enquadra perfeitamente no conjunto heterogêneo de ações pragmáticas que se ligam à ideia de uma Smart City. Da forma como planejado até a sua execução, o programa exala ‘tecnologia’ por todos os poros: captura massiva e análise de dados, alta eficiência, controle algorítmico em tempo real, vigilância remota e etc. Tudo provido e promovido por empresas privadas de consultoria e segurança. Tudo organizado e tudo pago a preço de ouro pelo Estado [30]. Entretanto, ao remover a tampa cravejada de diamantes dessa smart caixa de pandora, minha leitura é que estamos boquiabertos admirando um monstro muito mais assustador e infinitamente mais incompreensível [31] do que gostaríamos de ter que encarar nessa quadratura histórica.   

    Smart Cities e o Poder de Policiamento – Parte 2

    É claro que o maior programa de câmeras de vigilância da América Latina é somente a face monstruosa mais visível e uniformizada do que convencionamos chamar de ‘policiamento’. O policiamento hierarquizado, armado e ostensivo é provavelmente a imagem que temos em mente quando falamos do poder ‘policial contemporâneo’. Ainda que tenhamos usado o Smart Sampa como ponto focal da discussão, eu gostaria de abrir um pequeno parênteses e ir um pouco além dessa noção simplificada das coisas. Essa expansão é fundamental dentro da nossa articulação, ou seja, da potencial capitulação do político para o econômico. Para tanto, vou seguir de perto a problematização advogada por Mark Neocleous [32].

    Numa análise muito convincente, Mark desafia o mito liberal de que as polícias nos ‘mantêm a salvo’ ou ‘fazem cumprir a lei’. Ele argumenta que o ‘poder de polícia’ está fundamentalmente ligado com a produção e reprodução de uma ordem social específica. No nosso caso, uma ordem primariamente determinada pelas leis de movimento do imperativo do mercado. Ele também aborda a evolução histórica do conceito e mostra que originalmente o ‘policiamento’ abrangia uma gama mais ampla de funções administrativas cujo objetivo era o ordenamento — no sentido mais forte do termo — da sociedade civil: regulação econômica, saúde pública, gerenciamento demográfico e etc. Nesse sentido, as polícias (ou o policiamento) não estariam limitadas a uma força hierárquica institucionalizada, com armas e distintivos funcionais, e reativa ao ‘crime’, mas sim a um poder proativo e produtivo que molda e organiza a sociedade. Segundo Neocleous, o conceito de ‘ordem’ é tão crucial quanto o da ‘lei’ na famigerada frase: lei e ordem — o que no caso brasileiro, diga-se de passagem, assume contornos ainda mais interessantes, dado o positivismo expresso na bandeira nacional. Em resumo, poderíamos dizer, que o poder policial está profundamente imbricado com a ideologia e política de criação e manutenção do ordenamento social capitalista — em qualquer momento do fluxo de capital [18]; seja o de produção [33], realização [10] ou re-distribuição [24].

    Esse sentido estendido do termo ‘policial’, o da fabricação e manutenção do ordenamento social, nos dá outra dimensão de análise para o fenômeno das cidades inteligentes—e, consequentemente, da separação entre o político e o econômico. Olhando pelo lado da redistribuição, veja por exemplo o caso da smartificação do sistema de detecção de suspeitas de fraudes na Receita Federal holandesa [24], uma automação que segundo consta arruinou a vida de milhares de famílias naquele país. Outros bons exemplos são a entrega dos dados da NHS britânica a empresas de tecnologia para que elas treinem seus algoritmos [34] com dados do sistema público de saúde; a mais nova recomendação que o próprio governo do Reino Unido deu axs trabalhadorxs: “abracem a IA ou corram o risco de serem deixados para trás” [35]; sem falar, claro, no distópico sistema de predição de assassinatos que o país vai tentar implementar [36]. Se focarmos na produção, no sentido estrito, no revelador Cyberboss, Craig Gent deixa claro como uma outra vertente da smartificação vem sendo usada no controle coercivo e ‘inteligente’ da força de trabalho dos armazéns das grandes varejistas internacionais [33]. Por fim, o Smart Sampa e seus correlatos compõem o exemplo mais gritante da fabricação e manutenção da ordem capitalista no momento da realização do capital. O uso militar da IA provavelmente também figuraria nessa mesma categoria [37,38], mas falaremos mais sobre isso em alguma coluna futura.

    Mas para onde todos esses exemplos apontam?

    Capitulação Final ao Capital?

    Na nossa primeira coluna, da série vimos como certas relações de propriedade sociais deram origem a um sistema cuja dependência brutal do mercado coloca na ordem do dia leis de movimento que atribuem racionalidade inquestionável à competição, maximização do lucro e acumulação infinita. Seguindo o raciocínio da finada Ellen Wood, discutimos também como essas particulares relações e as leis de movimento por elas engendradas foram as responsáveis pela histórica captura do político pelo econômico—uma divisão que, segundo a própria autora, seria a marca mais notável do capitalismo. Já nessa segunda coluna, nos dedicamos a analisar, ainda que brevemente, o fenômeno das cidades inteligentes, (smart cities) uma solução pragmática, com viés tecnológico, dentro dos marcos da racionalidade capitalista para problemas concretos da realidade urbana. É na encruzilhada desses dois caminhos que encontramos a questão fundamental que quero discutir com vocês: o que poderia nascer da universalidade de um solucionismo que se apoia no Vale do Silício dentro de um ordenamento social que já coloca em xeque o pouco que resta da democracia — mesmo na sua frágil versão liberal?

    Sinceramente, a tecla que venho batendo há tempos é que a tendência que vamos enfrentar já está colocada. A crescente smartificação da vida social é nada mais, nada menos, do que a entrega do monopólio da resolução de conflitos sociais para as grandes empresas de tecnologia. Em outras palavras, numa capitulação total — pra não dizer patética — do político para o econômico, estamos presenciando a olhos vistos a entrega do Estado para uns pares de mãos de tech bros libertários do Vale do Silício. Um movimento que, ao meu ver, colocaria um fim até mesmo no frágil regime político liberal que convencionamos chamar de democracia. Eleições para quê? A provedora de smart soluções tem um algoritmo muito mais eficiente e muito melhor treinado que na presença de um volume apropriado de dados consegue resolver qualquer situação, com uma ‘neutralidade’ técnica que partido político algum jamais poderia empregar. Se o todo poderoso algoritmo não for capaz de resolver um problema é sinal de que o faltam dados suficientes pra avaliar a questão… aliás, quem classifica o que é ou não um problema, senão a toda poderosa entidade mágica que tudo sabe? Lembrando o velho Ludwig Feuerbach, criamos uma entidade que, agora, nos vemos forçados a obedecer. 

    Entretanto, diferentemente de outras inversões típicas, ainda nos é muito claro quem está por trás dessa criatura mítica: meia dúzia de CEOs que sabem muito bem jogar as regras do jogo. Capitalistas que se apropriaram do conhecimento socialmente construído ao longo de séculos, que se beneficiaram do financiamento estatal (e portanto do trabalho alheio) e que dada a materialidade do serviço prestado pelas suas empresas, têm objetivos muito claros: a fabricação e manutenção de uma ordem social — as vezes vestindo as fardas do exército [39]!

    Capitalismo, Tecnofeudalismo ou qualquer outra coisa no meio do caminho. Do ponto de vista da responsabilização e da tomada de decisões públicas, qualquer que seja o ordenamento social em discussão, o que temos não é um regime democrático. Cabe a nós, às nossas organizações e partidos entender essa questão de uma vez por todas e tomar as rédeas da história em nossas mãos. Capitular ao capital não me parece ser uma opção viável, ainda mais agora que fascismo saiu do armário. Eu sei, camaradas, não fazemos história no vácuo, mas sim nas condições que nos são dadas. Bom, as condições estão dadas, que tal pensarmos em fazer história?

    Relembrar é viver

    Nosso primeiro encontro dentro desse grande arco, Tecnofeudalismo ou capitalismo? A separação política e econômica nas cidades inteligentes foi escrito ainda na ressaca da posse do presidente estadunidense, com a presença marcante dos tech bros libertários mais famosos do Vale do Silício, esta segunda parcela segue imediatamente na esteira do primeiro divórcio litigioso de grande escala dentro do governo americano: o tão esperado racha entre o bilionário que controla o X, e o bilionário que atualmente reside na Casa Branca [3]. Uma contradição que na superfície parece não fazer tanto sentido, certo? Bom… mais ou menos. Talvez precisemos buscar ajuda no velho Hegel, e lembrar da dialética da unidade e da diferença [4] para que possamos abandonar o superficialmente simples e partirmos em direção a um todo mais complexo. E isso não é uma tarefa fácil. Tentar fazer sentido das contradições do mundo material é exatamente o cerne da nossa coluna: uma análise materialista histórica das chamadas novas tecnologias disruptivas. Mas, antes, que tal um breve resumo do que já vimos? Muito aconteceu nos últimos meses, e nem mesmo eu consigo lembrar de tudo aquilo que já escrevi nessas colunas. 

    Argumentamos que o atual ordenamento social em que vivemos foi historicamente determinado, tem especificidades próprias e obedece a leis de movimento que se baseiam num determinado conjunto de relações sociais de propriedade [5,6]. Vimos que, marcadamente, nesse sistema o mercado não é uma oportunidade, mas um imperativo, e que essa dependência profunda é responsável pela famosa Santíssima Trindade: competição, acumulação infinita, e maximização do lucro—onde a extração de valor é alegadamente feita por meios não-coercitivos. Por fim, dedicamos um bom tempo da coluna explorando a brutal separação entre o político e o econômico, marca de um sistema não-democrático que privatiza pedaços da atividade coletiva humana e os coloca completamente fora do alcance do escrutínio, controle e da responsabilização pública direta—puro materialismo histórico com contornos Woodianos [5] e Brennerianos [6]. 

    Retomarei esse ponto na próxima coluna. Agradeço imensamente por me acompanharem até aqui. Se cuidem!

    Cristhiano Duarte é pesquisador da Chapman UniversityÉ membro do Grupo de Pesquisa da FMG sobre Trabalhadores e a Era Digital.

    Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.


    Referências

    [1] Escrevo de olho numa TV ligada no canal ABC7. A cobertura ao vivo mostra algo muito parecido com um caveirão, uns carros pretos sem identificação e umas dezenas de agentes do ICE à paisana capturando imigrantes a luz do dia em Los Angeles. Devido processo legal deve ser coisa do passado, eu suspeito. Múltiplas pessoas foram detidas em vários locais, diz a reportagem. Me parece que ao menos há alguma resistência dos grupos de ativistas locais. O pessoal do café onde estou continua fazendo business as normal.

    [2] Duarte, Cristhiano. Tecnofeudalismo ou capitalismo? A separação política e econômica nas cidades inteligentes, Fundação Maurício Grabois, 18 fev. 2025.

    [3] Torres Freire, Vinicius. Divórcio de Trump e Musk passou rápido de briga sobre impostos a treta típica da extrema direita, Folha de S.Paulo, 5 jun. 2025.

    [4] McNally, D. The dialectics of unity and differencein the constitution of wage-labour: On internal relations and working-class formation, Capital & Class, 39(1), 2015.

    [5] Wood, Ellen Meiksins. Democracy against Capitalism: Renewing Historical Materialism. Cambridge University Press, 1995.

    [6] Definido originalmente por Robert Brenner, relações de propriedade sociais (social-property relations, no original em inglês) são as “relações entre produtores diretos, entre exploradores, e entre exploradores e produtores diretos, de maneira que, tomadas juntas, tornam possível/especificam o acesso regular de indivíduos e famílias aos meios de produção (terra, trabalho e ferramentas) e/ou ao produto social em si mesmo” (Brenner, Robert. Property and Progress: Where Adam Smith Went Wrong, em Marxist History-Writing for the Twenty-First Century, editado por Chris Wickham, pp. 49–111, Oxford: Oxford University Press, 2007). Analisando o mesmo conceito, ainda que dentro de um estudo sobre o capitalismo, Maïa Pal acrescenta que uma certa vertente marxista [Marxismo Político] “vem continuamente enfatizando que as relações de propriedade sociais se referem não somente ao ensemble do político e do econômico, mas também ao jurídico, administrativo, cultural, religioso e etc. [São] relações que constituem através de uma gama de conflitos de classe as condições do desenvolvimento capitalista (Pal, Maia. Radical Historicism or Rules of Reproduction? New Debates in Political Marxism, Historical Materialism, vol. 26, Issue 3, 2021).

    [7] Durand, Cédric. How Silicon Valley Unleashed Techno-Feudalism. Verso Books, 2024.

    [8] Varoufakis, Yanis. Technofeudalism: What Killed Capitalism. Metropolitan Books, 2023.

    [9] Senado Federal. Projeto de Lei 2.630/2023. Acesso em 31 jan. 2025.

    [10] Morozov, Evgeny e Bria, Francesca. A Cidade Inteligente: Tecnologias Urbanas e Democracia. Ubu Editora, 2020.

    [11] O uso da terminologia ‘era digital’ merece um esclarecimento. Nesse texto, ela é usada de maneira muito livre e sem rigor, quase que como uma figura de linguagem displicente. Outras autoras e outros autores fazem uma problematização muito apropriada e ácida sobre o que o termo mostra e, mais importante, sobre o que ele esconde. Por ‘era digital’ me refiro principalmente as relações sociais sob o capitalismo contemporâneo, onde não só a interação com, mas também a propagação de todas as formas de conhecimento é facilitada e  predomina em meios digitais. 

    [12] David Kotz define um ‘regime de acumulação’ [capitalista] como um conjunto de instituições e ideias dominantes que promovem a acumulação de capital ao facilitar ‘altas taxas de lucro, crescimento da demanda acumulada e investimentos produtivos de longo prazo (Kotz, David. End of the Neoliberal Era? Crisis and Reconstructing in American Capitalism. NLR 113, 2018).

    [13] Paroutis, Sotirios, Mark Bennett, and Loizos Heracleous. A strategic view on smart city technology: The case of IBM Smarter Cities during a recession. Technological Forecasting and Social Change, 89,  262-272 (2014); Anthopoulos, Leonidas G. Understanding the smart city domain: A literature review. Transforming City Governments for Successful Smart Cities. Springer International Publishing, 9-21 (2015).

    [14] Morozov, Evgeny. Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. Ubu Editora, 2018.

    [15] Por honestidade acadêmica, sigo a nomenclatura dxs autorxs, ainda que eu preferisse o termo ‘cultural’ ao invés de ‘normativo’.  Ao meu ver, a descrição da ‘normatividade’ de Bria e Morozov segue de perto o entendimento do que é ‘cultura’ ou ‘cultural’ do crítico de cultura marxista Raymond Williams. 

    [16] Peço paciência aos leitorxs que talvez não entenderam essa parte. Prometo que em alguma coluna futura vou analizar com mais calma a diferença entre ‘causa’ e ‘correlação’ e como a substituição da primeira pela segunda é potencialmente nociva ao nosso ordenamento social—qualquer que seja ele, posto que problemas sociais são apenas mitigados e não prevenidos. Por ora, imagine que algoritmos de aprendizado de máquina são, ao fim e ao cabo, apenas ferramentas estatísticas clássicas, e como tal sofrem com  uma  dificuldade inerente de lidar com a análise dos porquês (causas) e na melhor das hipóteses apenas percebem as relações entre os objetos (correlação).

    [17] A título de comparação, o produto interno bruto do Brasil em 2024 foi de aproximadamente 2.11 trilhões de dólares. Fonte: IBGE. Acesso em 13 jun. 2025.

    [18] Harvey, David. A companion to Marx’s Capital. Verso (2010).

    [19] How algorithmic video surveillance was used during the Paris Olympics. Le Monde, 16 ago. 2024.

    [20] Smart Dog: cão promete ajudar a achar desaparecidos e foragidos no Carnaval. UOL, 1 mar. 2025.

    [21] Prefeitura de Juiz de Fora. Acesso em 13 jun. 2025.

    [22] Dodd, Vikram. UK creating ‘murder prediction’ tool to identify people most likely to kill, The Guardian, 8 abr. 2025.

    [23] Biddle, Sam. Google is helping the Trump administration dewploy AI along the mexican border, The Intercept, 3 abr. 2025.

    [24] Heikillä, Melissa. Dutch scandal serves as a warning for Europe over risks of using algorithms, Politico, 13 jun. 2025.

    [25] Prefeitura de São Paulo. Smart Sampa. Acesso em 13 jun. 2025.

    [25] Uma máquina de quatro patas controlada por controle remoto que é capaz de gravar imagens (dados) e transferi-las para uma central de processamento (algoritmo), afim de identificar foragidos e etc. Um aparato de patrulha que remete diretamente a vários episódios da série Black Mirror. Entretanto, uma outra característica chama a atenção. O robô, ou o projeto, é chamado de SentinelaX, o mesmo nome dos caçadores de mutantes dentro do universo Marvel. Minha leitura é que esse segundo paralelo é mais revelador. Nos quadrinhos, as Sentinelas eram algo como uma força com poder de policiamento e com um certo grau de controle humano, mas com uma inteligência de máquina cuja única função era a caça, captura e eliminação da ‘ameaça mutante’. Em São Paulo, a SentinelaX (ainda) não carrega armas, mas tem uma clara função: a caça para a posterior captura e eliminação de criminosos. O nome é ‘brilhante’.

    [27] Prefeitura de São Paulo. Smart Sampa – Segurança Urbana. Acesso em 13 jun. 2025.

    [28] Angelica, Mari. Facial recognition surveillance in São Paulo could worsen racism, Al Jazeera, 13 jul. 2023.

    [29] Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024. São Paulo: FBSP, 2024.

    [31] Amodei, Dario. The Urgency of Interpretability. Blog pessoal, 2025.

    [32] Neocleous, Mark. A Critical Theory of Police Power. Verso, 2021.

    [33] Gent, Craig. Cyberboss. Verso, 2024.

    [34] Milmo, Dan & Stacey, Kiran. What does AI plan mean for NHS patient data and is there cause for concern?, The Guardian, 13 jan. 2025.

    [35] Milmo, Dan. Workers in UK need to embrace AI or risk being left behind, minister says, The Guardian, 14 jun. 2025.

    [36] Idem item 22.

    [37] Strategic Defence Review – UK Ministry of Defence. 2025.

    [38] Singh, Kanishka. OpenAI wins $200 million US defense contract, Reuters, 16 jun. 2025.

    [39] Baker, Kelsey. Tech execs are joining the Army: no grueling boot camp required, Business Insider, 2025.

    [40] Dantas, Marcos et al. O valor da informação. Boitempo, 2022.

    [41] Russell, Stuart & Norvig, Peter. Artificial Intelligence: A Modern Approach. 4ª ed. Pearson, 2020.

    [42] Neocleous, Mark. Pacification: Social War and the Power of Police. Verso, 2025.

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