Clube de Leitura

Escolha sua distopia: o avesso do avesso de nossa violenta esfinge
Por: Redação
4 de setembro de 2025
O avesso do avesso de nossa violenta esfinge
Os animais, como se sabe, dividem-se em embalsamados, sereias, desenhados com um finíssimo pincel de pelo de camelo, que de longe parecem moscas, e mais alguns tipos. Acredito que as complexidades dessas investigações se estendam aos animais políticos, entre os quais há alguns que muito dificultam os diligentes esforços taxionômicos e taxidérmicos de quem se dedica à estabilização do mundo em catálogos capazes de anestesiar a inquietação da pólis.
Luiz Eduardo Soares é um desses seres inemapalháveis.
Entre militância e filosofia
Quem o conhece pelo aspecto frontal de militante da segurança pública, vê apenas a projeção em nível pragmático do estudioso que chegou à Secretaria de Segurança carioca pelo empenho de pesquisa do contexto social registrado em Violência e política no Rio de Janeiro (1996). Mas quem observa o cruzamento do eixo da ação e do estudo talvez perca de vista uma dimensão filosófica de fundo, que, ao mesmo tempo que desenha equações capazes de dar forma aos problemas, interroga cada termo posto em tela, chamando a atenção para a instabilidade existencial – de poderes, palavras e afetos – dos fenômenos humanos. Um bom nome para o horizonte dessa reflexão seria – como diz o título de outro antigo livro seu, ainda tão atual –, O rigor da indisciplina (1994).
E talvez uma outra forma de ver toda a complexidade de vida e morte que Luiz Eduardo, a cada vez, volta a encarar, seja a da narrativa como condição básica da existência. Como são convocados e apresentados os personagens? Como se enredam em tramas que variam entre confrontos e suspenses e mergulhos subjetivos dos quais nem eles próprios conhecem o fundo que lhes contorna a figura? Que vozes comentam e conduzem a jornada? Como os eixos agônicos amarram esses seres em desenlaces ansiados e temidos?
Leia mais:
Medo, política e segurança pública
Luiz Eduardo Soares propõe um novo debate sobre segurança pública
Quem acompanha o exercício de alternância entre obras analíticas – como Justiça (2011), Desmilitalizar (2019), O Brasil e seu duplo (2019) ou Dentro da noite feroz (2020) – e as de variadas matizes ficcionalizantes – de O experimento de Avelar (1997), ao recém-lançado O Crânio de Vidro do Selvagem Digital (2025), entremeados por sucessos como Cabeça de Porco (2005) e Elite da Tropa (2006) –, sabe que a origem teatral do autor, no mítico Asdrúbal Trouxe o Trombone, pulsa na tensão de contrários presentes em tudo que escreve, entre a capacidade de pôr em cena a intensidade de fragmentos dramáticos precisos e o distanciamento reflexivo que revela os andaimes, luzes, sombras, bastidores e espelhos que fazem do encenado uma das infinitas possibilidades da montagem da trama social e existencial.
A construção de uma reflexão multidisciplinar
Escolha sua distopia (ou pense pelo avesso) é assim. Dizer que o livro é multidisciplinar, já que mobiliza sociologia, ciência política, filosofia, antropologia, direito, psicanálise, seria um tipo de miopia reversa, que vê mal por excessiva clareza de definição das bordas da constelação de fenômenos em pauta.
O eixo de assuntos que encadeia suas quatro seções – a anatomia do poder miliciano, a história da corrosão das polícias, a sombra de Junho de 2013 e, por fim, o plot twist do potencial pragmático-utópico dos Direitos Humanos – é enganoso em sua linearidade sequencial, já que a cada conjunto de ensaios reunidos em cada seção, ou a cada movimento reflexivo de cada ensaio ou até mesmo a cada peça invocada para o quebra-cabeça de nossa violência histórica, vibram dialeticamente alternativas de entendimento e de forças que sugerem que há sempre uma direção contrária ao que se diz.
Nessa escrita dramático-ensaísta, até o fundamento relativista da antropologia é virado pelo avesso, por uma reflexão filosófica acerca da constituição simétrica e dialógica do sujeito moral, que não pode se furtar de projetar no outro o valor transcendente da dignidade humana universalizada, sob pena de perder a sua própria. Uma hipótese crucial, que vê a sempre repetida irracionalidade das políticas de segurança como denegação do trauma das raízes históricas de nossa violência criminal, nos ajuda a compreender o medo paranoico como um afeto coletivo de fundamento.
A análise da trama social inclui uma dimensão agonística e de pathos, iluminando o movimento que liga o passado colonial, escravista e patriarcal, e a força atual do fascismo, mas também indica reversibilidades potenciais, tanto em afirmações vitais da diferença, como as invenções contemporâneas das identidades de gênero, como na afirmação radical dos Direitos Humanos. A vida e o pensamento pelo avesso.
Leia também: Dialética Radical do Brasil Negro, Clóvis Moura e o mito da democracia racial
Há por toda parte uma sensibilidade psicanalítica, acompanhada de afinidades eletivas com a boa dramaturgia. Vale o destaque para o explícito contraponto entre a necessidade da regulação jurídica, operada pelo Direito – que por definição estabiliza identidades e causalidades, para emitir juízos de culpa ou inocência – e o uso desconstrutivo da palavra por parte da psicanálise, para quem o sujeito, ser de linguagem, é sempre um campo de virtualidades exploráveis. Os exemplos sugerem que, ao contrário do que pretendia Freud, a psicanálise pode, sim, ser uma visão de mundo, um weltanschauung, com grande rendimento para entendimento da sociedade como algo mais que um código classificatório, ou mesmo uma dinâmica de confrontos – uma rede de ambivalências, não só de conteúdos proposicionais (ideologias expressando lógicas de interesses contraditórios), mas também de afetos e sentidos que têm sempre seus avessos e complementos, que, uma vez explorados, mesmo que de forma especulativa e imaginativa, redefinem a própria identidade dos sujeitos e de suas relações.
Talvez se possa chamar de multidimensional esse movimento ensaístico que, por exemplo, para passar em revista empírica e teórica as vicissitudes dos Direitos Humanos, começa por um mergulho em Hamlet como paradigma de hesitação e do caráter abismal da consciência e inconsciência dessa invenção histórica chamada de indivíduo.
Segurança pública e a metáfora da “visão de túnel”
Há algo de balanço nesse livro a um só tempo de intervenção do militante da segurança pública e dos Direitos Humanos – pauta crucial no cenário político, nacional e global, encoberto pela sombra do fascismo – e de um trabalho intelectual de longa maturação.
São imprescindíveis as sínteses de fôlego sobre a história de patrimonialismos, de renovados coronelismos, novas enxadas e velhos votos, que permitiram a emergência das máfias milicianas, infiltradas até o núcleo da (dita) república. Não menos importante é a complementar dissecação das formas institucionais do funcionamento das polícias e o contraponto das propostas de reforma, das quais o autor tem sido protagonista.
E se os mergulhos reflexivos se tornam mais explícitos e densos nos textos das duas seções finais, trata-se apenas de um movimento de concentração, já estão presentes desde o início. Estudo histórico e estrutural, cruzamento de horizontes antropológicos, interrogação filosófica e narração dos dramas sociais e existenciais dão esqueleto, corpo e espírito para uma escrita dialógica e interpelativa que se põe e nos põe na pólis conflagrada.
O ensaio “Visão de túnel: segurança pública, ética e justiça no Brasil”, no qual é exposta a tese do negacionismo histórico como causa da irracionalidade das políticas de segurança, é um exemplo máximo dessa lapidação do pensamento, em clareza multifacetada e iluminadora de ângulos, história, tensões internas e potencialidades negadas e ao mesmo tempo presentes.
Luiz Eduardo parte da experiência, tida como iniciática para os policiais cariocas, da “visão de túnel”: a ultra concentração inerente ao combate armado, que abole percepção e juízo para dispor à ação pura, imediata e inevitavelmente letal. Aí, num salto da narração antropológica da experiência do outro para a filosofia, o autor contrapõe o túnel ao universalismo contratualista na versão de Hannah Arendt que afirma ser condição para a civilização a postulação de “uma região além e acima da linha de combate”.
O parafuso crítico dá outra volta, e o universalismo implícito, de sabor especulativo kantiano, de Arendt, é posto em questão, convocando como necessidade – pragmática, e não transcendental – a intencionalidade horizontal de ações políticas concretas, como perspectiva de superação do impasse. O modo de colocar o jogo de pontos de vista em outra região é pôr para jogo a régua da violência de grau zero e a da racionalidade abstrata, interpeladas por outras possibilidades, experiências dialógicas de cidadania e invenções práticas de segurança pública.
Do trauma histórico à reinvenção democrática
A partir dessa conexão inesperada, entre a iniciação “caveira”, filosofia e política dos direitos humanos, a visão se multiplica, se exponencia. Primeiro, por uma caracterização do fetichismo da mercadoria como indissociavelmente amalgamado ao monopólio estatal da violência, reunindo dois vetores fundamentais do pensamento ocidental. E, logo, com a especificação da reflexão para o caso brasileiro, com a projeção da visão de túnel na história do nosso capitalismo autoritário.
A violência intransitiva e compulsória ganha contexto e função, revelando-se um operador crucial da nossa sociedade, tanto na naturalizada repressão e recorrente eliminação dos setores rebeldes ao arranjo de poder, como na denegação desse trauma brutal constantemente reencenado, expresso em discursos moralizantes obsessivamente repetidos, vazios e mortais, sobre segurança pública – espécie de aleph, ou segredo sujo da nação que nunca supera seu fundamento traumático. A não ser que tenhamos a coragem de olhar o trauma no fundo de nossa noite feroz, deslocando a energia da violência como sintoma para uma energia de construção inaugural da república sempre adiada.
Escolha sua distopia. Ou pense pelo avesso.
Serviço
Título: Escolha sua distopia (ou pense pelo avesso)
Autor: Luiz Eduardo Soares
Editora: Edições 70 (Almedina)
Páginas: 336
Ano/Edição: 2025 – 1ª edição
Compre online
Leandro Saraiva é professor do curso de Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).