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    Economia

    O Governo Lula diante da estrutura limitadora do Estado

    Artigo analisa como a ordem institucional condiciona o governo Lula III e mantém o Brasil preso ao subdesenvolvimento dependente

    POR: Weslley Cantelmo

    9 min de leitura

    Presidente Lula durante a cerimônia de retomada das operações da Fábrica de Fertilizantes Araucária Nitrogenados S.A. (ANSA) e anúncio de investimentos na Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar), em Araucária (PR). 15.08.2024 Foto: Ricardo Stuckert / PR
    Presidente Lula durante a cerimônia de retomada das operações da Fábrica de Fertilizantes Araucária Nitrogenados S.A. (ANSA) e anúncio de investimentos na Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar), em Araucária (PR). 15.08.2024 Foto: Ricardo Stuckert / PR

    O Governo Lula diante da estrutura

    O assunto aqui é como o governo Lula navega para além de seus aspectos conjunturais. Mais do que um exercício taxonômico, se majoritariamente neoliberal ou não – que, venhamos, me parece a parte menos relevante do debate –, o que importa é como e o quão o Estado atua, como expressão dos interesses de classe, que a ele estabelece as diretrizes e se encarrega de que sejam cumpridas.

    Estrutura, disputa e a capacidade de realização do Estado

    Sendo menos simplista, é óbvio que o Estado é expressão da complexidade da sociedade, de modo que muitos interesses, inclusive contraditórios, se estabelecem e se digladiam, de acordo com o arranjo de forças. As eleições são apenas um momento dessa luta contínua. Por outro lado, é claro, existem elementos centrais ou nucleares da forma de estruturação do Estado, que estabelecem uma ordem estrutural/institucional de atuação, que condicionam a viabilidade de agendas possíveis, de acordo com as determinações das classes em disputa, em geral, em favor da que possui maior força. Não deve haver dúvidas de que um desses elementos centrais da ordem estrutural/institucional é a maneira como o Estado está organizado em virtude de sua capacidade de realização, ou seja, de sua capacidade de gestão da economia. A economia, não somente importa, como é o núcleo da disputa.

    Para ser bem claro:

    1. Não existiu, no mundo, processo de industrialização sem ação alavancadora (grana) estatal.
    2. Não existiu, no mundo, desenvolvimento tecnológico sem o dueto pesquisa de base e geração de demanda para produto inovador, que são respectivamente financiada pelo Estado e o objeto de compras públicas estatais.
    3. Não existiu, no mundo, produção e oferta de infraestruturas, urbanas e logísticas, sem algum arranjo que envolvesse algum mecanismo de política fiscal.
    4. Não existiu, no mundo, qualquer melhoria de qualidade de vida de pessoas que não fosse expressão de conquistas de classes que se materializaram por meio da ação estatal na economia.

    Quando a ação de Estado na economia foi tirada de moda (porque ela não saiu espontaneamente), a partir de meados da década de 1970, foi quando, mesmo nos países com maior acúmulo de riquezas, conquistas foram perdidas, infraestruturas se deterioraram (olhem para o decadente Estados Unidos), desigualdades se agudizaram, processos de desenvolvimento tecnológico se desorganizaram (se olharem com atenção para os Estados Unidos também perceberão esse elemento). Foi quando, também, os processos internacionais de exploração se intensificaram, inclusive pela imposição de elementos estruturais/institucionais de gestão econômica dos Estados periféricos, que lidavam com a corda no pescoço, em função da incapacidade de honrarem as dívidas que contraíram ao longo de seus intentos em promover o desenvolvimento.

    Onde se escapou da “terapia do choque” (o Estado tirado da moda), conseguiu-se manter a capacidade de realização em favor de suas sociedades. É o que temos visto em nações como a China e o Vietnã, ainda que com muitas contradições e tensões. Em síntese, quando o Estado pode servir a seu povo, há possibilidades de se manter na trilha do desenvolvimento.

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    A primeira pergunta (que recorrentemente costumo fazer) é: estamos na trilha de um processo de desenvolvimento? Não vou gastar muitas linhas nessa resposta. Sou incisivo em dizer que não. Desenvolvimento é mudança estrutural, qualitativa, no sentido das condições de melhora perceptível, duradoura e segura (difícil de ser revertida) das condições de vida do povo. Mudança associada, dentre outras coisas, ao desenvolvimento de novas forças produtivas, necessariamente apropriadas materialmente pelo povo. Desenvolvimento é, como diria Celso Furtado, uma ideologia tributária da ideia de progresso, que se expandiu para o mundo, juntamente com a civilização industrial, ancorada no colonialismo, mas que na periferia ganha, dialeticamente, novos contornos, como expressão de liberdade de uma nação, diante da força opressora das forças imperiais.

    Definitivamente, hoje, apesar do desejo expresso em discursos, inclusive nos muito assertivos e corretos do presidente Lula, não estamos na trilha do desenvolvimento, porque o núcleo estrutural/institucional do Estado brasileiro, na sua capacidade de gestão da economia, está tomado por forças sociais que impõem uma lógica não desenvolvimentista.

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    Voltando, portanto, à ordem estrutural/institucional contemporânea, durante o governo Lula III, o que temos? Temos a soma das duas últimas mudanças estruturais não desenvolvimentistas (também chamadas de neoliberais) realizadas no Brasil: a ocorrida na década de 1990 e seu complemento ocorrido a partir de 2016, com o golpe sobre o governo Dilma Rousseff.

    Não vou listar o conjunto amplo de medidas adotadas, macro e microeconômicas, que configuram a ordem estrutural/institucional neoliberal. Podemos, contudo, sintetizá-las no mofado e persistente tripé macroeconômico: câmbio flutuante, metas de inflação e superávit fiscal. A isso se somam seus desdobramentos – como o conjunto histórico de restrições fiscais, incluindo o Arcabouço Fiscal proposto pelo Governo, e as liberações de fluxos cambiais –, que retiram do Estado a sua capacidade de realização.

    Uma vez que o núcleo está determinado, o que o governo tem feito é uma gestão de arrumação, de melhorias não estruturais, uma luta com as armas que se tem. Obviamente, o governo Lula, e a sociedade brasileira que o elegeu, precisa lidar com a realidade tal como ela é. Impõe-se, então, um problema de algumas faces e possibilidades.

    A primeira seria trabalhar em condições de melhoria paulatina, com vistas ao acúmulo de forças, que parece ter sido a escolha do governo. Nessa condição, no entanto, temos limitações impostas pela reduzida capacidade de realização do Estado (sobretudo na sua expressão executiva), que tende a se agudizar, em função das regras fiscais restritivas e da divisão de protagonismo com o Congresso, recheado de emendas parlamentares, que são expressão significativa do orçamento de investimento do Estado brasileiro. Além, é claro, dos apertos monetários (política monetária que, aliás, é realizada por um grupo diminuto, representante do capital financeiro).

    Nesse sentido, a manutenção de políticas sociais que funcionam como colchão básico de sobrevivência e reprodução da população, apesar de se manterem como elementos estratégicos da coisa pública, tendem a passar por contínuas pressões de corte e racionalização orçamentária. E, fundamentalmente, a função do Estado enquanto promotor de investimentos estratégicos praticamente se esgota. O que significa dizer, de outro ângulo, que o quadro do subdesenvolvimento dependente (para utilizarmos novamente o necessário léxico de Celso Furtado) tende a se aprofundar.

    Trata-se de uma evidente e abrupta contradição para um projeto que visa o acúmulo de forças. A frustração ocasionada por cortes e ausência daquilo que o Estado potencialmente oferece de melhor pode levar à confusão de entendimento e ao consequente fortalecimento de uma extrema direita especializada na comunicação desinformativa de massas.

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    Nesse quesito, trago algo que me incomoda bastante. Uma coisa é, diante de um cenário complexo, que exigiu uma articulação de frente ampla, ver elementos dessa frente, mais à direita e sujeitos ao lobby, defendendo um modelo econômico que lhes permita uma posição confortável. Outra é ver elementos do núcleo do governo, especialmente o Ministério da Fazenda, “naturalizando” uma gestão estatal que tira do Estado a capacidade de apontar para o futuro.

    Claro que há um trabalho que aponta para elementos importantes e que podem se somar na construção de uma ordem estrutural/institucional voltada ao desenvolvimento, tal como a reforma tributária e a modificação na estrutura de tributação da renda. Esta última, com a isenção até R$ 5 mil e a aplicação de alíquota efetiva mínima para quem ganha mais de R$ 50 mil por mês, aprovada nesta quarta-feira (1º) pela Câmara dos Deputados, avança um pouco mais. Ainda assim, representa apenas um passo tímido diante das necessidades estruturais do país.

    Porém, esses elementos contrastam com a ausência de aportes fiscais para a política industrial (que opera basicamente no nível da política creditícia), com cortes em universidades e com as dificuldades de manter o financiamento de pesquisas de base. Em suma: a tendência do investimento do governo central é declinante.

    Tática na conjuntura, estratégia na estrutura: o papel da mobilização

    Outro caminho possível seria o de maior enfrentamento e acionamento de base popular. Algo do tipo “pagar para ver”, que, obviamente, precisa ter método. Claro que existem muitas e muitas possibilidades entre os caminhos e as costuras políticas. Acordos, recuos e avanços devem ser balanceados sem que se perca a noção do norte a ser seguido, que é a busca pelo desenvolvimento.

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    A correlação de forças molda a tática, mas a estratégia deve estar estampada também no cotidiano. É preciso agir na conjuntura mirando a estrutura. Esse me parece um caminho inevitável se quisermos avançar em alguma direção.

    A história do Brasil mostra que a classe no controle é insaciável, tosca e violenta – claro, essa constatação também serve para desencorajar projetos mais ousados. Nesse sentido, não cabem visões – inocentes ou cínicas – de que um governo não deve ser mobilizador. Ao contrário, é condição sine qua non, enquanto temos essa possibilidade. É arriscado? A história não registra casos de desenvolvimento sem que riscos fossem corridos.

    O mundo é perigoso e o Brasil também.

    Weslley Cantelmo é doutor em Economia (UFMG) e pesquisador do Projeto Brumadinho/UFMG. Foi superintendente de Políticas de Desenvolvimento Urbano e Regional de Minas Gerais e gestor no processo de reparação dos danos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG). Na acadêmica, investiga a produção territorial brasileira, desenvolvendo conceitos como a “subsunção manchada”, voltada à análise da relação dos povos indígenas com o capitalismo nacional.