Vivemos hoje um cenário internacional marcado por tensões, ameaças e choques — mas também por janelas de oportunidade para afirmar interesses nacionais soberanos. Entre forças esclarecidas, cresce o reconhecimento de que, para aproveitar essas oportunidades, é preciso saber o que se quer e quais meios utilizar para alcançar os objetivos. Ou seja: é essencial dispor de um projeto nacional maduro e uma estratégia consequente.
Elias Jabbour: Nacionalismo impulsionado por Trump deve ser chave para novo Estado brasileiro
A expressão “mundo em transição” abrange mais do que a reconfiguração geopolítica com a emergência da multipolaridade. Vivenciamos também a crise do consenso neoliberal global, detonada pelo colapso financeiro de 2007-2008 e agravada pela pandemia. Trata-se de uma transição rumo a um novo regime de acumulação e legitimação do capital — ou seja, a tentativa de formular um novo consenso das classes dominantes que substitua o modelo neoliberal.
Como aponta Álvaro García Linera, ex-vice-presidente da Bolívia, vivemos um tempo liminar — um “interregno”, nos termos de Gramsci — no qual um modelo de organização econômica e política se esgota, mas outro ainda não se consolidou. Esse período, que pode durar de 20 a 30 anos, é marcado por tentativas contraditórias de superar o impasse.
Acompanhe: Ciclo de debates para o 16º Congresso do PCdoB discute desafios brasileiros num mundo em transição
A realidade impõe desafios específicos à esquerda e às forças progressistas na América Latina — e, em particular, no Brasil. Torna-se imperativo revisar criticamente o ciclo progressista recente: reconhecer seus êxitos, como a redução da pobreza extrema e a ampliação dos direitos sociais, civis e humanos; seus fracassos, como a continuidade da desindustrialização; e seus limites, como a ausência de uma maioria social estável e o recurso a uma política econômica híbrida. Nesta retomada do ciclo, hoje, os ganhos conquistados já não são necessariamente percebidos pela sociedade nos mesmos termos de antes.
É sempre útil revisitar as opções tomadas. Entre 2003 e 2015, havia uma clara necessidade de reformas estruturais democráticas do Estado nacional. No entanto, essas reformas não foram colocadas na ordem do dia, tampouco disputadas na sociedade. Faltou apresentar como poderiam melhorar concretamente a vida das pessoas — o que, afinal, é o que realmente importa.
Prevaleceu uma lógica de curto prazo. Faltou um projeto nacional nítido. Na correlação de forças vigente, optou-se por um possibilismo institucionalista, dissociado de uma estratégia transformadora. E nesse vácuo, a extrema direita ganhou espaço, capturando o mal-estar social que nem o liberalismo democrático, nem o progressismo foram capazes de enfrentar.
Hoje, os impasses seguem presentes e foram agravados no tocante ao caráter do Estado nacional — emendas constitucionais aprofundaram medidas regressivas antagônicas ao progressismo. As reformas estruturais voltam a se impor como condição para romper o atraso econômico e tecnológico, a dependência e a condição periférica do Brasil; para reverter a deterioração da vida social, revitalizar a política e enfrentar a crise institucional latente.
Para onde caminha o Brasil? A urgência de uma frente nacional
A esquerda precisa se desafiar e representar uma alternativa real para o Brasil neste interregno global. Mas para isso precisa lutar por essas reformas, mobilizando pessoas e organizações sociais em torno do desejo por uma vida melhor, uma sociedade mais justa e livre, e um planeta saudável. Ela precisa conferir caráter antissistêmico às lutas que propõem, enraizadas em objetivos democráticos, nacionais, patrióticos e populares — enfrentando, e não apenas se acomodando à correlação de forças.
As reformas estruturais são a pauta da necessária radicalização da esquerda brasileira, desde que disputadas com ampla mobilização social, como resposta concreta ao mal-estar existente. Quais são essas reformas?
-
- Reforma política efetivamente democrática;
- Reforma tributária progressiva;
- Reforma do sistema financeiro;
- Reforma midiática e cultural, com democratização da comunicação;
- Reforma urbana e habitacional;
- Reforma do sistema de justiça e da segurança pública;
- Reforma educacional e científico-tecnológica;
- Reforma ecológica e energética;
- Reforma agrária e agroecológica; e
- Reforma trabalhista, com o fim da jornada 6×1
Elas formam a base para consolidar o projeto do progressismo brasileiro. Gosto de pensar que isso corresponde a reviver a Revolução Brasileira — de longa e honrada tradição no pensamento político nacional anterior à ditadura militar. O desafio é reformular seus termos e propósitos à luz do espírito do nosso tempo, tornando-a um projeto exequível, com estratégia clara.
Leia também: Três pontos para romper paralisia e unir forças populares rumo a 2026
O motor desse projeto deve ser um amplo leque de forças sociais, catalisadas por um elemento essencial: um polo unitário das forças progressistas, de caráter patriótico e popular, com um programa comum capaz de disputar consciências, organizar mobilizações plurais e vigorosas, e atuar como núcleo articulador de amplas concertações em prol do Brasil.
Isso é decisivo: a hegemonia da esquerda deve residir em uma causa e em um caminho comum — não em um partido ou uma pessoa. Foi assim que, em momentos decisivos, a nação brasileira pôde avançar civilizacionalmente.
Esse me parece o caminho possível e efetivamente transformador. Não posso me furtar de dizer que ele se relaciona com os desafios do mundo em transição também em outro sentido: o ideário socialista está demonstrando sua superioridade como forma de organização social e representa um vetor irrecusável de nossa luta.
Walter Sorrentino é presidente da Fundação Maurício Grabois e vice-presidente nacional do PCdoB.
*Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.