Vivemos num mundo onde desnutrição e fome de um lado e obesidade do outro caminham lado a lado representando desafios na saúde pública.
FOME QUE DÁ LUCRO.
Antes de prosseguir falando de obesidade, é importante lembrar que há dinheiro no mundo suficiente para acabar com a fome, técnica e teoricamente. A fome não persiste por falta de recursos globais, mas por fatores políticos, econômicos e éticos (ou a falta desses). O número de pessoas que passam fome no mundo voltou a crescer nos últimos anos. Em 2023, cerca de 740 milhões de pessoas enfrentaram fome. A insegurança alimentar afeta quase 2,3 bilhões de pessoas no mundo, com mais de 864 milhões em situação muito grave, ficando sem comer por um dia inteiro ou mais.
De acordo com estimativas do Programa Mundial de Alimentos (WFP) das Nações Unidas, seriam necessários algo em torno de 40 bilhões de dólares por ano para acabar com a fome extrema no mundo até 2030. Em 2021, o WFP estimou que cerca de 6 bilhões de dólares poderiam combater a fome aguda de aproximadamente 42 milhões de pessoas com risco imediato de morte.
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Em comparação, o gasto militar global em 2023 ultrapassou os 2,2 trilhões de dólares. Recentemente, Trump anunciou um novo orçamento para o Departamento de Defesa no valor superior a US$ 1 trilhão. Do outro lado do Atlantico, a Alemanha está se preparando para um rearmamento sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial, com uma possibilidade de gasto de pelo menos 100 bilhões de euros (quase US$ 107 bilhões ou R$ 608 bilhões na cotação atual) por ano.
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O mercado global de luxo pessoal (joias, carros, moda, etc) girou em torno de 1,5 trilhão de euros no ano de 2023, com crescimento de 10% em relação a 2022. O Brasil é um dos 10 países que mais consome artigos de luxo e, aparentemente, o que mais tem aumentado esse consumo. Acredita-se que esse consumo aumentará 7% em 2025, uma alta de cerca de 22% nos últimos 5 anos.
Há também uma correlação geracional. As gerações X e Y respondem por mais de metade das compras, enquanto a geração Z, que busca mais experiências e significados, pode ser responsável por até 30% das compras até 2030. As projeções indicam que o mercado global terá um crescimento entre 4 e 8% ao ano, podendo chegar a 2,5 trilhões de euros em 2030.
Os bilionários do mundo, cerca de 3030 pessoas, somam juntos algo superior a 16,1 trilhões de patrimônio líquido. O patrimônio dos bilionários cresceu 3 vezes mais rápido em 2024 do que em 2023. A concentração de riqueza é extrema: o 1% mais rico detém cerca de 45% de toda a riqueza global, enquanto 44% da população mundial vive abaixo da linha da pobreza. No Brasil, o cenário é ainda mais assustador: 63% da riqueza está nas mãos de apenas 1% da população, enquanto os 50% mais pobres detém apenas 2% do patrimônio nacional.
O tema da fome em nosso país mereceria artigos enciclopédicos, mas, nesse curto espaço, é importante lembrar o quanto a questão sempre foi, como dizia Josué de Castro (1908-1973), “um tema proibido”.
Tanto é que, em 1964, o dr. Josué Apolônio de Castro, médico pernambucano e embaixador do Brasil na ONU em Genebra, teve seus direitos políticos cassados. Seu livro mais conhecido, Geografia da Fome, assinalou o início das denúncias da fome no país. Publicado em 1946, foi traduzido para 25 idiomas. Várias vezes censurado e perseguido, o médico recebia a “ordem” de falar em subnutrição, termo eufemístico e menos agressivo aos ouvidos da classe dominante.
Josué de Castro afirmava que o capitalismo, em sua essência, criava inexoravelmente bolsões de miséria, com expressão máxima na fome da população. Há quase 80 anos, assim como hoje, Josué de Castro denunciava que a fome universal era uma praga fabricada pelo homem contra outros homens.
Apontava o médico e cientista pernambucano que as minorias dominantes trabalham para escamotear o fenômeno da fome, que dialeticamente evidencia as contradições da exploração capital-trabalho:
“É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos – e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública.”
Por fim, a fome de hoje grita com cores da Palestina. O uso da fome como arma de guerra é uma prática cruel e antiga, que consiste em privar deliberadamente populações civis de alimentos e recursos essenciais para enfraquecê-las, controlar territórios ou exterminar adversários. A tática viola o direito internacional humanitário, incluindo a Quarta Convenção de Genebra, que protege civis em conflitos armados.
Essa estratégia televisionada é vista de minuto em minuto em Gaza, onde bloqueios, saques e ataques a infraestruturas essenciais (como redes de água e rotas de abastecimento e hospitais) impedem a chegada de ajuda humanitária e agravam a crise alimentar.
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O bloqueio imposto por Israel tem sido denunciado como uma forma de usar a fome como arma, com milhões de pessoas enfrentando insegurança alimentar severa e risco de morte por desnutrição. Organizações como a Oxfam, a ONU e a Human Rights Watch apontam que a restrição de alimentos e suprimentos médicos configuram punição coletiva e ilegal e que é crime usar a fome como arma, com milhões de pessoas enfrentando insegurança alimentar severa e risco de morte por desnutrição.
Mas, quem liga?
A fome engorda os lucros.
Falaremos de obesidade no próximo artigo.
Táki Athanássios Cordás é Coordenador da Equipe Multiprofissional de Assistência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do Programa de Transtornos Alimentares (AMBULIM) do IPQ-HCFMUSP. Prof. dos Programas de Pós-Graduação do Departamento de Psiquiatria da USP, do Programa de Neurociências e Comportamento do Instituto de Psicologia da USP e do Programa de Fisiopatologia Experimental da FMUSP. Pós-Graduação (latu-sensu) em Filosofia (PUC-RS).
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.