O ministro da Economia, Fernando Haddad, em entrevista ao podcast 3 Irmãos (ver notas) falou algumas coisas sobre a China que me inquietaram. Uma delas foi que o país é o que mais faz parcerias público-privadas (PPPs) no mundo. Ele também afirmou que o setor privado avança em áreas antes controladas pelo Estado chinês.
Por isso, resolvi tratar de questões como a relação de público e privado no socialismo, projeto nacional de desenvolvimento, PPPs, concessões e privatizações. Também faço um paralelo entre o modelo chinês e o brasileiro em operações como essas.
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As concessões, as PPPs ou mesmo privatizações na China devem ser vistas sob um ângulo completamente diferente das que ocorrem no Brasil há 40 anos.
Primeiro, na China existe uma diferenciação entre capital privado e capital nacional. O crédito é direcionado com mais privilégios orientados ao setor público ou ao setor nacional da economia. Aliás, mesmo fundamental, a diferenciação entre nacional e público tem tendido a desaparecer nos últimos anos.
Aqui, faço um parêntese: sou pré-candidato a deputado federal pelo Rio de Janeiro, e uma das nossas ações será restabelecer a distinção entre capital nacional e capital estrangeiro na nossa Constituição.
Por quê? Porque, na Carta de 1988, essa diferença existia de forma clara — era uma norma desenvolvimentista.
O governo Fernando Henrique Cardoso desmontou com essa distinção mudando o texto constitucional.
Um verdadeiro projeto nacional de desenvolvimento exige o resgate dessa diferenciação entre capital nacional e capital estrangeiro. Por isso, em um futuro mandato que me for atribuído nas eleições de 2026, pretendo propor a reinclusão dessa diferenciação, reafirmando o papel estratégico do capital nacional.
Na China, essa diferença continua nítida e orienta o tratamento dado pelo Estado aos diversos setores econômicos.
Ponto dois: no Brasil, PPPs ou concessões, no geral, obedecem a um critério de equilíbrio fiscal, ou seja, entregam para o setor privado, áreas que o Estado já não tem mais condições fiscais de tocar adiante. Envolve aí infraestruturas prontas que o Estado não tem condições de fazer sua manutenção; parques e jardins, saneamento básico (água e esgoto), eletricidade. Em suma, as privatizações têm sido instrumento de alívio fiscal. Esse é o objetivo.
Também existe um quê de ideológico, uma crença de que o Estado provoca o efeito crowding out na economia (traduzir ou explicar). É a percepção de que quando o Estado está envolvido diretamente na economia, em atividades produtivas ou não produtivas, a tendência do setor privado é perder espaço. Há quem pregue ser necessário que o Estado reduza sua intervenção na economia para estimular a participação privada.
E cá entre nós, desde 2016, com golpe sobre a presidenta Dilma, toda uma legislação foi criada, tendo o teto de gastos como principal referência, para retirar o estado totalmente da economia. Contudo, alguém tem notícia de que houve uma retomada desses espaços pelo setor privado?
Isso é uma falácia. A história econômica demonstra que o Estado é o primeiro investidor — o investidor em primeira instância — e o setor privado acompanha o Estado.
Na China existe uma outra direção. Existem PPPs, concessões, existiram privatizações.
Mas com qual objetivo? O objetivo é otimizar o desenvolvimento das forças produtivas. O governo identifica que para desenvolver determinado setor é preciso fazer parcerias ou até mesmo passar o controle para a iniciativa privada para desenvolver aquela área. Não somente isso: parcerias e privatizações na China, particularmente ao capital estrangeiro, serviam para atrair tecnologia de fora.
Na China, além da questão de desenvolvimento das forças produtivas — meta estratégica nesse tipo de operação — a transferência de tecnológica é um interesse central.
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Aqui no Brasil, acreditamos que o capital estrangeiro vai nos salvar e que, portanto, temos que criar marcos institucionais para abrir nossa economia. Isso inclui aumentar a taxa de juros, abrir nossa conta de capitais, porque aí cria-se um ambiente de negócios para que o capital privado venha e resolva o problema do desenvolvimento econômico do país.
A China faz o contrário. PPPs, concessões e mesmo privatizações não redundam na perda do controle estatal. O Estado é colocado em um outro patamar estratégico.
Entro aqui com o conceito de privatização. No Brasil, o Estado é retirado, privatização significa subordinação do público ao privado. Quando se fala de privatização na China, é o contrário: trata-se de dobrar a aposta do papel do estado na economia, subordinando os investimentos privados.
O debate “infantil” sobre público e privado
Um outro ponto que eu acho fundamental colocar e que tem relação direta com o projeto nacional é o seguinte: essa discussão no Brasil tem sido feita de forma infantil — principista, tanto à direita quanto à esquerda.
Pela direita, o principismo de que o setor privado resolve tudo. Pela “esquerda”, a ideia de que o privado não presta de forma alguma e que, portanto, já está errado em falar em participação do setor privado na economia. Um certo saudosismo do modelo soviético — que, inclusive, era um modelo de Estado de exceção. Já tratei desse tema no episódio: “Por que a União Soviética acabou?” programa Meia Noite em Pequim. Dá pra ver aqui:
Na história do desenvolvimento econômico, seja no capitalismo ou no socialismo, deve haver uma relação científica entre público e privado. Mesmo no socialismo, em nenhum momento, os clássicos do marxismo, do materialismo histórico e a prática da construção socialista mostram que o público e o privado precisam se arranjar de alguma forma. Existe uma unidade de contrários a ser administrada. No caso brasileiro, por exemplo, para fins de projeto nacional, não é diferente.
Nós temos que construir uma ciência que envolve a relação entre público e privado para um projeto nacional de desenvolvimento no Brasil. Eu tenho desacordo com os processos brasileiros de privatização desde Fernando Henrique até as PPPs atuais do nosso governo Lula. Sou base do governo do presidente Lula, que tem e terá meu apoio para sua reeleição em 2026. Mas a crítica é — pelo menos deveria ser — sempre bem-vinda.
Contra a privatização de setores estratégicos
Por exemplo: sou contra a privatização do metrô do Recife (PE); da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), no Rio de Janeiro; da siderurgia e do setor elétrico brasileiro.
Isso significa que eu também parto do princípio de que o setor privado da economia não serve para nada? Não, muito pelo contrário. Essas operações são importantes. No entanto, há uma questão de fundo conceitual: não se entrega à iniciativa privada obras ou aparelhos públicos que já estão construídos.
Entregam-se ao setor privado, estradas a serem construídas e não estradas prontas somente para eles administrarem, como aconteceu nos últimos 40 anos. Esse é o marco institucional a ser enfrentado durante a construção de um projeto nacional.
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Também não se entregam setores estratégicos. A eletricidade não pode ficar nas mãos do setor privado, nem nacional, muito menos estrangeiro. Petróleo, a mesma coisa. É uma questão de segurança nacional. Água, por exemplo, está se transformando em um dos ativos mais caros no mercado, e é um patrimônio nacional. Aliás, o subsolo brasileiro deve ser estatizado.
Para não deixar pedra sobre pedra, também sou contra as Organizações Sociais (OS). Esse modelo de PPP não serve ao povo e muito menos para melhorar o serviço.
Infraestrutura e reindustrialização: o papel das PPPs produtivas
Privatizações, concessões e PPPs devem ser direcionadas a empreendimentos de infraestrutura nova. E não somente isso: precisam estar conectadas a uma rede de empresas brasileiras nacionais que já estariam montadas em tese, ou mesmo a partir de joint ventures com empresas estrangeiras, como as chinesas.
Neste ponto, entra uma outra modalidade de PPP da qual sou favorável, porque passa pela necessária reconstrução dos setores que sofreram com o processo de desindustrialização ou que foram destruídos pela Operação Lava-Jato notadamente, como o da construção civil. Podemos fazer grandes parcerias com empresas chinesas para reconstrução desses setores. É necessário marco institucional para isso.
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Em resumo: “entregaria” à iniciativa privada estradas, ferrovias e metrôs a serem construídos, com condições que o Estado deve impor às empresas responsáveis pelas obras, como a obrigação de comprar máquinas e equipamentos no mercado nacional.
Há mais de 40 anos, as privatizações têm servido como elemento para aprofundar o processo de desmonte da indústria nacional. Comprar lá fora é muito mais fácil do que comprar aqui dentro. Por exemplo, até a década de 1990, o metrô de São Paulo — e os metrôs brasileiros, em geral — eram fabricados pela Mafersa, empresa nacional com know-how, engenheiros, escadas rolantes, trens e trilhos brasileiros.
A partir dos anos 1990, a Siemens e a Alstom, sem demanda na Europa, encontraram no Brasil um grande filão e institucionalizaram uma reserva de mercado em benefício próprio.
Nossa ideia é fazer concessões para empresas brasileiras, ou consórcios nacionais em conjunto com empresas estrangeiras — que podem ser chinesas, americanas — desde que tenham o compromisso com a construção de capacidade produtiva no Brasil.
Eu estou falando aqui da emolduração de um projeto nacional que tem um caráter capitalista, evidentemente, e que, no longo prazo, acaba se transformando, pelas próprias contradições do processo, em uma ponte para o socialismo.
Uma coisa é privataria; outra é a construção de marcos institucionais que privilegiem o capital brasileiro, desatem os pontos de estrangulamento da nossa economia — notadamente nas infraestruturas — e utilizem todo um aparato institucional para viabilizar novos investimentos produtivos. Nesse contexto, cabem PPPs e até mesmo privatizações voltadas ao capital nacional.
Esta é uma concepção particular que eu tenho das relações entre público e privado sob um projeto nacional.
Sobre essas operações no socialismo, há uma falsa polêmica. Schumpeter tem uma definição interessante:
O socialismo não é a dominação do público sobre o privado, mas a tomada daquilo que outrora fora da intimidade do privado as grandes decisões de investimento.
Isso significa que a propriedade privada vai acabar no socialismo? Sim, vai acabar — mas dentro de uma historicidade. Ou seja, na medida em que o setor privado, no socialismo e mesmo no capitalismo, não é capaz de entregar aquilo que a sociedade demanda, vai ter que surgir uma outra forma de propriedade no lugar: estatal, coletiva ou algo desse tipo.
Outro comentário do ministro Haddad foi que o setor privado na China está avançando sobre os outros setores. É um equívoco. Certamente, ele não teve acesso aos dados mais recentes que tratam do tema.
Primeiro, existe na China, hoje, uma onda de inovações institucionais que reforçam uma submissão ainda maior do privado pelo público. Há cinco anos, somente 5% das ações das grandes empresas privadas chinesas eram do Estado. Hoje, esse percentual subiu para 30%. O objetivo é enquadrar o setor privado dentro das linhas gerais delineadas pelo Partido Comunista Chinês (PCCh) em projetos como “Cinco Programas”, “Made in China 2025” e “China 2035”.
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Resumindo: o setor privado chinês está sendo cada vez mais capturado pelo setor público, a fim de se concentrar nas tarefas estratégicas do país. Isso seria impossível no Brasil.
O modelo chinês e a subordinação do privado ao Partido Comunista
Outro ponto importante: as grandes empresas privadas chinesas não têm mais somente células do PCCh. O que, em tempos passados, era o papel do CEO — como as decisões de investimento —, agora cabe ao secretário do Partido Comunista na empresa. Isso ilustra bem como o setor privado chinês está cada vez mais sob controle do Partido Comunista.
Essa dinâmica tem gerado uma acumulação liderada pelo PCCh. A China incorpora todos os elementos da concepção de Estado desenvolvimentista de tipo asiático, supera essa forma histórica e entrega outra atualmente, que chamo de communist party-led development (desenvolvimento liderado pelo Partido Comunista).
É o oposto do que afirmou o ministro Fernando Haddad. Inclusive, acredito — e os chineses também colocam dessa forma — que não existe, de maneira clara, um setor privado na economia chinesa, e sim um setor “não público”.
Explico: o setor privado na China é uma concessão do Estado; as empresas estão cada vez mais sob o controle do Partido Comunista e dependem de créditos concedidos por bancos públicos chineses.
Encerro reforçando que não tenho nada contra a participação de empresários na vida econômica e nacional, mas eles devem estar subordinados a um projeto nacional de desenvolvimento.
Elias Jabbour é professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ, foi consultor-sênior do Novo Banco de Desenvolvimento (Banco dos BRICS) e é presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos. É autor, pela Boitempo, com Alberto Gabriele de “China: o socialismo do século XXI”. Vencedor do Special Book Award of China 2022.
*Análise publicada originalmente no programa Meia Noite em Pequim (TV Grabois) em 08/10/2025. O texto é uma adaptação feita pela Redação a partir do conteúdo do vídeo.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.
Nota
A entrevista do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, citada no texto, foi concedida no episódio #828 do podcast 3 Irmãos, de 27 de setembro de 2025. Assista aqui