Semana passada minha coluna foi publicada antes de chegar a primeira carta do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump para o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.
A carta não veio pelos caminhos oficiais e normais nas relações internacionais, veio anunciada pela rede social do Trump, a Truth Social. Uma carta com ameaças ao governo brasileiro e com o anúncio de uma tarifação de 50% sobre todos os produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos.
E ali começou, um embate, uma resistência e um contra-ataque, no bom nível, do governo brasileiro, no sentido de dizer que a soberania brasileira está em primeiro lugar e que o povo brasileiro é quem manda no Brasil, porque segundo essa carta do Donald Trump, o Brasil teria que se submeter ao os desígnios do governo dos Estados Unidos e alterar seus trâmites judiciais.
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Isso porque neste momento se encontra em julgamento a trama golpista comandada justamente pelo Jair Bolsonaro, que o presidente Trump defende nessa carta. Mas quem está lendo essa coluna já conhece toda essa primeira parte da história, eu quero avançar um pouco mais.
Depois disso, o filho do ex-presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro – que embora licenciado, está prestes a perder o mandato – manifestou um regozijo por essa ação do Trump e chegou até a comemorar algo que agora eles tentam se distanciar, dizer que não tem nada a ver.
Quero fazer uma conexão com a coluna anterior em que eu falo do incômodo do Trump com o a reunião do BRICS. Eu levantava este tema e realmente é um grande incômodo para o presidente e para os Estados Unidos de uma forma geral, a própria existência do BRICS e o avanço em algumas pautas, particularmente a pauta da desdolarização. Então, há este pano de fundo.
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Mas neste momento, em que foi feita uma ação da Polícia Federal com relação ao ex-presidente Bolsonaro, com medidas cautelares, com tornozeleira eletrônica, proibição de uso de redes sociais, contato com o filho Eduardo, entre outras medidas cautelares, como não poder sair de casa entre um determinado horário pela noite, isso coloca este momento histórico do Brasil em outro patamar, em que daqui a um tempo talvez a gente tenha uma dimensão melhor do que exatamente está acontecendo.
Porque veja bem, o presidente dos Estados Unidos manda uma carta ameaçadora ao presidente em exercício do Brasil,Lula, e depois uma carta ao presidente derrotado nas eleições e réu de um processo judicial por tentativa de golpe. Isso não é trivial, não é banal, não é algo que aconteça com tanta frequência.
A gente sabe que os Estados Unidos tem um histórico, estamos com 202 anos da doutrina Monroe, sabemos desse histórico dos EUA em tratar a América Latina como o seu quintal, tudo que tem abaixo do Rio Bravo, eles consideram como área de influência natural, eles falam isso e se colocam nesse direito de impor os seus desejos, os seus desígnios sobre a América Latina.
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Mas neste momento com relação ao Brasil há algo extremamente grave, peculiar, particular que demonstra também como eles estão sentindo o declínio relativo de sua hegemonia, que já não é a mesma de décadas atrás, talvez até porque a contra-hegemonia que, segundo Gramsci e analistas como Giovana Rig e outros, veem os movimentos de hegemonia contra hegemonia como movimentos de ciclos longos, de longa duração de mudança.
No sistema mundo, o Althusser ou mesmo eles beberam lá na fonte dos ciclos brautelianos. Estes analistas diriam hoje que existe tanto um momento de expansão de uma contra hegemonia e a China, o polo dinâmico asiático e a própria existência das novas conexões via BRICS e outras do Sul Global, vão impondo essa contra-hegemonia, impondo uma multipolaridade, e você obviamente tem também um declínio relativo do poderio dos Estados Unidos, embora eles continuem sendo a maior potência bélica, com uma hegemonia cultural e econômica também muito fortes.
O próprio fato de você estar questionando o dólar, e recentemente houve, por exemplo, um acordo firmado entre o Egito e a China já sem uso do dólar e sem uso do sistema Swift para as suas transações. Então, isso incomoda especialmente os Estados Unidos e o Brasil está no centro, como um dos fundadores do BRICS, sediou o encontro deste ano.
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O papel que a família Bolsonaro tem exercido ao longo deste período do da história do Brasil, desde o golpe de 2016 sobre a presidenta Dilma, depois a eleição do Bolsonaro a presidente e, principalmente após a vitória do presidente Lula, em que se tornou bastante evidente a trama golpista chega agora a uma conspiração em nível internacional.
Embora eu particularmente tenha uma visão de que o Eduardo Bolsonaro mais surfa em uma onda do que provoca essa onda, então ele surfa nessa onda de tarifaços do Trump, mas tem algo a mais aí. Porque para o Brasil vieram mais tarifas na carta do presidente Trump para o Lula e na carta dele para o próprio Jair Bolsonaro, ele cita o que ele chama de perseguição ao ex-presidente pelo Brasil.
Quando ele fala Brasil, ele acha que é tudo a mesma coisa: governo, judiciário ou se ele realmente não acha, dá a impressão de fazer essa leitura porque também a intenção dele é justamente confundir. Então, eu diria que nós estamos vivendo um momento muito particular dessa história da relação do Brasil com os Estados Unidos, nestes 200 anos de relação.
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Esse bicentenário tem momentos obviamente nessas relações, mas pelo menos durante os governos Lula, o Lula 1, 2 e nos governos Dilma também houve uma consistência nessa relação, embora a gente saiba que o caso da espionagem da presidenta Dilma também balançou muito a relação naquele momento, há pouco mais de 10 anos atrás.
Então eu quero deixar este meu comentário que não é fácil sair dessa situação e não há uma previsibilidade de como sair, mas fica muito forte em nós o sentimento de como é importante que o presidente Lula esteja como presidente realmente do Brasil neste momento, porque talvez poucos líderes como ele teriam uma defesa tão forte da nossa soberania, da nosso sentimento de Brasil, de povo brasileiro como ele tem conseguido fazer.
E essa semana foi um marco disso. Tanto o discurso dele no congresso da UNE em Goiânia, como o pronunciamento dele à nação no dia 17 de julho, como a própria entrevista dele para a jornalista sênior da CNN, a Christiane Amambu, em que ele fala que o Trump não é imperador do mundo e imediatamente a porta-voz da Casa Branca faz uma resposta para essa entrevista do Lula para a CNN, falando que o presidente Trump realmente pode não ser o imperador no mundo, mas que ele seria o líder do mundo livre, the free world leader.
Então o Brasil não tá nesse mundo livre, viu, gente? Neste momento o Brasil não está neste mundo livre, somente se o sistema judiciário brasileiro liberar o o o Bolsonaro de uma pretensa perseguição para que Trump possa aliviar o Brasil das tarifas de 50% impostos aos nossos produtos. Ou seja, é algo extremamente grave o que está acontecendo, tem algo de de bizarro nessa situação, tem algo de inimaginável até certo tempo, mas é extremamente grave.
A gente não sabe ainda como vai ser daqui até o final de 2026, mas é certamente um dos momentos mais importantes do governo Lula para o Brasil, para o povo brasileiro e para o mundo também, numa demonstração de enfrentamento direto do presidente dos Estados Unidos com esse importante país do Sul Global que é o Brasil.
Assista ao vídeo do Gira Mundo com Ana Prestes:
Ana Prestes é pesquisadora do Observatório Internacional, Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois, e Secretária de Relações Internacionais do PCdoB. Todas as sextas-feiras, comanda o programa Conexão Sul Global, exibido pela TV Grabois.
*Análise publicada originalmente no programa Gira Mundo (TV Grabois), em 18/07/2025.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.