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    Economia

    Desindustrialização, trabalho e clima: Capitalismo de Estado e nacional-desenvolvimentismo no Brasil – Parte V

    Encerrando a série, o artigo analisa desindustrialização, precarização do trabalho e mudanças climáticas como desafios ao nacional-desenvolvimentismo

    POR: Nilson Araújo de Souza

    13 min de leitura

    Trabalhador da indústria. Foto: Michelle Fioravanti / CNI
    Trabalhador da indústria. Foto: Michelle Fioravanti / CNI

    Aspectos novos da realidade mundial II: Capitalismo de Estado e nacional-desenvolvimentismo no Brasil – Parte V

    Nesta quinta e última parte da série sobre capitalismo de Estado e nacional-desenvolvimentismo no Brasil, trataremos de outros aspectos da realidade mundial contemporânea: desindustrialização precoce da periferia, desregulamentação da força de trabalho e do capital, e os extremos climáticos.

    Examinemos cada um desses aspectos.

    Desindustrialização precoce

    Esta ocorre nos países dependentes que haviam entrado na senda da industrialização. A causa básica está nessa tal da globalização, isto é, na inaudita internacionalização do capital e consequentemente da economia, sob comando do capital financeiro dos países centrais. O instrumento adotado para isso tem sido a doutrina do neoliberalismo (desregulamentação financeira, desestatização, abertura comercial, desregulação da força de trabalho) imposto ao mundo, sobretudo às nações mais débeis, agravada pelas políticas de “austeridade fiscal” e das taxas de juros muito elevadas (outra face do neoliberalismo) que os distintos governos vêm implementando desde a década de 1980.

    Está posta, portanto, tal como na época do nacional-desenvolvimentismo, a questão de retomar o processo de industrialização, desta vez pela via da reindustrialização em novas bases tecnológicas. Instrumentos usados no passado, como a ação do Estado na economia, proteção da economia nacional, fortalecimento do mercado interno por meio do aumento do poder de compra do salário e das compras governamentais, seguem atuais (haja vista a postura do governo dos EUA).

    Produção versus Rentismo: Livro reúne debate entre empresários e trabalhadores sobre reindustrialização

    Assinalamos antes que o Brasil deve beneficiar-se agora de uma crise internacional de transição geopolítica para buscar o seu desenvolvimento, particularmente com a reindustrialização em novas bases tecnológicas e a instalação de uma infraestrutura moderna de transporte e comunicação e o crescimento de sua base energética.

    Desregulamentação da força de trabalho e do capital

    Iniciada por Margaret Thatcher na Inglaterra e por Ronald Reagan nos EUA dos anos de 1980, a desregulação da força de trabalho e do capital foi generalizada para a maior parte do mundo capitalista a partir do “Consenso de Washington”, em 1989, e da correspondente implementação da ideologia econômica do capital financeiro, o neoliberalismo, que, além de outras coisas, retirou maciçamente direitos dos trabalhadores (dos EUA aos Estados de Bem-Estar da Europa; dos países desenvolvidos aos subdesenvolvidos) e liberou o capital das “peias” internas e das restrições nacionais ao seu livre movimento internacional.

    Quem mais tem se beneficiado disso é o capital financeiro dos países centrais, particularmente em sua forma líquida, dinheiro, que literalmente passeia pelo mundo na velocidade da luz, de bolsa em bolsa, de banco em banco. O trabalho, no entanto, tem sido profundamente massacrado, assumindo, em grande medida, formas de precarização, “flexibilização”, terceirização desenfreada, uberização, emprego informal… A essas formas de superexploração da força de trabalho chamam empreendedorismo.

    No caso do Brasil, não tem sido diferente. Há mais de quatro décadas, em face da semiestagnação da economia provocada pela adoção das políticas neoliberais e de sua coadjuvante “austeridade fiscal” e manutenção de elevadas taxas de juros, situação agravada pelo impacto das tecnologias do “trabalho flexível1,os trabalhadores vêm perdendo poder de compra e direitos, o que se acirrou por meio das contrarreformas previdenciária e trabalhista, que, em conjunto, significam dificuldades para o trabalhador se aposentar, retirada de direitos trabalhistas que haviam sido consolidados na CLT, de 1943, eliminação do financiamento e esvaziamento do papel do sindicato. Nessas condições, qualquer avanço tecnológico implicará desemprego.

    Leia mais: O que (realmente) mudou nas relações de trabalho?

    Então, o problema hoje no mundo do trabalho não é apenas o impacto das novas tecnologias, mas a crescente perda de direitos e a adoção de políticas destinadas a enfraquecer os trabalhadores. Além disso, essas novas tecnologias – internet das coisas, inteligência artificial, big data – ainda não estão inteiramente disponíveis para o Brasil.

    Para enfrentar esses problemas, deve-se, ao contrário do que se alardeia, lutar para recuperar os direitos e conquistar novos, recuperar suas formas de organização sindical. Isso representa a maioria dos trabalhadores. Mas não devemos fechar os olhos para as novas formas de trabalho que, com a desregulação, ocorreram em todos os países capitalistas, inclusive no Brasil. As várias lutas realizadas no Brasil pelos que trabalham com aplicativos revelam que, apesar de seu trabalho disperso, conseguem unificar-se nos momentos de necessidade. É um trabalho de organização mais complexo, inclusive pela predominância da ideologia do empreendedorismo, mas, com o aumento da exploração de que vêm sendo vítimas, não é impossível que emerja entre eles formas de organização próprias.

    Os extremos climáticos

    Os efeitos dos extremos climáticos, não há mais dúvidas sérias, vêm castigando vastas populações espalhadas pelo mundo. Para ficarmos apenas no Brasil, lembremo-nos de que, no ano passado, enquanto o Rio Grande do Sul estava mergulhado em água de uma chuva que não parava, o norte do país, tão abundante em água, amargava uma seca inédita, de tais proporções que até rios costumeiramente caudalosos chegaram perto de secar.

    Não há dúvida de que teremos de enfrentar de cara essa realidade. Duas propostas se combinam no debate nacional e internacional: transição ambiental e transição energética. Esta última não é difícil de concretizar, pois o Brasil já possui a matriz elétrica mais limpa do mundo e um índice da matriz energética (que abrange a elétrica) superior à média mundial.

    Conheça: Pesquisa sobre a financeirização da transição energética no Brasil vence prêmio em Economia Ecológica

    Quanto à transição ambiental, da qual a matriz energética é parte, envolve também, por exemplo, os desmatamentos e os incêndios (em boa parte, criminosos) na Amazônia que afetam, inclusive, outros biomas, como o Cerrado. Para o seu enfrentamento, deve-se recorrer a ações policiais. Mas isso por si só não resolve. Temos que encontrar um caminho para desenvolver a Amazônia, baseado em sua própria realidade, sem derrubar a floresta, por exemplo montando polos de desenvolvimento industrial e agrícola adaptados à Amazônia: a indústria seria incentivada (por meio de incentivos fiscais e financeiros) a montar polos tecnológicos que usem a matéria prima local para a produção de fármacos e medicamentos, dentre outros; incentivar os trabalhadores do campo com medidas semelhantes às adotadas para a indústria a plantarem embaixo das árvores2,como já vem se fazendo com o cacau em várias partes do país, inclusive na Amazônia. Mas não devemos abrir mão de, de forma planejada, respeitando o meio ambiente e os povos que ali vivem, por meio de empresas públicas, explorar as incomensuráveis riquezas minerais da Amazônia.

    Ora, a Amazônia não é uma região, como, por exemplo, o Nordeste. A Amazônia representa 59% do território do Brasil e 67% das florestas tropicais do mundo, abriga riquezas incomensuráveis em seu subsolo (minérios, etc) e também na superfície (como plantas medicinais). A cobiça internacional sobre essas riquezas é uma séria ameaça à nossa unidade territorial. E a única forma de evitar isso é pelo desenvolvimento e ocupação do território. E, pelos exemplos que demos acima, é possível, ainda que por caminhos complexos, desenvolver e ocupar essa imensidão territorial sem agredir o meio ambiente. A questão da Amazônia é uma questão nacional.

    Isso nos leva a outra questão: a de que a transição ambiental não deve bloquear o desenvolvimento das forças produtivas do país, base para o desenvolvimento econômico-social. Significa dizer: não deve impedir o acesso, desde que planejado, a essa imensidão de recursos naturais na Amazônia. E aí entra o caso da exploração de petróleo na Margem Equatorial.

    Região onde está localizada a Margem Equatorial. Imagem: Petrobras/Divulgação

    É evidente que devemos completar a transição energética, mas, no momento atual, contraditoriamente, a solução vem da própria Petrobras, que se propõe a ser uma empresa de energia, e não uma mera petrolífera e, neste caso, intensificaria suas pesquisas e investimentos em energia limpa. Obviamente, para fazer essa transição, deve-se reduzir fortemente a distribuição de dividendos a acionistas estrangeiros e usar esses recursos para investir.

    Leia mais: Exploração da Margem Equatorial não pode virar disputa Caprichoso x Garantido

    Há uma razão fundamental para não abrirmos mão dessa talvez mais importante reserva de petróleo do país, rivalizando com o pré-sal: as transnacionais do petróleo já estão explorando larga e predatoriamente na vizinha Guiana reservas de petróleo que são contínuas às nossas da Margem Equatorial. Isso significa duas coisas:

    1) Podem estar roubando nosso petróleo por baixo, como se comprovou no caso do Kuwait em relação ao Iraque;

    2) Quando começar a esgotar as reservas da Guiana, a tendência desses predadores é, certamente, transpor a fronteira e, usando o poder de império, carregar nosso petróleo.

    Certamente, a Petrobras deve dar as garantias ambientais cabíveis, mas também é certo que, para que essas garantias sejam cumpridas, caberá à empresa o direito exclusivo de exploração, o que está previsto na lei de partilha adotada por Lula quando se descobriu o pré-sal.

    Perdeu alguma das partes anteriores? Confira os textos já publicados da série Capitalismo de Estado e nacional-desenvolvimentismo no Brasil:

     

    Nilson Araújo de Souza é doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico, com pós-doutoramento em Economia pela USP; professor do Curso de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (ICAL/UNILA); diretor de Publicações da Fundação Maurício Grabois; membro da direção nacional do PCdoB; autor de vários livros, artigos e ensaios sobre economia brasileira, latino-americana e mundial. Destacam-se Economia brasileira contemporânea: de Getúlio a Lula e Economia internacional contemporânea: da grande depressão de 1929 ao colapso financeiro de 2008. É pesquisador do GP 1: Desenvolvimento nacional e Socialismo.

    *Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.


    Referências

    CAMPOS, Claudio. A história continua. 2ª ed. São Paulo: Fundação Instituto Claudio Campos, 2015.

    LOVATO, Angélica. Os cadernos do povo brasileiro e o debate nacionalista dos anos 1960: um projeto de revolução brasileira. São Paulo: PUC-SP, 2010. (Tese de Doutorado em Ciências Sociais).

    GRUPO de comunicação e divulgação da doutrina castilhista.As raízes socialistas do pensamento de Getúlio”. Ressurreição Nacionalista, 4 de junho de 2017.

    SOUZA, Nilson Araújo de. A questão nacional na revolução chinesa. São Paulo: Hora do Povo, 5 out. 2019.

    SOUZA, Nilson Araújo de. Economia brasileira contemporânea: de Getúlio a Lula. São Paulo: Atlas, 2007.

    SOUZA, Nilson Araújo de. “NEP/Capitalismo de Estado: o legado de Lenin para a transição ao socialismo”. In: BARROSO, Aloisio Sérgio; BERTOLINO, Osvaldo (Orgs.). Lenin: um século depois, teoria e história. São Paulo: Anita Garibaldi / Fundação Maurício Grabois, 2024.

    VARGAS, Getúlio D.Carta-testamento”. Acesso em: 8 mar. 2022.

    VARGAS, Getúlio D. Diário. Org. Celina Vargas do Amaral Peixoto. São Paulo: Siciliano/FGV, 1995.

    Textos de Lenin, Vladimir I. (Obras completas, México: Ediciones Salvador Allende, 1971)

    • Infantilismo de “esquerda” e a mentalidade pequeno-burguesa, vol. 29, pp. 77-107.

    • O imposto em espécie: a significação da nova política e suas condições, vol. 35a, pp. 200-239.

    • Informe sobre o imposto em espécie (X Conferência de toda a Rússia do PC(b)R), vol. 35h, pp. 294-308.

    • A importância do ouro agora e depois da vitória total do socialismo, vol. 35j, pp. 553-560.

    Textos de Mao Tse-tung (Obras escolhidas, São Paulo: Alfa-Ômega, 2012)

    • Sobre o capitalismo de Estado, vol. 5, p. 121.

    • O único caminho para a transformação da indústria e comércio capitalistas, vol. 5, pp. 137-140.

    • Sobre o projeto de Constituição da República Popular da China, vol. 5, pp. 173-180.

    • A questão da cooperação agrícola, vol. 5, pp. 221-247.

    • Sobre a Democracia Nova, vol. 2, pp. 553-628.

    Textos de SOUZA, Nilson Araújo de e CAMPOS, Rosanita (Orgs.). Pensamento nacional-desenvolvimentista. São Paulo: Anita Garibaldi / Fundação Maurício Grabois, 2021.

    • VARGAS, Getúlio. Carta-testamento: “Meu nome será a vossa bandeira de luta”.

    • VARGAS, Getúlio. Hoje estais com o governo; amanhã sereis o governo.

    • VARGAS, Getúlio. No petróleo, o controle nacional é imprescindível.

    • GOULART, João. Caminho brasileiro: as reformas de base.

    • GOULART, João. Criação da Eletrobrás.

    • GOULART, João. Discurso na Central do Brasil.

    • SOUZA, Nilson Araújo de. Apresentação.

    • SOUZA, Nilson Araújo de. João Goulart e a atualidade das Reformas de Base.

    Textos de STALIN, Joseph (Obras escolhidas, São Paulo: Raízes da América, 2021)

    • Sobre as questões do leninismo.

    • Os resultados do primeiro Plano Quinquenal (10-17 jan. 1933), pp. 489-518.

    • Sobre questões de política agrária na URSS (27 dez. 1929), pp. 445-461.


    Notas

    1 Flexível sobretudo para os capitalistas, que assim conseguem obter o menor custo e o máximo lucro, ao contratar pessoas e unidades econômicas em qualquer lugar.

    2 Certa vez, viajando para a Venezuela com Bautista Vidal para participar de um seminário sobre desenvolvimento endógeno, ele me disse que um dia perguntou ao João Pedro Stedile quantos sem-terra estavam acampados. Depois de ele responder o número, Bautista Vidal falou: “é pouco”. E, vendo Stedile espantado, arrematou: “para o projeto bioenergético que tenho de ocupar a Amazônia sem derrubar uma árvore, mas adensando-a plantando árvores menores de natureza energética e que necessitam da sombra das grandes árvores”.

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