Por sugestão da Fundação Maurício Grabois – Seção Piauí e proposição da deputada Elisângela Moura, do PCdoB, a Assembleia Legislativa prestou justa homenagem ao centenário de Clóvis Steiger de Assis Moura (1925-2003), em sessão solene realizada na última quarta-feira, 25 de junho. Na ocasião me pronunciei sobre o homenageado.
Da militância à obra seminal: Rebeliões da Senzala
Nascido em Amarante, no dia 10 de junho de 1925, Clóvis Moura foi um dos intérpretes do Brasil que, ao longo de décadas, navegou entre o Piauí, o Rio Grande do Norte, a Bahia e São Paulo. Militante engajado em movimentos sociais e partido político de esquerda, foi consagrado pela obra Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas.
“Rebeliões da Senzala” é obra obrigatória para os estudos sobre a resistência negra ao cativeiro, tendo sensibilizado e mobilizado o movimento negro na sua luta contra o racismo e ao apagamento de sua cultura, expressos nas ações de remanescentes de quilombos e daqueles que defendem a memória e os direitos sociais da população negra.
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Por intermédio de sua obra, o piauiense deixa claro seu pensamento vinculado à teoria marxista. Assim como Marx, Moura foi um intelectual da práxis que lutou pela justiça social e a transformação do país, atuando como militante do movimento negro e Partido Comunista do Brasil.
Como jornalista, foi “homem de imprensa”, mesmo sem ter frequentado um curso superior, pois não possuía formação universitária, se dizia um autodidata, tendo recebido o título de doutor com notório saber pela Universidade de São Paulo.
Assim como ocorre com muitas pessoas pobres do interior do Nordeste, sua família precisou migrar para cidade grande, em 1935, para Natal (RN), onde Moura estudou em colégios de padres, aprendendo a amar os livros, quando começou a conhecer os clássicos da literatura e da história, mas também aprendeu a odiar e a se rebelar contra o rigor e os castigos impostos pela escola confessional.
Quando sua família novamente se muda para a Bahia – Salvador (1940) e Juazeiro (1942) –, passa a ter contato com intelectuais de esquerda, que ajudam a construir, ao longo dos anos, sua identidade negra e de crítica da realidade brasileira da época.
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Nesse período, se aproximou do Partido Comunista do Brasil (PCB), particularmente após 1945, dada a expressão que ganha a liderança de Luís Carlos Prestes no panorama nacional. Da cultura política comunista não mais se afastaria, cujo envolvimento implicou diversos ativismos partidários, como eleitor, militante e dirigente.
Também foi nesse período o seu conhecimento de obras clássicas como O Manifesto Comunista, de Marx e Engels, Os Fundamentos do Leninismo, de Stálin, e O ABC do comunismo, de Bukharin. Essa interpretação da sociedade define os inimigos de classe que irão impactar a sua obra: a burguesia, o capitalismo e o imperialismo.
Em Salvador, nesse contexto, circulava o jornal O Momento, organizado pelo Comitê Regional do Partido, dirigido por Alberto Passos Guimarães. Moura se aproximou e contribuiu com esse periódico em função das bandeiras que pregava: a luta antifascista, defesa da democracia e da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
Na Bahia fervilhavam intelectuais de esquerda. Após o fim do Estado Novo, conheceu, entre outros, Astrojildo Pereira, Álvaro Moreira, Aníbal Machado, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Orígenes Lessa e Jorge Amado.
Aproximou-se também da Associação Brasileira de Escritores, que possuía muitos filiados vinculados ao Partido, mas congregava intelectuais “progressistas”, grandes personalidades do universo cultural brasileiro, tais como: Caio Prado Júnior, Aurélio Buarque de Holanda, Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido, José Lins do Rego, Mário de Andrade, Raquel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade e Monteiro Lobato.
Outrossim, o Partido Comunista foi bastante fragilizado depois de ser posto na ilegalidade, em 1947, o que levou Clóvis Moura a se candidatar a deputado estadual, pelo PSB, na Bahia. Após a eleição, sem lograr êxito, vai para São Paulo, em 1951, onde se tornou jornalista profissional, foi editor e escreveu para vários órgãos de imprensa.
Veja programa da TV Grabois que debate que celebra o centenário de Clóvis Moura debatendo a atualidade de suas ideias:
Influenciado pelo materialismo histórico e dialético, Moura começa a pesquisar e escrever sobre a escravidão, a resistência negra e o negro na história do Brasil. Dessa perspectiva nasce a sua principal obra: Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas, cuja primeira edição é de 1959. Predominou no livro a chave explicativa do marxismo e da luta de classes na análise da escravidão no Brasil, em seus diversos aspectos — em particular, com foco na rebeldia, na resistência e no inconformismo ao sistema escravista e capitalista.
Sua obra, e esse livro em particular, marcou a historiografia brasileira pelo compromisso do autor em transformar o negro em sujeito de sua história. Embora não fosse esse o objetivo de Clóvis Moura, acabou se contrapondo à obra de Gilberto Freyre — mesmo que Casa-Grande & Senzala tenha aparecido como uma referência positiva.
Crítica à democracia racial e influência marxista
No entanto, Moura se insurge contra a tese da “democracia racial”, isto é, da possibilidade de uma convivência harmoniosa entre senhores e escravos, supostamente atribuída a Freyre.
Clóvis Moura na Revista Princípios: leia O racismo como arma ideológica de dominação (1994)
Essa abordagem mais radical foi resultado de sua interação com os trabalhos de sociólogos da USP, como Octávio Ianni e Florestan Fernandes, e com o economista nordestino Celso Furtado. Essa aproximação, provavelmente, consolidou sua insatisfação com a historiografia, que fica ainda mais evidente nas edições seguintes de “Rebeliões da Senzala”, particularmente a partir da segunda edição, de 1972.
Bibliografia rebelde de Clóvis Moura
Os demais livros publicados sobre o tema mantêm essa mesma tônica, entre os quais se destacam: O negro: de bom escravo a mau cidadão? (1977); A sociologia posta em questão (1978); Diário da Guerrilha do Araguaia (1979); Os quilombos e a rebelião negra (1981); Brasil: raízes do protesto negro (1983); Sociologia do negro brasileiro (1988); As injustiças de Clio – o negro na historiografia brasileira (1990); e Dialética radical do negro (1994).
No caso do Piauí, não podemos esquecer que uma de suas grandes contribuições foram os estudos e sua luta pelo reconhecimento da comunidade quilombola do Mimbó.
Poeta do Piauí: a face literária esquecida
A consagração de sua obra — vasta e diversificada — como historiador, sociólogo e jornalista, ofuscou seus escritos literários, sobretudo sua veia poética. Na imprensa divulgou suas poesias, entre outras, destaco “Argila da Memória”, publicada em 1962, em São Paulo, e vinte anos depois em Teresina, autobiografia que revela o poeta nas suas origens, em Amarante, onde nasceu e passou a infância.
Nesse livro estão reunidas suas memórias, as raízes do amarantino. O barro foi moldado nas margens do Rio Parnaíba, com suas lendas e mitos. Mas sua poesia, infelizmente, foi pouco conhecida e valorizada (Malatian, 2022).
Legado acadêmico e simbólico
A obra de Clóvis Moura, de acordo com a historiadora paulista Teresa Malatian (2022, p. 297), “[…] foi produzida fora da academia […], porém não marginalizada pois encontrou receptividade e o reconhecimento do seu valor, especialmente a partir da década de 1980 […], se tornou incontornável nas referências bibliográficas de teses, dissertações, livros e artigos […]”. Assim, “[…] um breve balanço do conjunto de sua obra histórica e sociológica traz de início o selo de ‘historiador dos quilombos’ – e eu acrescento: e da rebeldia contra as injustiças sociais e o racismo – “que tanto a historiografia quanto o movimento negro consagraram […]”.
Despedida e memória
Segundo depoimento de sua filha Soraya, as cinzas de Clóvis Moura foram lançadas no rio Parnaíba após seu falecimento, aos 78 anos de idade, em 24 de dezembro de 2003, em São Paulo. Não houve velório de corpo presente, e poucos amigos compareceram para a despedida, entre eles João Pedro Stedile, do MST; o professor Kabengele Munanga, da USP; e o jornalista José Carlos Ruy, militante do movimento negro e dirigente do PCdoB.
Dalton Melo Macambira é presidente da Fundação Maurício Grabois – Seção Piauí, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e docente do Progmarxismorama de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA).
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.