RESISTÊNCIA AO ESQUECIMENTO E AO NEGACIONISMO
Lançado em julho, o filme Dead to Rights (Luz na Escuridão) é um sucesso de bilheteria na China, já começou a ser exibido em outros países e tem lançamento previsto em streaming para o final do ano. O enredo, ambientado no contexto do Massacre de Nanquim de 1937, atrai o público interessado em conhecer mais sobre a resistência chinesa durante a ocupação japonesa. O drama acompanha a vida de chineses que buscam refúgio em um estúdio fotográfico, enquanto lutam pela sobrevivência e arriscam suas vidas para obter imagens das atrocidades cometidas.
Mais do que entretenimento, o filme integra o esforço de dar projeção a fatos marcantes, porém pouco evidenciados ou frequentemente distorcidos, desse período histórico na Ásia. Esse resgate ganha especial relevância neste 3 de setembro, quando se celebram em Pequim os 80 anos da vitória na Guerra de Resistência do Povo Chinês contra a Agressão Japonesa e na Guerra Mundial Antifascista.
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Da invasão da Manchúria à rendição japonesa em 1945
O conflito teve o seu desfecho em 2 de setembro de 1945, quando o Japão assinou sua rendição formal, encerrando a Segunda Guerra Mundial e a agressão contra a China, que havia começado 14 anos antes. Tudo começou com a anexação da Manchúria” pelo Japão, em 1931, que marca o início deste período da ocupação nipônica.
Na época, a China estava fragilizada pelas Guerras do Ópio e suas consequências, sendo forçada a permitir a ocupação britânica e francesa de parte de seus territórios continentais e a conceder outros privilégios a potências estrangeiras, além da cessão de Hong Kong como indenização de guerra. O Japão, em contraste, vinha de um período de grande desenvolvimento econômico na segunda metade do século XIX, estabeleceu uma política expansionista, que levou à estruturação de uma poderosa força militar.
A partir da Manchúria, os japoneses avançaram em diversas frentes, mesmo sem uma declaração de guerra formal. Assim, houve muitos enfrentamentos com o exército chinês, que culminaram com a tomada de Pequim em julho de 1937. Em seguida, Xangai e Nanquim, então capital da China, foram ocupadas.
A tomada de Nanquim (ou Nanjing) deu-se em dezembro de 1937. Após a rendição chinesa, o comandante japonês ordenou a morte de soldados desarmados e da população civil. O resultado foi o assassinato, em apenas seis semanas, de mais de 200 mil chineses, de acordo com estimativa do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente (1948). Já as apurações do Tribunal de Nanquim, criado para investigar o caso, chega a cifras ainda maiores: 300 mil mortos. Estupros, incêndios e saques também compunham o quadro de atrocidades.

Fossa comum preservada no Memorial de Nanjing, China, onde milhares de corpos foram jogados durante o massacre cometido por tropas japonesas em 1937. Foto: Gary Lee Todd/Flickr – Creative Commons
Além disso, os japoneses adotaram uma política de terra arrasada na guerra, sintetizada na “Política dos Três Tudos” (Matar tudo, Queimar tudo, Destruir tudo). Outra prática brutal foi a implantação do sistema de “mulheres de conforto” – mulheres aprisionadas e usadas como escravas sexuais pelo exército. Em toda a Ásia, cerca de 400 mil mulheres teriam sido forçadas a essa condição, sendo quase a metade chinesas, segundo estudos recentes.
Outra face reveladora da política japonesa de destruição foi confirmada recentemente com a divulgação de documentos pelo governo russo: o planejamento de uma guerra biológica. A “Unidade 731” do exército imperial, estabelecida em Harbin, nordeste da China, realizava “testes” com o objetivo de causar danos em alta escala à população civil e às tropas. Nesse centro, eram realizados experimentos hediondos com seres humanos vivos (prisioneiros de guerra e civis), que eram submetidos à peste, cólera, antraz e outras doenças, para análise dos efeitos. Acrescentavam-se a isso os testes para verificar os danos de bombas, que consistiam em distribuir pessoas em diferentes distâncias e bombardear a área. A unidade também submetia os prisioneiros a condições de temperatura e pressão extremas para testar a resistência do ser humano, entre outras atrocidades.
A agressão japonesa cresceu a partir de 1937 com novas ofensivas, que eram por vezes rechaçadas por contraofensivas do exército chinês regular ou pela resistência dos comunistas organizados em exércitos populares. Quando a guerra mundial se deflagrou com a invasão da Polônia pela Alemanha em 1939, já havia um conflito em andamento na Ásia. A participação direta dos norte-americanos, no entanto, só ocorreria a partir de dezembro de 1941, com o ataque aéreo contra a base militar em Pearl Harbor, quando declaram guerra ao Eixo.
Ao longo dos 14 anos de resistência, a China teve mais de 20 milhões de perdas humanas, entre militares e civis, e infligiu cerca de 1,5 milhão de baixas aos soldados japoneses. Essa resistência foi crucial, pois impediu que o Japão avançasse contra a União Soviética, o que teria aberto uma frente em larga escala na Ásia, facilitando o avanço alemão sobre os soviéticos. Portanto, a guerra de resistência chinesa teve um papel crucial nos desdobramentos de todo o conflito global.
Na Conferência de Ialta, em fevereiro de 1945, as lideranças dos EUA, da União Soviética, e do Reino Unido, firmaram acordos cujo objetivo era preparar um desfecho rápido para o conflito e projetar a estabilidade do mundo no pós-guerra. Isso incluía a ocupação partilhada dos territórios da Alemanha e do Japão. A iminente derrota alemã confirmou-se com a rendição em 8 de maio de 1945, mas a guerra persistia no leste. Para a Ásia, o plano “Operação Tempestade de Agosto”, aprovado em Ialta, foi posto em marcha com o avanço das tropas soviéticas na Manchúria, enquanto os norte-americanos atacavam as ilhas ao sul do Japão.
Com o bem-sucedido teste da bomba atômica em julho, os EUA mudaram os planos e resolveram usá-las sobre Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto, o que levou à rendição japonesa no mês seguinte.
Em consequência, apenas os EUA ocupam o Japão; a Coreia é dividida em duas, com a interrupção do avanço do exército soviético no paralelo 38; e Taiwan, que permanecia sob o domínio do Japão desde 1895, no final da Primeira Guerra Sino-Japonesa, foi devolvida à China em outubro de 1945.
Negacionismo japonês
Apesar da magnitude dos crimes, o governo do Japão jamais se desculpou ou admitiu as atrocidades contra a China. Pelo contrário, a negação dos fatos históricos a exemplo do Massacre de Nanquim tem se tornado uma rotina, sendo apresentada pela mídia como propaganda chinesa.
Longe de desculpas ou admissão de culpa, o que se observa são ações que enaltecem a participação japonesa na guerra e distorcem a história. O Santuário xintoísta Yasukuni, em Tóquio, é o palco dessa narrativa. Dedicado a homenagear os que morreram lutando pelo imperador, o local tem listados milhões de nomes, até mesmo os nomes de criminosos de guerra, que foram acrescidos secretamente. A despeito dos protestos chineses, autoridades do governo japonês comparecem ao santuário, que também é visitado por grupos de direita que usam uniformes semelhantes aos do antigo Exército Imperial ou dos pilotos kamikazes.
Memória contra esquecimento histórico
Assim, iniciativas como o filme Dead to Rights transcendem o campo cultural: são atos de resistência contra o esquecimento. Relembrar a resistência chinesa e as atrocidades sofridas é um antídoto contra o negacionismo histórico, perigo que não se limita ao passado ou às fronteiras da Ásia. Ela se manifesta globalmente na distorção das verdades científicas, na relativização de crimes contra a humanidade, e no apagamento de chagas históricas como a escravidão.
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A celebração da vitória e da resistência na China, portanto, não diz respeito apenas àquele país ou à Ásia, mas a um capítulo crucial da defesa de uma memória coletiva íntegra. É um lembrete de que a paz exige o reconhecimento da verdade e da justiça, honrando a memória das vítimas dessa imensa tragédia.
A CGTN transmite ao vivo, direto de Pequim, o desfile comemorativo. A exibição começa às 20h desta terça-feira (horário de Brasília), 9h da manhã de 3 de setembro na China. Assista aqui:
Num mundo onde o sionismo pratica o genocídio em Gaza, torna-se evidente que agressão e sofrimento continuam sendo realidades. Manter viva a memória desses fatos é passo essencial na luta por um mundo de paz.
Nilton Vasconcelos é doutor em Administração Pública e membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e conflitos institucionas no Brasil. Foi secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Governo do Estado da Bahia.