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    China

    Resistência ao esquecimento e ao negacionismo, 80 anos após a guerra

    No cinema, filme revive atrocidades da ocupação japonesa e destaca a memória da resistência chinesa como parte decisiva da vitória antifascista

    POR: Nilton Vasconcelos

    8 min de leitura

    Filme Dead To Rights, que retrata o Massacre de Nanquim durante a Segunda Guerra Mundial, lidera as bilheteiras de verão na China, arrecadando mais de 1,5 bilhão de yuans (cerca de 210 milhões de dólares) em apenas dez dias desde a estreia, em 25 de julho de 2025. Foto: Zhu Weixi/Xinhua
    Filme Dead To Rights, que retrata o Massacre de Nanquim durante a Segunda Guerra Mundial, lidera as bilheteiras de verão na China, arrecadando mais de 1,5 bilhão de yuans (cerca de 210 milhões de dólares) em apenas dez dias desde a estreia, em 25 de julho de 2025. Foto: Zhu Weixi/Xinhua

    RESISTÊNCIA AO ESQUECIMENTO E AO NEGACIONISMO

    Lançado em julho, o filme Dead to Rights (Luz na Escuridão) é um sucesso de bilheteria na China, já começou a ser exibido em outros países e tem lançamento previsto em streaming para o final do ano. O enredo, ambientado no contexto do Massacre de Nanquim de 1937, atrai o público interessado em conhecer mais sobre a resistência chinesa durante a ocupação japonesa. O drama acompanha a vida de chineses que buscam refúgio em um estúdio fotográfico, enquanto lutam pela sobrevivência e arriscam suas vidas para obter imagens das atrocidades cometidas. 

    Mais do que entretenimento, o filme integra o esforço de dar projeção a fatos marcantes, porém pouco evidenciados ou frequentemente distorcidos, desse período histórico na Ásia. Esse resgate ganha especial relevância neste 3 de setembro, quando se celebram em Pequim os 80 anos da vitória na Guerra de Resistência do Povo Chinês contra a Agressão Japonesa e na Guerra Mundial Antifascista. 

    Leia mais: China celebra 80 anos do fim da Segunda Guerra em vitória sobre o Japão

    Da invasão da Manchúria à rendição japonesa em 1945

    O conflito teve o seu desfecho em 2 de setembro de 1945, quando o Japão assinou sua rendição formal, encerrando a Segunda Guerra Mundial e a agressão contra a China, que havia começado 14 anos antes. Tudo começou com a anexação da Manchúria” pelo Japão, em 1931, que marca o início deste período da ocupação nipônica.

    Na época, a China estava fragilizada pelas Guerras do Ópio e suas consequências, sendo forçada a permitir a ocupação britânica e francesa de parte de seus territórios continentais e a conceder outros privilégios a potências estrangeiras, além da cessão de Hong Kong como indenização de guerra. O Japão, em contraste, vinha de um período de grande desenvolvimento econômico na segunda metade do século XIX, estabeleceu uma política expansionista, que levou à estruturação de uma poderosa força militar.

    A partir da Manchúria, os japoneses avançaram em diversas frentes, mesmo sem uma declaração de guerra formal. Assim, houve muitos enfrentamentos com o exército chinês, que culminaram com a tomada de Pequim em julho de 1937. Em seguida, Xangai e Nanquim, então capital da China, foram ocupadas.

    A tomada de Nanquim (ou Nanjing) deu-se em dezembro de 1937. Após a rendição chinesa, o comandante japonês ordenou a morte de soldados desarmados e da população civil. O resultado foi o assassinato, em apenas seis semanas, de mais de 200 mil chineses, de acordo com estimativa do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente (1948). Já as apurações do Tribunal de Nanquim, criado para investigar o caso, chega a cifras ainda maiores: 300 mil mortos. Estupros, incêndios e saques também compunham o quadro de atrocidades.

    Fossa comum em Nanjing, leste da China, onde corpos de vítimas do massacre de 1937 foram jogados pelas tropas japonesas. Conhecido como Massacre de Nanjing ou “Estupro de Nanjing”, o episódio resultou no assassinato de cerca de 300 mil pessoas em apenas seis semanas. Foto: Gary Lee Todd/Flickr – Creative Commons

    Fossa comum preservada no Memorial de Nanjing, China, onde milhares de corpos foram jogados durante o massacre cometido por tropas japonesas em 1937. Foto: Gary Lee Todd/Flickr – Creative Commons

    Além disso, os japoneses adotaram uma política de terra arrasada na guerra, sintetizada na “Política dos Três Tudos” (Matar tudo, Queimar tudo, Destruir tudo). Outra prática brutal foi a implantação do sistema de “mulheres de conforto” – mulheres aprisionadas e usadas como escravas sexuais pelo exército. Em toda a Ásia, cerca de 400 mil mulheres teriam sido forçadas a essa condição, sendo quase a metade chinesas, segundo estudos recentes.

    Outra face reveladora da política japonesa de destruição foi confirmada recentemente com a divulgação de documentos pelo governo russo: o planejamento de uma guerra biológica. A “Unidade 731” do exército imperial, estabelecida em Harbin, nordeste da China, realizava “testes” com o objetivo de causar danos em alta escala à população civil e às tropas. Nesse centro, eram realizados experimentos hediondos com seres humanos vivos (prisioneiros de guerra e civis), que eram submetidos à peste, cólera, antraz e outras doenças, para análise dos efeitos. Acrescentavam-se a isso os testes para verificar os danos de bombas, que consistiam em distribuir pessoas em diferentes distâncias e bombardear a área. A unidade também submetia os prisioneiros a condições de temperatura e pressão extremas para testar a resistência do ser humano, entre outras atrocidades.

    A agressão japonesa cresceu a partir de 1937 com novas ofensivas, que eram por vezes rechaçadas por contraofensivas do exército chinês regular ou pela resistência dos comunistas organizados em exércitos populares. Quando a guerra mundial se deflagrou com a invasão da Polônia pela Alemanha em 1939, já havia um conflito em andamento na Ásia. A participação direta dos norte-americanos, no entanto, só ocorreria a partir de dezembro de 1941, com o ataque aéreo contra a base militar em Pearl Harbor, quando declaram guerra ao Eixo.

    Ao longo dos 14 anos de resistência, a China teve mais de 20 milhões de perdas humanas, entre militares e civis, e infligiu cerca de 1,5 milhão de baixas aos soldados japoneses. Essa resistência foi crucial, pois impediu que o Japão avançasse contra a União Soviética, o que teria aberto uma frente em larga escala na Ásia, facilitando o avanço alemão sobre os soviéticos. Portanto, a guerra de resistência chinesa teve um papel crucial nos desdobramentos de todo o conflito global. 

    Na Conferência de Ialta, em fevereiro de 1945, as lideranças dos EUA, da União Soviética, e do Reino Unido, firmaram acordos cujo objetivo era preparar um desfecho rápido para o conflito e projetar a estabilidade do mundo no pós-guerra. Isso incluía a ocupação partilhada dos territórios da Alemanha e do Japão. A iminente derrota alemã confirmou-se com a rendição em 8 de maio de 1945, mas a guerra persistia no leste. Para a Ásia, o plano “Operação Tempestade de Agosto”, aprovado em Ialta, foi posto em marcha com o avanço das tropas soviéticas na Manchúria, enquanto os norte-americanos atacavam as ilhas ao sul do Japão.

    Com o bem-sucedido teste da bomba atômica em julho, os EUA mudaram os planos e resolveram usá-las sobre Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto, o que levou à rendição japonesa no mês seguinte.

    Em consequência, apenas os EUA ocupam o Japão; a Coreia é dividida em duas, com a interrupção do avanço do exército soviético no paralelo 38; e Taiwan, que permanecia sob o domínio do Japão desde 1895, no final da Primeira Guerra Sino-Japonesa, foi devolvida à China em outubro de 1945.

    Negacionismo japonês

    Apesar da magnitude dos crimes, o governo do Japão jamais se desculpou ou admitiu as atrocidades contra a China. Pelo contrário, a negação dos fatos históricos a exemplo do Massacre de Nanquim tem se tornado uma rotina, sendo apresentada pela mídia como propaganda chinesa.

    Longe de desculpas ou admissão de culpa, o que se observa são ações que enaltecem a participação japonesa na guerra e distorcem a história. O Santuário xintoísta Yasukuni, em Tóquio, é o palco dessa narrativa. Dedicado a homenagear os que morreram lutando pelo imperador, o local tem listados milhões de nomes, até mesmo os nomes de criminosos de guerra, que foram acrescidos secretamente. A despeito dos protestos chineses, autoridades do governo japonês comparecem ao santuário, que também é visitado por grupos de direita que usam uniformes semelhantes aos do antigo Exército Imperial ou dos pilotos kamikazes. 

    Memória contra esquecimento histórico

    Assim, iniciativas como o filme Dead to Rights transcendem o campo cultural: são atos de resistência contra o esquecimento. Relembrar a resistência chinesa e as atrocidades sofridas é um antídoto contra o negacionismo histórico, perigo que não se limita ao passado ou às fronteiras da Ásia. Ela se manifesta globalmente na distorção das verdades científicas, na relativização de crimes contra a humanidade, e no apagamento de chagas históricas como a escravidão.  

    Leia também: Meados da década expõem retrocessos sociais, democráticos e geopolíticos

    A celebração da vitória e da resistência na China, portanto, não diz respeito apenas àquele país ou à Ásia, mas a um capítulo crucial da defesa de uma memória coletiva íntegra. É um lembrete de que a paz exige o reconhecimento da verdade e da justiça, honrando a memória das vítimas dessa imensa tragédia.

    A CGTN transmite ao vivo, direto de Pequim, o desfile comemorativo. A exibição começa às 20h desta terça-feira (horário de Brasília), 9h da manhã de 3 de setembro na China. Assista aqui:

    Num mundo onde o sionismo pratica o genocídio em Gaza, torna-se evidente que agressão e sofrimento continuam sendo realidades. Manter viva a memória desses fatos é passo essencial na luta por um mundo de paz. 

    Nilton Vasconcelos é doutor em Administração Pública e membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e conflitos institucionas no Brasil. Foi secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Governo do Estado da Bahia.