Quarenta anos depois da batalha de Waterloo, o escritor Victor Hugo visitou as ruínas. Contou:
“A tormenta do combate ainda está aqui nessa praça; o horror ainda é visível; a convulsão das escaramuças está aqui petrificada; isso vive, isso morre, foi ontem. As paredes agonizam, as pedras tombam, as brechas gritam; os buracos são feridas; as árvores curvadas e arrepiadas parecem fazer força para fugir.” (Os Miseráveis)
Eu lembrei dessa passagem quando fui escrever o livro Jornal Movimento uma reportagem. É que ao repassar a coleção de 343 edições revivi o calor das batalhas que a equipe enfrentou durante seis anos e meio. A cada semana eram matérias candentes levando ao público as informações e propostas que nenhum outro veículo, jornal, revista, TV ou rádio publicava, por omissão ou por cumplicidade com o regime militar.

Livro Jornal Movimento uma reportagem, de Carlos Azevedo, com reportagem de Marina Amaral e Natalia Viana. Foto: Carlos Azevedo
E tudo estava lá, em cada edição. Ainda que cruelmente submetido à censura prévia por três anos, assim mesmo muita informação, em textos e ilustrações de alta qualidade, passava. Não se pode impedir o sol de nascer. Assim era o Movimento, imbatível.
Essa força se devia a vários fatores:
- Não tinha patrão. Era um projeto coletivo, construído com o apoio de 400 acionistas e mantido com a venda de assinaturas e em banca. Não tinha publicidade.
- Um caso raro, tinha um programa jornalístico definido: pelas liberdades democráticas; pela melhoria da qualidade de vida da população; contra a exploração do país por capitais estrangeiros; pela divulgação da cultura popular; pela defesa dos recursos naturais.
Seu lema era “não basta retratar a sociedade, é preciso transformá-la”.
E Movimento cumpriu suas propostas a cada semana, a cada reportagem, a cada artigo, a cada ilustração.
Essa equipe valorosa enfrentou a mais dura forma de censura, a censura prévia, que destruía sistematicamente importantes matérias, mas nunca recuou. Fazia novas matérias para preencher o que fora vetado ou cortado. Às vezes chegava a produzir material para três jornais dentro de uma semana, para conseguir publicar uma edição.
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Pôs a nu as crises e debilidades da ditadura, deu espaço para a cisão entre os militares, fez campanha e edição especial sobre a anistia. Propagou pelo país a proposta de uma Assembleia Nacional Constituinte em suas páginas e nas inúmeras palestras que seus principais jornalistas fizeram para trabalhadores e estudantes em diversas capitais. A edição especial sobre a Constituinte foi inteiramente proibida, mas a centelha já se espalhava pela campina.
Revolucionário, foi vanguarda na luta pela democracia.
- Capa da edição nº 334, de 1981 — a última do Jornal Movimento. Crédito: Acervo da Hemeroteca Digital Brasileira
- Capa do Jornal Movimento, edição nº 138, de 20 de fevereiro de 1978, dedicada à campanha pela anistia. Crédito: Acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo
E quando morreu todo mundo chorou.
Intelectuais, religiosos, políticos se manifestaram. Alguns exemplos:
Aguinaldo Silva, que foi seu colaborador, disse:
“Durante muito tempo foi a única janela que se tinha para respirar!”
Dom Adriano Hypólito, bispo de Nova Iguaçu:
“Contribuiu para conservar viva a consciência da democracia.”
Miguel Arraes:
“Exemplo de resistência.”
Lula:
“Houve momentos em que Movimento foi o único respiradouro da sociedade civil na luta contra a tortura, contra o arbítrio, contra a corrupção.”
Clarice Herzog:
“O jornal era uma leitura necessária, eu estabeleci uma ligação emocional com Movimento.”
Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia (MT):
“Vamos sentir falta dessa mesa redonda semanal, que nos dava, com justeza quase sempre e por vezes de primeira mão, a real atualidade do Brasil e do exterior.”
Leia a última edição do Jornal Movimento aqui ou acesse o acervo completo aqui.
Nota da Redação
O Centro MariAntonia da USP promove, no dia 10 de outubro de 2025, a comemoração dos 50 anos de fundação do Jornal Movimento. O evento é gratuito, aberto ao público, e terá a participação de Carlos Azevedo entre os palestrantes. Saiba mais.
Carlos Azevedo é jornalista, integra o Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois. Atuou em veículos como O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e Realidade e foi colaborador do Jornal Movimento. Trabalhou na TV Globo e TV Cultura, dirigiu programas políticos do PCdoB e foi editor-chefe das campanhas presidenciais de Lula em 1989 e 1994. É autor de livros como Cicatriz de Reportagem e Jornal Movimento, uma reportagem.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.