A passagem do século XIX para o XX foi marcada por extrema exploração da força de trabalho e ausência quase total de direitos trabalhistas, numa fase de grande expansão capitalista e acirramento das contradições sociais.
A Segunda Revolução Industrial ampliou a concentração urbana e expôs milhões de trabalhadores a jornadas exaustivas, ambientes insalubres, mutilações e acidentes, além de doenças ocupacionais, sem qualquer proteção ao trabalhador ou forma de indenização aos vitimados. O quadro era agravado por baixos salários, trabalho infantil, superexploração das mulheres e inexistência de garantias mínimas, como seguro-desemprego, aposentadoria ou licença médica. Greves e sindicatos eram proibidos e reprimidos violentamente.
A Primeira Guerra Mundial acentuou essa situação. O “fantasma do comunismo” continuava a rondar a Europa – epicentro dos acontecimentos e principal palco da guerra. A Revolução Soviética repercutia em toda a parte, aumentando o receio das classes dominantes de que os trabalhadores se rebelassem contra condições tão degradantes.
O nascimento da OIT e as primeiras conquistas
Neste contexto, quando a Conferência de Paz de Paris (1919) discutiu um novo arranjo para a ordem mundial, a temática do trabalho ganhou importante destaque, expresso na criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), como parte integrante do Tratado de Versalhes, que pôs fim ao conflito.
Segundo o discurso prevalecente na Conferência, para alcançar uma paz duradoura no pós-guerra seria necessária uma mudança nas condições de trabalho, capaz de alterar o quadro de injustiça, sofrimento e privação das famílias operárias. A manutenção daquele cenário, entendia-se, poderia resultar em forte agitação política, colocando em risco a “paz e a harmonia” mundiais.

Secretariado da Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Washington (EUA), entre outubro e novembro de 1919, em frente ao Pan American Building. Entre os presentes, Ernest Greenwood (delegado norte-americano) e Harold B. Butler (primeiro secretário-geral da OIT). Foto: Schutz Group Photographers / Biblioteca do Congresso dos EUA, Domínio Público.
As expectativas iniciais foram relativamente atendidas já na primeira Conferência da OIT, realizada ainda em 1919, com deliberações que limitaram a jornada de trabalho para 8 horas diárias e 48 horas semanais, proibiram o trabalho infantil, instituíram o fim do trabalho noturno para mulheres e adolescentes, e ampliaram a proteção da maternidade. Após a Segunda Guerra, a OIT sobreviveu à dissolução da Liga das Nações e, a partir de 1945, passou a ser uma agência da recém-criada ONU.
Multilateralismo sob pressão e os ataques dos EUA
No pós-Segunda Guerra, a ONU buscou consolidar um sistema multilateral de paz, mas a Guerra Fria trouxe enormes dificuldades ao cumprimento de sua missão institucional. Dificuldades que se agravaram nas últimas décadas, diante da perda de protagonismo e da crise do multilateralismo.
Os EUA, em particular, têm imposto sérios revezes ao sistema ONU, afetando também a OIT. Em 2025, o governo Trump anunciou mais uma vez a desfiliação do país da Unesco; a saída do Conselho de Direitos Humanos da Organização; a rejeição de normas da OMS, com implicações para a governança sanitária global; o bloqueio à nomeação para os órgãos de apelação da OMC, paralisando a resolução de disputas comerciais; o corte de recursos para a ACNUR e UNRWA (voltada para o apoio a refugiados palestinos). De modo geral, os EUA deixaram de quitar as cotas referentes a 2024 e 2025.
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A ONU e a “crise do multilateralismo”
Em consequência de cortes orçamentários, em maio último, a OIT reduziu o número de empregados em sua sede e em escritórios nacionais, com a perspectiva de comprometimento de programas essenciais, como os de Erradicação do Trabalho Infantil, de Prevenção do Trabalho Escravo, e de Melhoria nas Condições de Trabalho (SST) e Emprego.
Trabalho Decente e os novos desafios globais
O conceito de Trabalho Decente, lançado pela OIT em 1999, representou uma atualização frente à globalização e a reestruturação produtiva: desemprego estrutural, expansão do trabalho informal, flexibilização das relações de trabalho assalariadas com perdas de direitos, incremento da pobreza, ampliação da desigualdade, fragilização do movimento sindical e redução da proteção social. A agenda propunha a criação de postos de trabalho de melhor qualidade, sistemas de proteção social, respeito a normas internacionais, e fortalecimento do diálogo social. Contudo, sua efetividade depende da cooperação internacional e do fortalecimento institucional, hoje em xeque.
Além disso, nos últimos 25 anos, novas características do desenvolvimento das forças produtivas impuseram a necessidade de atualizar a abordagem do conceito Trabalho Decente, de modo a:
– Incluir a proteção para as novas formas de trabalho, como plataformas digitais, teletrabalho em massa, inteligência artificial e automação;
– Garantir transparência e justiça nos algoritmos que gerenciam, avaliam e remuneram os trabalhadores;
– Reconhecer os impactos do estresse, do burnout, do assédio moral e da hiperconectividade sobre a saúde mental;
– Responsabilizar multinacionais pela garantia de direitos em toda a cadeia global de suprimentos;
– Reforçar a equidade e a inclusão de grupos historicamente marginalizados.
Em síntese, a OIT foi concebida como resposta às contradições explosivas do capitalismo industrial e ao longo do século XX várias Convenções aprovadas promoveram efetiva melhora nas condições de trabalho. O conceito de Trabalho Decente modernizou sua missão para os desafios de uma economia globalizada.
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O panorama atual, entretanto, é profundamente preocupante. A crise do multilateralismo tem levado a cortes orçamentários e um deliberado enfraquecimento das instituições multilaterais. Esse quadro reduz a capacidade de resposta global a desafios comuns e, no caso específico da OIT, restringe o desenvolvimento de programas vitais, como a erradicação do trabalho infantil e o combate ao trabalho escravo.
Conclui-se, portanto, que o projeto de assegurar trabalho digno para todos está intimamente vinculado à força e à credibilidade do sistema multilateral. O momento atual representa uma perigosa ameaça de desfazer décadas de avanços, ecoando perigosamente as condições de exploração. A defesa do multilateralismo e do diálogo social é uma condição fundamental para a construção de uma globalização justa e de uma paz duradoura.
Nilton Vasconcelos é doutor em Administração Pública, ex-secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Governo do Estado da Bahia. É membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da Fundação Maurício Grabois.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.