Logo Grabois Logo Grabois

Leia a última edição Logo Grabois

Inscreva-se para receber nossa Newsletter

    América Latina

    Lawfare contra Daniel Jadue expõe ameaça à democracia na América Latina

    Nesta semana, o Ministério Público chileno pediu pena de 18 anos de prisão ao ex-prefeito de Recoleta. Em artigo exclusivo, o secretário político da Secretaria Regional de Relações Exteriores do Partido Comunista do Chile analisa os reflexos da perseguição judicial

    POR: Diego Aguirre

    7 min de leitura

    Daniel Jadue durante discurso público, em evento na comuna de Recoleta, Santiago, Chile. Foto: Reprodução/Facebook
    Daniel Jadue durante discurso público, em evento na comuna de Recoleta, Santiago, Chile. Foto: Reprodução/Facebook

    Jadue e o “Pecado” Popular: ou como o lawfare nos ensina a não adormecer na América Latina – Quando eu era criança, me ensinaram que a justiça era uma balança: dois pratos perfeitamente equilibrados, um símbolo de que, se alguém agisse bem, nada de ruim poderia acontecer. Aprendi isso nos livros de história, nas aulas de educação cívica e, claro, nos discursos escolares, onde algum professor, com um senso de solenidade, recitava que “ninguém está acima da lei”. Hoje, vendo o que está acontecendo no Chile com Daniel Jadue, me pergunto se a balança já não estava quebrada… ou se, melhor, alguém a está inclinando com um dedo invisível, alguém perfeitamente treinado para isso.

    Porque não nos enganemos: o Ministério Público pediu prisão preventiva e inabilitação política para Jadue, acrescentando acusações que, se bem-sucedidas em seu sentido mais amplo, podem se traduzir em penas de até 18 anos de prisão e proibição de exercer cargos públicos. Uma pena desproporcionalmente grande para um caso em que, segundo sua defesa, não há enriquecimento ilícito nem prejuízo financeiro, mas sim um debate sobre a gestão de recursos em iniciativas municipais de base. Em outras palavras: ele está sendo perseguido como se fosse um criminoso perigoso, quando o que fez foi administrar um município inconveniente para os poderes de sempre, multiplicando essa experiência em nível nacional.

    América Latina: Ciclo progressista e integração regional

    A cena, mais do que um ato de justiça, parece um déjà vu. Já vimos isso antes, em 2009 em Honduras com Zelaya, em 2012 no Paraguai com Lugo, em 2016 no Brasil com Dilma, em 2018 no Equador com Correa, em 2018 no Brasil com Lula, em 2024, até hoje, no Chile com Daniel, e agora também com Cristina na Argentina. Todos diferentes, todos com seus sotaques e maneirismos, mas com uma coincidência tão clara que poderia passar por um padrão: líderes que promoveram políticas populares, que tocaram em interesses linha-dura, que ousaram incomodar aqueles acostumados com que o campo de jogo permanecesse sempre o mesmo… até que, misteriosamente, os tribunais se tornam os protagonistas da política.

    Eles deram um nome a esse roteiro: lawfare. Uma guerra que não usa fuzis ou tanques, mas promotores, arquivos e manchetes de jornais. E, como qualquer guerra, tem sua primeira vítima: a confiança do povo. Porque quando a justiça parece uma arma, o que se corrói não é apenas a reputação de um líder, mas a própria ideia de que as regras do jogo são justas.

    Na comuna de Recoleta (o que no Brasil se chamaria município da região metropolitana de Santiago), Jadue fez algo que alguns consideraram imperdoável: demonstrar que era possível governar pensando na maioria. Farmácias, óticas, livrarias, imobiliárias acessíveis, tudo a preços de bairro… políticas que não só melhoraram a vida das pessoas, como também desafiaram diretamente os negócios de quem ganha a vida aumentando os preços dos bens de primeira necessidade. Foi aí que começou a dívida que querem cobrar dele.

    Alternativas para manter sua candidatura parlamentar existem, mas estão sob escrutínio. No âmbito judicial, e claro, no político: a pressão pública e o apoio de seu partido e aliados, que poderiam influenciar o processo para que não fosse usado para cassá-lo. Porque, embora a lei chilena o impeça de ser candidato caso seja condenado por crimes com pena privativa de liberdade, a prisão preventiva sem sentença transitada em julgado não é suficiente para destituí-lo automaticamente do cargo… embora já saibamos que, na prática, a imagem de um candidato atrás das grades pode ser tão devastadora quanto uma condenação.

    Leia também: Jeannette Jara – quando uma comunista caminha para o centro do palco no Chile

    Portanto, para os progressistas da América Latina, o caso de Jadue não é apenas um problema local. É um alerta com sotaque continental: não basta ganhar eleições, é preciso blindar a democracia contra a manipulação judicial.. Devemos olhar para Brasil, Equador, Argentina e entender que o que acontece hoje no Chile pode bater à porta amanhã em qualquer outra cidade, com outro nome e outra bandeira.

    Apoiar Daniel Jadue agora envolve mais do que apenas declarações: significa manter vivo o debate sobre o uso político da justiça, disseminar informações verificadas para contrariar a narrativa oficial, mobilizar redes de solidariedade que façam ouvir suas vozes mesmo que tentem silenciá-las e manter a pressão social para garantir que o processo seja justo e transparente. Significa entender que, nesses casos, o silêncio não é neutralidade, mas cumplicidade. Porque o que está em jogo não é apenas o futuro político de um líder, mas o direito do povo de escolher sem um processo judicial escrito com tinta política marcando seu voto.

    No final, talvez a balança da justiça ainda esteja lá, intacta, mas cercada por mãos tentando empurrá-la. Nossa tarefa é simples e difícil ao mesmo tempo: não desviar o olhar, não aceitar o roteiro sem questionar e lembrar que, hoje, a democracia não se perde de um golpe só… mas sim por pequenas inclinações que parecem técnicas, mas são políticas.

    Diego Aguirre é secretário Político do Regional Exterior do Partido Comunista do Chile


     

    Notas da edição

     

    Quem é Daniel Jadue

    Daniel Jadue, 58 anos, é arquiteto, sociólogo e político chileno, militante do Partido Comunista do Chile (PCCh). Ganhou projeção nacional e internacional por sua atuação como prefeito da comuna de Recoleta — divisão administrativa equivalente a um município —, localizada na Região Metropolitana de Santiago, cargo que ocupou entre dezembro de 2012 e junho de 2024. Durante sua gestão, implantou políticas públicas de grande impacto social, como a “Farmácia Popular”, além de óticas, livrarias e imobiliárias populares. Jadue também é escritor e já foi pré-candidato à presidência do Chile.

    Entenda o caso

    O Ministério Público chileno acusa Daniel Jadue de supostas irregularidades na gestão da Associação Chilena de Municipalidades de Farmácias Populares (Achifarp), entidade criada para unir municípios na compra de medicamentos e outros produtos a preços reduzidos. Em 3 de junho de 2024, a Justiça acatou o pedido de prisão preventiva e inabilitação para exercer funções públicas — medida equivalente, no Brasil, à suspensão dos direitos políticos. Jadue permaneceu cerca de três meses preso no anexo Capitán Yáber e, desde setembro de 2024, cumpre prisão domiciliar total.

    Na terça-feira, 12 de agosto de 2025, a Fiscalía Metropolitana Centro-Norte — órgão regional do Ministério Público responsável pela investigação criminal — apresentou uma acusação formal contra Jadue. Foram solicitadas penas que somam 18 anos de prisão, além de multas e inabilitação absoluta para exercer cargos públicos, termo que no contexto chileno significa proibição legal de assumir qualquer função pública eletiva ou nomeada pelo período fixado pela Justiça.

    **Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.

    Notícias Relacionadas