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    Economia

    Desdolarização, “corrida” ao ouro e o Brasil

    Estreando sua coluna no Portal Grabois, economista analisa a ordem financeira vigente e aponta caminhos para ampliar a autonomia dos países

    POR: Maryse Farhi

    7 min de leitura

    Moedas de ouro emitidas nos Estados Unidos no início do século XX. Foto: frankieleon/Flickr (CC BY 4.0)
    Moedas de ouro emitidas nos Estados Unidos no início do século XX. Foto: frankieleon/Flickr (CC BY 4.0)

    O sistema monetário internacional vem sendo dominado pelo dólar americano desde a Segunda Guerra Mundial. À época, a moeda americana era lastreada em ouro. Em 1971, o presidente Nixon decidiu suspender a conversibilidade do dólar em ouro, com a moeda passando a ser estritamente fiduciária, baseada na confiança dos agentes.

    Crise da hegemonia do dólar

    O papel da moeda americana como instrumento de reserva começou a ser questionado na chamada “grande recessão” (crise de 2008) em função do “afrouxamento monetário” adotado pelo Federal Reserve (FED) — banco central dos Estados Unidos — e retomado na pandemia de 2020/2022. Com essa política, a autoridade monetária americana visava injetar liquidez no sistema financeiro ao adquirir títulos da dívida pública emitidos pelo Tesouro e ativos lastreados em hipotecas nos balanços dos bancos através da impressão de moeda. Os ativos no balanço do FED passaram de US$ 2,25 trilhões em 2008 para US$ 8,6 trilhões no início de 2022.

    O distanciamento do dólar acentuou-se consideravelmente, ao iniciar-se a guerra Rússia/Ucrânia, com o rápido congelamento de cerca de US$ 300 bilhões das reservas em moeda estrangeira da Rússia depositados em bancos da União Europeia e dos Estados Unidos e a decisão de utilizar os rendimentos desses valores para financiar a ajuda militar à Ucrânia. Pouco tempo depois, o acesso de bancos e instituições financeiras russas ao sistema de comunicação entre instituições financeiras para a troca de informações e a liquidação de transações internacionais chamado Swift foi proibido.

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    O movimento de “transformação do dólar em arma” (weaponisation) teve impacto profundo entre os maiores credores dos Estados Unidos. A não renovação dos títulos públicos americanos que foram vencendo, aliada a vendas no mercado secundário, reduziu a participação percentual do Japão de 17,70% em 2020 para 12,40% em 2024, enquanto a da China foi de 15,17% para 8,87% do total da dívida pública dos EUA. Nesse período, o dólar se desvalorizou e a inclinação da curva de juros se acentuou com alta relativa dos juros de longo prazo.

    Corrida ao ouro

    Bancos centrais de diversos países, em particular o da China, passaram a comprar ouro levando a uma alta de seu preço de aproximadamente 122% de início de 2020 para cá.

    O FMI aponta que, em 2000, ativos em dólar representavam mais de 70% das reservas globais, enquanto em 2025 tinham se reduzido a 58%. Criada em 2014, a Shanghai Gold Exchange já conquistou o 1º lugar no mundo na negociação de ouro físico. A fulgurante expansão dos volumes de ouro nos balanços bancários levou, em 1º de julho de 2025, o intitulado Basileia 3 – acordo internacional de supervisão e regulação dos bancos – a incluir o ouro como “Tier one” (ativos sem risco) nos balanços bancários junto com os títulos públicos de curto prazo em dólar e em euro.

    Algumas especificidades desse aumento de demanda por ouro devem ser destacadas por serem reveladoras de sua magnitude e profundidade.

    O incremento de demanda por esse metal deu-se quase exclusivamente no segmento de ouro físico, deixando de lado o mercado dito de papel onde as trocas são baseadas em seus certificados de custódia. De posse das barras de ouro, os compradores têm se apressado em repatriá-las para seus países de origem, quebrando, assim, uma prática amplamente adotada de deixá-lo depositado em Londres ou em Nova Iorque. A busca pelo metal precioso tornou-se intensa ao ponto do London Bullion Market Association (LBMA) ter de prolongar seu prazo de entrega que era de um dia útil para 8 semanas, citando uma penúria de caminhões e equipes de segurança. Países como Alemanha, França e Itália, que mantinham seus estoques de metal precioso nos Estados Unidos, têm solicitado sua repatriação.

    Alternativas ao sistema dominado pelos EUA

    Contagem de notas de renminbi (RMB) em banco na China. A moeda chinesa ganha espaço nos sistemas de pagamento globais como alternativa ao dólar. Foto: Zhang Chunlei/Xinhua

    Paralelamente, tem se desenvolvido a constituição de novos sistemas de transferência internacional de ativos financeiros inicialmente para permitir que a Rússia, excluída do Swift, pudesse manter relações financeiras com o resto do mundo. Sistemas como o russo System for Transfer of Financial Messages (SPFS) e o chinês Cross Border Interbank Payment System (CIPS) estão em processo de implantação. Um interessante projeto colaborativo internacional, liderado pelo Banco de Compensações Internacionais (BIS) e os bancos centrais de Hong Kong, da Tailândia, dos Emirados Árabes Unidos e o da China planeja utilizar moedas digitais de Bancos Centrais (CBDCs) em uma plataforma de blockchain para permitir pagamentos transfronteiriços mais rápidos, baratos e eficientes. Entretanto, a participação do BIS foi interrompida após uma declaração do presidente dos Estados Unidos Donald Trump contrária aos Brics e a seus esforços de realizar trocas comerciais sem a participação do dólar.

    Nesse quadro, tem se desenvolvido a discussão sobre a criação de uma moeda que servisse somente para trocas entre os países do grupo denominado BRICS, sejam eles membros ou aspirantes. Alguns analistas preveem que essa moeda poderia ser o renminbi chinês ou uma nova moeda lastreada em ouro. O saldo financeiro das trocas de mercadorias ou transferências financeiras entre os países membros seria liquidado em ouro. Essa previsão baseia-se na construção em curso pela China de cofre fortes destinados a armazenar ouro e, eventualmente prata, em países de forte concentração de seu comércio exterior ou de trocas financeiras, o que lhe permitiria agilizar as operações em sua própria moeda.

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    Cenários futuros

    Esses movimentos configuram a rotação de um sistema com moeda fiduciária para outro tipo. Se a busca por uma moeda com lastro em ativos reais para a sua função de reserva de valor, é bem mais complicado imaginar a adoção de uma moeda que reproduza o padrão ouro, dada sua inerente rigidez. É possível antever que o sistema monetário baseado na predominância do dólar americano deverá ser substituído por um sistema multipolar. Em princípio, tal transição não deve ser muito rápida, salvo no caso de uma acentuada crise financeira que acelere sua plena implantação.

    Às voltas com sanções de natureza política com os Estados Unidos, o Brasil deve necessariamente promover uma extensa diversificação de suas reservas em divisas, que no fim de 2024 eram constituídas em 78,45% em dólares americanos – em particular títulos do Tesouro americano e por apenas 3,55% em ouro. Para tanto, deveria adotar medidas que permitam reduzir a exportação dos elevados volumes de ouro legalmente minerados no Brasil e restaurar o monopólio de compra do ouro pela Caixa Econômica Federal em regiões de pequenos garimpos. Torna-se igualmente necessário que o país dê passos concretos rumo à adesão aos sistemas de pagamentos internacionais não sujeitos aos ditames dos Estados Unidos.

     

    Maryse Farhi é economista formada pela Universidade de Paris I Sorbonne, com mestrado em Economia Financeira (Paris X–Nanterre) e doutorado pela Unicamp. Professora doutora aposentada da Unicamp, dedica-se ao estudo de temas como derivativos financeiros, política monetária, taxa de câmbio, independência do Banco Central, liberalização, economias emergentes e crises financeiras.