A recente decisão do governo dos Estados Unidos de impor tarifas elevadas sobre produtos brasileiros é mais um capítulo na política agressiva de protecionismo comercial que Washington tem adotado para transferir sua crise fiscal, monetária e decadência produtiva para os demais países do planeta. Essa medida, que atinge setores estratégicos da nossa economia, exige uma resposta firme e inteligente por parte do Brasil.
Os EUA respondem por 14,5% do comércio exterior brasileiro (2023), uma relação historicamente marcada por assimetrias. A imposição unilateral de tarifas – sem justificativa técnica à OMC – revela a vulnerabilidade de um modelo que prioriza a exportação de commodities e manufaturas de baixo valor agregado. O Brasil permanece refém de ciclos de retaliação comercial.
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Diante da volatilidade do comércio internacional e da nova onda de protecionismo global, o momento exige mais do que medidas reativas: demanda avançar no projeto nacional de desenvolvimento, com eixo central baseado no fortalecimento do mercado interno, na reindustrialização soberana e na redução estratégica de dependências externas.
A urgência de reduzir a dependência do mercado americano: a armadilha da dependência assimétrica
Os EUA têm sido um parceiro comercial importante, mas a relação é assimétrica e sujeita a humilhações sempre que convém aos interesses norte-americanos. A imposição de tarifas sem justificativa técnica clara demonstra que o Brasil não pode colocar todos os seus ovos na mesma cesta. Diversificar mercados é essencial, mas mais importante ainda é fortalecer a base produtiva nacional para que o crescimento não dependa exclusivamente da exportação de commodities ou da boa vontade de Washington ou de qualquer outra nação.
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Em vez de se submeter às oscilações de um parceiro comercial volátil, o momento é de fortalecer o mercado interno, valorizar o trabalhador brasileiro e reindustrializar o país com políticas ousadas.
Elevação do salário mínimo e fortalecimento do consumo interno
Uma das medidas mais eficazes para impulsionar o mercado interno é a valorização do salário mínimo. Um piso salarial digno aumenta o poder de compra da população, estimulando a demanda por bens e serviços produzidos no Brasil. Isso gera um ciclo virtuoso: mais consumo leva a mais produção, que por sua vez gera mais empregos e renda. Países como Alemanha e China souberam usar seu mercado interno como alavanca em momentos de crise global, e o Brasil deve seguir o mesmo caminho.
Política emergencial para a ReIndustrialização acelerada e o apoio à Embraer
O setor industrial brasileiro precisa de um choque de incentivos para se modernizar e se tornar mais competitivo. Um exemplo claro é a aviação civil: por que as companhias aéreas brasileiras, como GOL e LATAM, continuam dependentes de Boeing e Airbus quando temos a Embraer, uma das maiores fabricantes de aviões do mundo?
Estas duas companhias aéreas transferem recursos dos milhões de usuários para Boeing e Airbus. Com uma frota de 280 aeronaves, muitas delas já com muitas horas de voo, podem modernizar sua frota com os melhores aviões produzidos pela Embraer. O leasing de uma aeronave de grande porte costuma ultrapassar os US$ 300 mil (R$ 1,48 milhão) mensais. A Gol tem uma frota de 141 aeronaves, composta pelos seguintes modelos: Boeing 737-700, Boeing 737-800, Boeing 737-800 BCF (cargueiro) e Boeing 737 Max 8.
O preço do leasing subiu no pós-pandemia devido a atrasos nas entregas e falta de peças. No segundo semestre de 2023, um Boeing 737 Max 8, modelo mais recente operado pela Gol, tinha um leasing em torno de US$ 360 mil a US$ 370 mil (R$ 1,77 milhão a R$ 1,82 milhão) mensais.
O governo deve criar um programa emergencial com isenções fiscais e linhas de crédito especiais para que essas empresas migrem para aviões da Embraer. Isso não só fortaleceria nossa indústria aeronáutica, como geraria empregos de alta qualidade e reduziria a dependência de fornecedores estrangeiros.
Medidas semelhantes devem ser estendidas a outros setores estratégicos, como defesa, energia e tecnologia.
Cooperação regional e novos parceiros comerciais
Enquanto os EUA fecham suas portas, o Brasil deve aprofundar relações com outros blocos econômicos. O Mercosul, apesar de suas limitações, pode ser revitalizado com uma agenda mais pragmática. Além disso, parcerias com China, Índia, União Europeia e países africanos devem ser priorizadas, reduzindo a vulnerabilidade às decisões unilaterais de Washington.
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Hora de agir com soberania
A imposição de tarifas por Trump não deve ser encarada apenas como uma ameaça, mas como um alerta: o Brasil precisa retomar o controle do seu destino econômico. Isso passa pelo fortalecimento do mercado interno, pela valorização do trabalho e por políticas industriais audaciosas.
Apoiar a Embraer e avançar na reindustrialização do Brasil, elevar o salário mínimo e reduzir a dependência de importações não são apenas medidas de resposta à crise, são passos essenciais para construir um país mais justo, desenvolvido e soberano. O momento é de ação, e o Brasil não pode perder essa oportunidade.
Reduzir a taxa de juros e expandir o crédito: três eixos para uma resposta estrutural
A. Revolução do mercado interno: salário mínimo e soberania alimentar
- Elevação imediata do salário mínimo para R$ 2.200 (reajuste real de 18%), vinculado a um Índice de Cesta Básica Nacional (atualmente, 72% do mínimo é consumido apenas por alimentação e habitação).
- Programa “Alimento é Soberania”: Subsídios diretos à agricultura familiar (70% dos alimentos consumidos no país) e taxação progressiva de commodities exportadas.
B. Reindustrialização sob pressão: o caso Embraer
- Lei de Emergência Aeronáutica (LEA): Isenção fiscal de 10 anos para GOL e LATAM que substituírem 40% de sua frota por aviões E-Jets E2 da Embraer até 2030.
- Criação do Fundo de Reconversão Tecnológica (FRT), com recursos do BNDES e soberania digital (ex: substituição de sistemas aviônicos estrangeiros por tecnologia do ITA).
C. Acelerar a organização financeira dos BRICS+
- Aceleração do acordo Mercosul-UE com cláusulas de transferência tecnológica compulsória.
- Adesão ao sistema de pagamentos em moedas locais do BRICS, reduzindo exposição ao dólar (em 2023, 89% das exportações brasileiras foram dolarizadas).
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Artigo 219 como base jurídica para uma nova política industrial
O parágrafo único do Artigo 219 é claro ao determinar que “o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação tecnológica e a inovação”. Isso nos fornece o arcabouço legal para:
- Implementar políticas agressivas de substituição de importações em setores estratégicos
- Criar mecanismos de proteção temporária para indústrias nascentes
- Estabelecer requisitos de conteúdo local em compras governamentais
Dados que justificam a aplicação imediata do Artigo 219:
- A indústria de transformação representa apenas 11% do PIB brasileiro (2023), menor patamar em 40 anos
- Para cada 1% de aumento no conteúdo nacional, estima-se a criação de 250 mil empregos qualificados (estudos do IEDI)
Aplicação concreta do Artigo 219 no setor aeronáutico
O caso da Embraer ilustra como o Artigo 219 pode ser operacionalizado:
1. Cláusulas de conteúdo nacional (parágrafo único do Art. 219):
- Exigência de 60% de componentes nacionais em aviões adquiridos por empresas aéreas brasileiras
- Bônus fiscal para fornecedores locais da cadeia aeronáutica
2. Proteção temporária (inciso II do Art. 219):
- Barreiras não-tarifárias por 5 anos para aeronaves estrangeiras concorrentes diretas dos E-Jets
- Subsídios diretos para P&D em tecnologia aeronáutica verde
- Artigo 219 como Antídoto ao “Tarifaço” Americano
Artigo 219 como antídoto ao “tarifaço” americano
Constituição já prevê, em seu Artigo 219, os instrumentos necessários para:
- Contra-medidas comerciais (alinhadas com as regras da OMC)
- Fomento à inovação em setores sob ataque
- Proteção do emprego industrial
Exemplo prático: A Coreia do Sul aplicou medidas similares em 1980 para proteger sua indústria de semicondutores, hoje dominante globalmente. Nosso Artigo 219 permite ação igualmente ousada.
Artigo 219 como estratégia de soberania nacional
A resposta ao “tarifaço” deve se alicerçar em três pilares do Artigo 219:
- Proteção – Uso de instrumentos de defesa comercial previstos constitucionalmente
- Inovação – Alocação de 2% do PIB em P&D tecnológico (como determina o parágrafo único)
- Coordenação – Criação de um Conselho de Implementação do Artigo 219 com participação de governo, indústria e academia
Como bem estabelece a Constituição Cidadã, o mercado interno não é mero detalhe – é “elemento essencial para o desenvolvimento nacional”. A hora é de tirar o Artigo 219 do papel e transformá-lo em política de Estado permanente.
Lições da história: o que evitar
O Plano Collor (1990) mostrou os riscos da abertura comercial abrupta, enquanto a China demonstrou como tarifas defensivas (ex.: 25% sobre soja em 2018) podem ser usadas para proteger cadeias estratégicas. O Brasil não pode repetir o erro de confundir “modernização” com desindustrialização.
Por um novo nacional-desenvolvimentismo
A resposta ao “tarifaço” deve ser a gota d’água para:
- Reconquistar o controle da política cambial (fim do câmbio flutuante puro);
- Reformular o sistema tributário sobre exportações de commodities não processadas;
- Criar um Conselho de Segurança Econômica com poder para vetar importações estratégicas que desindustrializem o país.
Como alertava Celso Furtado:
“Subdesenvolvimento não é fase do capitalismo, mas seu produto periférico.”
A crise atual é a oportunidade para romper esse ciclo. O caminho não é o protecionismo retrógrado, mas um projeto de nação que uma justiça social, complexidade industrial e inserção internacional soberana.
O tempo e a oportunidade para essa virada são agora!
Miguel Manso é pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Desenvolvimento Nacional e Socialismo da Fundação Maurício Grabois. Engenheiro eletrônico formado pela USP, com especialização em Telecomunicações pela Unicamp e em Inteligência Artificial pela UFV, é diretor de Políticas Públicas da EngD – Engenharia pela Democracia.
Notas metodológicas
- Dados atualizados de ANAC, BCB e OMC (2023-24).
- Referências teóricas: Economia política de Ha-Joon Chang e teses do BNDES sobre desenvolvimento regional.
- Propostas alinhadas com a Agenda 2030 da ONU (ODS 8 e 9).