Estado terrorista e o direito à resistência: o longo caminho entre a ditadura de 64 e a Anistia de 1979
Tornou-se jargão na boca de lideranças e seguidores da extrema-direita neofascista e traidora da pátria, a serviço do imperialismo estadunidense, afirmar que a anistia aos golpistas condenados pelo STF no histórico 11 de setembro de 2025 e aos já julgados arruaceiros do 8 de janeiro de 2023 seria uma medida justa.
Argumentam: “Se foi concedida anistia para terroristas e subversivos da esquerda em 1979, por que não se pode anistiar agora a direita?”
É preciso deixar muito claro que essa comparação não tem qualquer cabimento. Não se sustenta sob nenhuma hipótese quando resgatamos a verdade dos fatos da história brasileira após o golpe de 1964.
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De Constituição democrática a Estado de exceção
A ditadura instalada no Brasil em 1964 configurou-se como um verdadeiro Estado Terrorista, violadora das normas constitucionais básicas da mais avançada Constituição Brasileira até então, aprovada em 1946, e que contou, inclusive, com uma forte e atuante bancada de 14 deputados e um senador (Luiz Carlos Prestes) do Partido Comunista do Brasil. À época, os comunistas no parlamento emplacaram diversas emendas ao texto constitucional, tratando de direitos fundamentais, como a liberdade religiosa e os direitos trabalhistas.
Desde o primeiro dia do Golpe, a liderança militar e seus aliados civis trataram de violentar o Estado de Direito vigente no Brasil, soterrando a maior parte dos princípios políticos que vigoravam no país havia quase 20 anos. E a verborragia ditatorial, que atribuía a opositores ao golpe a pecha de “subversivos e terroristas”, sempre foi absolutamente falsa, como são falsas as afirmações dos golpistas de 2022.
Elites conservadoras ameaçadas por projeto nacional-desenvolvimentista
Como assinalado acima, o golpe de 1964 representou uma brutal e radical violação das instituições democráticas vigentes no Brasil. Foi resultado de sucessivas derrotas políticas e eleitorais dos setores empresariais e militares vinculados ao imperialismo estadunidense e à lógica do liberalismo econômico.
Esse projeto se contrapunha ao Nacional-Desenvolvimentismo, iniciado por Getúlio Vargas desde a Revolução de 1930. Seu pressuposto essencial era a regulação de aspectos do capitalismo, a criação de leis trabalhistas de proteção à massa proletária urbana e a preponderância do Estado como indutor central da economia.
O Nacional-Desenvolvimentismo não era, em absoluto, um projeto socialista ou “comunista”. O Brasil também estava longe de ser o único país a praticá-lo. Basta lembrar o New Deal do presidente Roosevelt, nos EUA, nos anos 1930 e 1940, ou o desenvolvimento do Estado de Bem-estar Social na Europa após o fim da Segunda Guerra.
No entanto, havia no Brasil todo um setor econômico, político e militar ligado ao liberalismo econômico. Eram especialmente aqueles que temiam a possibilidade de uma reforma estrutural no capitalismo brasileiro, desenhada pelo presidente João Goulart e pelas forças políticas que o apoiavam.
As chamadas “Reformas de Base” foram encaminhadas ao Congresso Nacional cerca de um ano antes do golpe. Para a geopolítica estadunidense, porém, o Brasil precisava estar totalmente alinhado aos interesses políticos e econômicos de Washington — algo que o governo Goulart não garantia, dado o caráter nacionalista de suas ideias.
É nesse contexto que se concretiza o golpe de 1964. Já em suas primeiras medidas, ficava evidente o rompimento com os preceitos constitucionais vigentes à época.
AI-1 inaugura a farsa jurídica que sustentou a ditadura militar
Basta uma leitura elementar do preâmbulo do Ato Institucional nº 1, decretado em 9 de abril pelos usurpadores do poder político em 1964, para entender a extensão do profundo dano institucional do golpe e do que viria pela frente — a começar pelo engodo de proclamar um sórdido golpe como “revolução”:
“À NAÇÃO
É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.
A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.
A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe.
O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do Pais. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional.
Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.
Em nome da revolução vitoriosa, e no intuito de consolidar a sua vitória, de maneira a assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um governo capaz de atender aos anseios do povo brasileiro, o Comando Supremo da Revolução, representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica resolve editar o seguinte.”
Assinado pelo general do exército Arthur da Costa e Silva, pelo tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo e pelo vice-almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald, o AI-1 foi devastador!
Dentre suas principais medidas, estavam:
a) introdução da eleição indireta para a presidência da república, que perdurou por nada menos do que 25 anos;
b) transformou a presidência da república em um superpoder, muito acima do Congresso Nacional e da Justiça Federal;
c) suspendeu os direitos constitucionais de vitaliciedade e de estabilidade vigentes para o funcionalismo público.
- Para ler a íntegra do Ato Institucional nº 1 clique aqui
Cassações em massa e censura moldaram o novo regime autoritário
Nos primeiros meses do golpe, foram realizados 760 inquéritos que transformaram mais de 10 mil brasileiros (as) em réus na justiça. Cerca de 3 mil pessoas perderam seus direitos políticos, dos quais quase metade eram militares. Quarenta parlamentares foram cassados, no que os golpistas chamaram de “operação limpeza contra comunistas e corruptos no Congresso”.
Desde seu nascimento, outro instrumento poderoso para calar opositores foi a utilização da censura aos meios de comunicação e às manifestações culturais diversas. E, atravessando todo o período ditatorial, a corrupção foi prática comum e favoreceu militares e civis, especialmente com o desenvolvimento de novos grupos econômicos fiéis ao regime.

Certificado de censura da peça teatral “O beijo no asfalto”, de Nelson Rodrigues. Certificado n° 1210/77, de 1º de dezembro de 1977. Crédito: Arquivo Nacional / Fundo Serviço de Censura e Diversões Públicas – SCDP.
Ora, acreditar que essa terrível violação da ordem política e constitucional fosse aceita passivamente por importantes segmentos da sociedade civil organizada e setores populares— especialmente do pujante movimento trabalhista da época — é algo inimaginável. Era absolutamente natural que se articulassem várias formas de luta para resistir aos ditadores que se instalavam no coração da República.
Como deixa bem estabelecido o AI-1: “A revolução (sic) vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte”. Logo, outras medidas de profundo arbítrio foram adotadas para intensificando o poder do regime. Elas fizeram cair por terra quaisquer possibilidades de que aquele movimento poderia ser mais uma quartelada, como no passado, que seria derrotada facilmente no âmbito da luta política puramente institucional.
As instituições foram devastadas e perderam a capacidade de se contrapor aos golpistas. O último movimento eleitoral sem controle da ditadura foi a eleição para governos estaduais em 1965, que demonstrou de modo intenso a oposição da maioria do povo ao golpe.
Naquela eleição, realizada em 11 estados, aliados da ditadura foram derrotados em cinco, especialmente no então Estado da Guanabara (atual cidade do Rio de Janeiro) e em Minas Gerais. Isso acendeu todos os sinais de alerta do ditador de plantão, o marechal Castelo Branco.
Em 3 de outubro, Castelo decretou o Ato Institucional nº 2 e consolidou o aparato ditatorial sob controle dos militares e seus aliados civis. A Suprema Corte foi inflada com a nomeação de cinco novos ministros alinhados ao regime, garantindo maioria e passividade da Justiça. Os processos contra opositores ao golpe foram transferidos para a Justiça Militar.
O presidente da República passou a poder instaurar o Estado de Sítio por 180 dias sem ouvir o Congresso. Também recebeu a prerrogativa de cassar mandatos parlamentares e suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos por dez anos, além de poder exonerar funcionários públicos, civis ou militares. Poderia ainda, a qualquer momento, fechar o Congresso Nacional.
Todos os partidos existentes foram extintos, dando lugar a organização de dois novos partidos: a ARENA, que apoiava a ditadura, e o MDB, de oposição consentida, para disfarçar o real aparato ditatorial instalado. O regime também determinou o fim das eleições diretas para os governos estaduais.
É de grande importância restaurar uma verdade profundamente dolorosa para o povo brasileiro e extremamente incômoda aos defensores do golpe de 1964: nos dois primeiros anos do regime, nada menos do que 50 mil pessoas foram detidas ou presas. Destas, cerca de 20 mil sofreram variados tipos de tortura, conforme documentos liberados em anos recentes, disponíveis nos arquivos do Departamento de Estado dos EUA e da Itália.

Estudantes são detidos durante manifestação no Rio de Janeiro, em junho de 1968, um dos anos de chumbo da ditadura militar. Crédito: Arquivo Nacional / Fundo Correio da Manhã.
A ditadura militar nasceu como um Estado Terrorista e assim permaneceu, intensificando a brutal violência contra o povo brasileiro pelos anos subsequentes, até meados da década de 1970. Multiplicaram-se centros de tortura clandestinos e em quartéis, especialmente do Exército e da Marinha. As polícias estaduais foram militarizadas, tornando-se forças auxiliares da repressão e integrando o aparato reacionário. A tortura era comum nas delegacias de polícia contra detidos suspeitos de “subversão”.
Do silêncio imposto à opção pela luta armada
Foi só aí, a partir da imposição do AI-2, que começaram a ser organizados grupos de luta armada em oposição à ditadura. Para diversas forças políticas, ficava evidenciado que lutar nos marcos extremamente limitados que os generais impuseram ao Brasil era ineficaz.
O fenômeno das guerrilhas urbanas, e a maior resistência armada contra a ditadura — a Guerrilha do Araguaia (1972-1974), liderada pelo PCdoB, na verdade uma autodefesa contra-ataques do Exército aos militantes comunistas que atuavam no campo buscando organizar a resistência — foram resultado do caráter terrorista do Estado brasileiro sob os militares.
É preciso destacar ainda que a maior parte dos presos políticos e desaparecidos, dos torturados e exilados durante o regime militar não integravam grupos de guerrilhas nem adotavam métodos de resistência armada. Eram parlamentares cassados, funcionários públicos, militares das três armas e das polícias estaduais, trabalhadores, militantes sindicais, estudantes.
Anistia de 1979: vitória do povo marcada pela impunidade dos torturadores
A Anistia de 1979 foi o resultado de uma intensa luta pela redemocratização do Brasil, pela libertação dos presos políticos, retorno dos exilados e fim da violência da ditadura contra opositores. Ganhou força a partir da decomposição que o Brasil vivenciava na segunda metade da década de 1970, em função da política econômica do regime militar, ancorada especialmente no endividamento externo.
Os primeiros sinais dessa crise remontavam a 1974, quando o novo ditador de plantão, general Ernesto Geisel, foi eleito presidente pelo Colégio Eleitoral controlado pela ditadura. Diante de um cenário potencialmente estagnante, ecoando a crise do capitalismo da época, Geisel estabeleceu a política de “abertura lenta, gradual e segura”. A combinação desses fatores abriu a brecha para a luta por aquela Anistia.
Como a ditadura tinha ampla maioria no Congresso, a lei foi aprovada em agosto daquele ano, mas incluía os criminosos — torturadores e assassinos — que, a serviço do regime, cometeram as maiores barbaridades contra quem ousou se opor e caiu nas garras dos aparatos repressivos. Civis e militares que cometeram crimes a mando do Estado Terrorista jamais pagaram por seus crimes e deixaram um rastro devastador com mais de 430 vítimas entre mortos e desaparecidos.

Painel com retratos em preto e branco de vítimas da ditadura militar brasileira, exibido na exposição “Justiça de Transição Não é Transação: a brutalidade e o jardim”, no Rio de Janeiro. Flores coloridas pendem diante das imagens, simbolizando memória e resistência. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil.
Golpismo de Bolsonaro expõe os riscos da impunidade histórica
Os golpistas liderados por Bolsonaro e condenados pelo STF, inclusive o próprio ex-presidente, tentaram impor ao Brasil, aí sim, uma brutal subversão da ordem democrática. Planejaram o assassinato do presidente Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro do Supremo Alexandre de Moraes.
Provas recolhidas pela Polícia Federal no curso das investigações apontaram com clareza cristalina que os planos golpistas implicariam no uso de pesado armamento para devastar aliados do presidente Lula e de quem se opusesse ao golpe. Bolsonaro planejou permanecer no poder, custasse o que custasse, desde os primeiros dias do seu lamentável e criminoso governo.
Tentou destruir a credibilidade do sistema eleitoral nacional e do Estado Democrático de Direito ao longo de todo o seu mandato, utilizando uma criminosa indústria de fake news através das redes sociais e de pronunciamentos públicos. Semeou o caos para tentar impor uma nova ordem ditatorial e, agora, ainda por cima, recebe o apoio aberto do governo dos EUA, em uma grave violação da soberania nacional.
Não há como comparar a Anistia de 1979 com essa criminosa tentativa de anistiar os golpistas de 2022. Ela precisa ser barrada — e será. Sem anistia para os golpistas!
Altair Freitas é historiador, diretor da Escola Nacional João Amazonas e membro do Comitê Central do PCdoB.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.