Longe de ser uma aliança militar para defender o “mundo livre” dos Estados capitalistas centrais e seus sócios contra ameaças do “comunismo”, “terrorismo” e “autoritarismo”, quem olha mais de perto a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) já percebeu seu caráter duradouro, expansionista e burguês.
De aliança defensiva do Atlântico a máquina de guerra imperialista
O que seria uma aliança para derrotar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), revelou ao final da Guerra Fria seu caráter de organização internacional político-militar, permanente, ligada à cadeia imperialista liderada pelos Estados Unidos. O número de membros quase triplicou desde sua fundação em 1949 e diversas parcerias foram criadas fora da sua suposta área de atuação — o Atlântico Norte — em todos os continentes do planeta. Sua linguagem, em discursos e documentos, utiliza em geral termos de segurança coletiva e em específico termos de democracia, mercado e direitos humanos: uma máquina de produção de ideologia. Para ocultar sua missão: restringir o desenvolvimento de quaisquer forças de oposição e promover a influência dos EUA sobre os governos de todo o mundo.
Estados Unidos e OTAN conduziram durante o século XX operações para derrotar partidos e frentes de esquerda na França, na Grécia e na Itália durante os anos 40 e 50 e minaram o movimento antiguerra na Alemanha Ocidental nos anos 60 e 70. Operaram para conter e derrotar projetos socialistas, como a Revolução Cubana e outros, e igualmente as lutas de libertação nacional na África e na Ásia, além de toda a intervenção na Coreia e no Vietnã. Lembremos da Operação Gladio, um programa secreto OTAN que organizava várias formas de intervenção em países, voltadas para desestabilização política dos alvos, com uso de unidades clandestinas e forças paramilitares fascistas. Inclusive, a história de personalidades que integraram a OTAN mostram sua ligação com o nazifascismo; vejam as atividades de agentes da Alemanha Nazista que ocuparam cargos na Organização: Hans Speidel, Eberhard Taubert, Friedrich Guggenberger, Johannes Steinhoff, Johann von Kielmansegg, Ernst Ferber, Karl Schnell e Franz Joseph Schulz1.
Diante da derrota e dissolução da URSS, a OTAN intensificou sua expansão e sua intervenção nos governos que se recusassem a adotar as políticas da globalização neoliberal e reconhecer a primazia dos EUA. A polícia global estava pronta para agir contra Estados que desafiassem o poder dos EUA no novo contexto internacional. Mas a máquina de ideologia da OTAN precisava da imagem de um inimigo ameaçador para legitimar a existência. Então o “comunismo” foi substituído pelo “terrorismo” (e mais recentemente pelo “autoritarismo” de Rússia e China).
Após a Guerra Fria, a OTAN se tornou mais global (Global NATO) e se inseriu em todos os continentes, menos na América Latina onde a OEA e o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca cumprem seu papel. Entrou em guerra no anos 90 contra a República Socialista Federativa da Iugoslávia para dissolver o país (a soberania da Iugoslávia ameaçava a OTAN?). Entrou na guerra iniciada pelos EUA no Afeganistão. Apoiou a Polônia e a Turquia com logística e comunicações na guerra contra o Iraque em 2003. Participou da Guerra ao Terror dos EUA. Lançou o programa Diálogo Mediterrâneo, para que países de fora da zona da OTAN façam intercâmbios com países da OTAN, o qual teve a adesão dos senhores da guerra de Israel. Lançou a Cooperação de Istambul para realizar cooperação militar com os países do Oriente Médio, os quais, em 2011, participaram da operação que destruiu a Líbia. Criou um escritório na sede da União Africana (UA) na Etiópia e instituiu um fórum chamado Conversações entre Militares da Otan e da UA. Utilizou-se do seu Programa de Parceria Individualmente Personalizada para cooperar com Austrália e a Nova Zelândia. Entre outros.

Mapa das operações e missões da OTAN em 14/07/2025. Reprodução do site da organização (nato.int) mostrando a presença militar da aliança em diversos países da Europa, Oriente Médio e África. Fonte: NATO – NATO on the Map. Reprodução de www.nato.int/nato-on-the-map
Observatório Internacional: raízes das guerras no Leste Europeu e no Oriente Médio
Cúpula de Haia e a pressão por mais gastos militares
Na última cúpula da OTAN em Haia, junho de 2025, o histórico apelo dos EUA e da própria Organização para que os Estados-membros aumentem seu gasto com defesa/guerra para 2% do PIB ganhou um novo capítulo. Desde a volta de Donald Trump à Casa Branca, Washington tem pressionado os países membros da OTAN a arcarem com os custos da defesa da Europa. A Cúpula em Haia provou que a Europa, mais uma vez, se dobrou às vontades dos EUA e de Donald Trump. A declaração final da cúpula definiu que os membros devem investir 5% do seu PIB em defesa em até 10 anos, ou seja, precisam chegar nesse patamar até 2035.
Acesse a Declaração da Cúpula de Haia (25/06/2025), emitida pelos Chefes de Estado e de Governo da OTAN em inglês
A fim de evitar a ausência do presidente estadunidense, o secretário-geral da OTAN, Mark Rutte, organizou a última cúpula a fim de atender às exigências de Trump: apenas um dia de reunião, um comunicado final resumido e discursos mais moderados. Além disso, Rutte fez o máximo possível para que os países membros concordassem com o aumento dos gastos com defesa antes mesmo da cúpula começar. O secretário-geral chega a enviar uma mensagem para Trump, na qual afirma que o presidente vinha para “outro grande sucesso em Haia”, garantindo que todos os membros da organização haviam concordado com o aumento de 5% da meta de gastos. É importante ressaltar que o aumento não significa modernização e fortalecimento das forças armadas de cada Estado.
Quem lucra com a corrida armamentista?
De acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo2 (SIPRI), os europeus compram da industria bélica dos EUA, de modo que o aumento dos gastos significa ampliação de mercado para empresas estadunidenses como Boeing, Lockheed Martin, McDonnell Douglas, Northrop Grumman, Raytheon e Textron (e, claro, que a expansão e as atividades da OTAN beneficia a burguesia estadunidense de outros setores, como de energia e de infraestrutura). Nos últimos anos, os europeus mais do que dobraram suas importações do setor de armas e 64% vêm dos Estados Unidos. Isso significa também a formação e condução de um aparato militar transnacional controlado pelos Estados Unidos e custeados por cada membro, para fazer a guerra contra seus inimigos.
Esse aumento exponencial do gasto em armas volta ao patamar do auge da Guerra Fria e marca uma verdadeira corrida armamentista na Europa. A justificativa dada pela OTAN para intensificar seus gastos militares é dissuadir e defender-se da ameaça a longo prazo representada pela Rússia à segurança euro-atlântica e a ameaça persistente do terrorismo. A Ucrânia foi tangenciada das discussões graças à política ambígua de Trump de mantê-la como um elemento de pressão contra a Rússia, sem admiti-la na organização. Apesar disso, os membros reafirmaram o compromisso de continuar fornecendo suporte militar à Ucrânia e à indústria de defesa ucraniana.
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Apesar de Donald Trump, Pete Hegseth e Mark Rutte chamarem a cúpula de um grande sucesso, uma mensagem para o mundo de que a organização está mais unida do que nunca, a reunião demonstrou a fragilidade das relações entre os países membros. A declaração de Trump sobre “várias interpretações” acerca do artigo 5º do Tratado de Washington demonstra que o “America First” definirá quais aliados serão defendidos.
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Reação europeia
A Espanha resistiu à imposição dessa meta, comprometendo-se com o gasto de 2,1%, pois gastar mais traria impactos econômicos e sociais negativos, segundo o primeiro-ministro Pedro Sánchez. Isso lhe custou ameaças por parte do presidente Trump, que prometeu retaliar por meio de acordos comerciais. A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, por outro lado, comemorou com entusiasmo a corrida armamentista proposta por Trump e Rutte. Já França e Alemanha seguem reclamando por uma capacidade de defesa europeia mais autônoma. Apesar dessas divergências, a Europa decidiu se submeter à Washington – talvez por medo da saída dos EUA da organização – e acatar a nova meta de gastos militares, adentrando em uma verdadeira corrida armamentista. No entanto, os países membros precisarão adotar novos impostos ou reduzir os gastos públicos e sociais, já num cenário de economia estrangulada.
OTAN no Indo-Pacífico
Os pretensos propósitos defensivos desse aumento absurdo, na verdade, apontam para um rearmamento em escala global. A bajulação explícita de Rutte ao “papai” Trump – que, segundo ele, teria acertado ao bombardear as instalações nucleares iranianas para garantir a segurança do Euro-Atlântico – é um dos exemplos de como a OTAN não se preocupa com a segurança e a paz. Apesar da China, do Irã e da Coreia do Norte não terem aparecido no documento final, a OTAN incluiu no documento que o fortalecimento da indústria de defesa também abrangerá os parceiros no Indo-Pacífico. Ou seja, o rearmamento da Europa é apenas o primeiro passo para a OTAN aumentar sua área de atuação. Desde Barack Obama, os EUA têm a pretensão de ocupar mais espaço no Indo-Pacífico sob a mesma pretensão de promover princípios democráticos, a segurança e a paz. Forçar a Europa a arcar cada vez mais com os seus próprios custos militares possivelmente indica essa mudança de direção na política de Washington.
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Conclusão: até onde vai a OTAN
No fim das contas, a OTAN nada mais é do que o braço armado do imperialismo ocidental. A cúpula foi uma demonstração de força da cabeça da cadeia imperialista, os EUA, que junto a seus associados europeus, mandam um recado às formações sociais que divergem do modelo capitalista ocidental e não se submetem à sua vontade. Em suma, os senhores que comandam a OTAN são claros: o imperialismo quer guerra, mas o governo Trump não quer arcar com ela sozinho.
Caio Bugiato é professor de Ciência Política e Relações Internacionais na UFRRJ e no PRI-UFABC.
Geremias Carvalho é graduado em Relações Internacionais na UFRRJ e mestrando em Relações Internacionais na UFABC.
*Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.
Notas
1 Dougal MacDonald, U.S. Built NATO By Putting Nazi War Criminals in Charge, In the News, CPCML, 28 de março de 2022.
2 STOCKHOLM INTERNATIONAL PEACE RESEARCH INSTITUTE (SIPRI). Ukraine the world’s biggest arms importer; United States’ dominance of global arms exports grows as Russian exports continue to fall. Estocolmo, 10 mar. 2025.