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    Sustentabilidade

    As peças que faltam para entender o clima da Terra

    Pré-COP30, cientistas da USP e UFF defendem visão integral que una causas naturais e ações humanas para guiar ações consistentes. Sem compreender o Atlântico Sul, o Brasil segue em desvantagem na governança climática

    POR: Luigi Jovane, Mariana Moura e Sidney Mello

    9 min de leitura

    Depressão tropical no Oceano Atlântico, entre a África e a América do Sul, registrada pela Estação Espacial Internacional a cerca de 415 quilômetros de altitude, em 12/09/2024
Crédito: NASA / JSC / ISS071E649782
    Depressão tropical no Oceano Atlântico, entre a África e a América do Sul, registrada pela Estação Espacial Internacional a cerca de 415 quilômetros de altitude, em 12/09/2024 Crédito: NASA / JSC / ISS071E649782

    A emergência climática está batendo em nossas portas e, neste momento pré-COP30, domina manchetes, conferências e mesas de negociação em todo o mundo. A urgência da crise é inegável, e o foco principal — a redução das emissões de gases de efeito estufa, sobretudo o dióxido de carbono (CO₂) proveniente da queima de combustíveis fósseis — tem que ser uma prioridade científica e política. No entanto, a mobilização internacional política pode amarrar o avanço do conhecimento científico.

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    O clima do nosso planeta é o resultado de uma série de processos interconectados e complexos, em que a ação antrópica se soma aos fatores naturais que moldam o planeta há bilhões de anos. Para prever o futuro com mais precisão e agir de forma estratégica, é essencial estudar como o planeta já mudou antes de nós e quais mecanismos garantiram (ou não) sua resiliência. A negligência de um estudo aprofundado dessa base natural pode ser uma falha da nossa estratégia para combater a mudança climática.

    Oceano Atlântico Sul e as lacunas da ciência climática

    O Atlântico Sul é o oceano com menos perfurações científicas no mundo, representando uma lacuna estratégica tanto para a ciência global quanto para o Brasil. Essa ausência de dados compromete diretamente a capacidade de:

    1. reconstruir registros paleoclimáticos e paleoceanográficos de alta resolução, fundamentais para compreender como o Atlântico Sul modulou o clima global ao longo dos últimos 100 milhões de anos;
    2. entender o papel da região na circulação termoalina (AMOC/SAMOC), nas trocas de calor e carbono com a atmosfera, e nas mudanças climáticas passadas e futuras;
    3. avaliar riscos geológicos e processos associados ao fluxo de metano, hidratos de gás e dinâmica de taludes submarinos, com implicações diretas para segurança energética e ambiental; e
    4. projetar políticas públicas de soberania oceânica e uso sustentável do mar, baseadas em dados sólidos sobre recursos vivos e não vivos.

    Sem esse conhecimento, o Brasil permanece em desvantagem na corrida internacional pela compreensão e uso sustentável do oceano profundo — a fronteira do conhecimento científico e tecnológico do planeta e que será decisivo para a economia azul, a transição energética e a governança climática nas próximas décadas.

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    Neste momento, é importante que a ciência e nossos programas de fomento à pesquisa reconheçam que, para entender o que está acontecendo hoje e para prever o que pode acontecer amanhã, precisamos estudar suas causas e suas consequências — tanto as antrópicas quanto as naturais. O verdadeiro desafio é, além de quantificar a nossa interferência, compreender a partir de qual base natural estamos acelerando as mudanças climáticas para, com isso, obter modelos preditivos mais precisos. Sem esse conhecimento, estamos lutando contra um adversário cujas regras de funcionamento não dominamos por completo.

    Mecanismos naturais que moldam o clima da Terra

    O clima é um sistema dinâmico e não linear, onde pequenas alterações podem ter efeitos desproporcionais. Fatores naturais atuam em escalas de tempo que variam de milênios a poucas semanas. Ignorar um único desses elementos é o mesmo que tentar compreender uma sinfonia escutando apenas um instrumento. Entre as forçantes do clima estão os fatores geológicos, biológicos, físicos e químicos, que agem de forma sutil, mas com efeitos estatisticamente relevantes.

    As ciclicidades da insolação e a atividade solar representam as maiores componentes das mudanças climáticas a longo prazo. A isso se somam a atividade vulcânica que libera na atmosfera partículas, com a capacidade de esfriar ou aquecer o planeta, dependendo de sua composição. A abertura dos oceanos nas dorsais oceânicas, a formação e erosão de montanhas são processos lentos, mas que influenciam a química e o nível dos mares, além de padrões de vento e chuva.

    A biosfera e a criosfera também desempenham papéis relevantes. O degelo das calotas e a instabilidade do permafrost, o solo permanentemente congelado, podem liberar grandes volumes de gases de efeito estufa, um potencial gatilho para o aquecimento abrupto. A própria circulação marinha, impulsionada por diferenças de temperatura e salinidade, atua como um gigantesco transportador de calor, redistribuindo energia por todo o globo. O albedo, ou a capacidade de uma superfície refletir a luz solar, é um fator fundamental, onde o degelo de calotas polares diminui a reflexão e acelera o aquecimento.

    A vida influencia o clima

    A vida em si é uma força climática. Florestas e manguezais atuam como sumidouros de carbono. A abundância dos rios e as precipitações moldam as paisagens. O sequestro de carbono por microorganismos nos oceanos e no fundo do assoalho oceânico é um eficiente mecanismo natural de regulação do clima. E, finalmente, a interação entre ecossistemas e atmosfera forma uma espiral complexa: a vida influencia o clima e é, ao mesmo tempo, moldada por ele.

    Somados a esses fatores naturais, existem as forças antrópicas, aquelas provocadas pelo homem, que se sobrepõem de forma perigosa e que aceleram esses processos. A emissão de gases de efeito estufa, principalmente o CO₂ pela queima de combustíveis fósseis, é o principal motor. Mas a lista de interferências humanas é igualmente vasta: o desmatamento, que elimina sumidouros de carbono; o esgotamento de aquíferos, alterando o balanço hídrico; a poluição por microplástico; a perda de biodiversidade e o mau uso do solo, que degradam a capacidade do ambiente de se regenerar.

    Quando o presente é cheio de incertezas, olhar para o passado é uma das ferramentas mais poderosas. A paleoclimatologia — estudo de climas antigos — é um laboratório natural para entender como a Terra reage a choques e forçantes. Eventos abruptos já ocorreram no passado distante. Alguns desses episódios foram absorvidos; outros mudaram o planeta de forma irreversível. Compreender o que deu resiliência ou causou colapso é vital para avaliar nossos riscos hoje.

    Um novo olhar sobre a crise climática

    Esses processos, com suas escalas de tempo e espaço completamente diferentes, se somam de forma cumulativa. A questão que precisa ser respondida agora não é mais se o CO₂ é um problema – já sabemos que é, mas sim como essa emissão se encaixa e interage com as forças naturais. O nosso atual modelo climático tenta isolar o efeito do CO₂, mas a realidade é que ele se soma a uma série de outros fatores, alguns ainda desconhecidos. A agenda global sobre clima foca em impactos e adaptação humana, com prioridade justa para mitigação de emissões. Mas há lacunas perigosas: ainda precisamos investir em entender os processos naturais que interagem com as mudanças induzidas pelo homem.

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    Temos o desafio de analisar esses eventos passados para identificar quais fatores atuaram como forçantes das mudanças e, mais importante, quais foram os fatores que permitiram à Terra voltar às suas condições iniciais em alguns casos. Compreender a resiliência do nosso planeta é tão importante quanto entender sua vulnerabilidade. O que fez com que o sistema Terra se “autoajustasse” em um evento, mas não em outro? A resposta está nos dados do passado, e essa linha de pesquisa precisa de investimento.

    É um erro ter programas de fomento ao estudo das mudanças climáticas com foco quase exclusivo em suas consequências e na adaptação humana. Se tratarmos apenas os sintomas, sem entender a causa da doença, jamais encontraremos a cura. Precisamos de projetos que tentem entender como as mudanças climáticas funcionam de verdade, o que poderia resolver de fato as perturbações provocadas pelo homem, e não apenas nos prepararmos para um futuro que não compreendemos em sua totalidade. 

    Hoje, existe no Brasil uma diversidade de projetos dedicados a estudar os fatores antrópicos que provocam as mudanças climáticas, o que é essencial. Mas observamos poucas iniciativas que se dedicam a entender suas causas naturais, os fatores que poderiam suavizá-las e, principalmente, como a natureza vai responder às nossas ações.

    Como a circulação marinha vai se comportar? Como a biosfera irá reagir à nossa poluição? Qual é o real peso dos processos biológicos do oceano no balanço de carbono?

    A resposta para a crise climática reside em uma abordagem integral. Não podemos continuar a tratar o clima apenas como um problema isolado de emissões, quando ele é o resultado da interação de uma rede de sistemas complexos. Sem compreender os mecanismos naturais, nossos modelos permanecem frágeis e podemos subestimar pontos de não retorno.

    A defesa de um programa de pesquisa robusto para estudar o clima em sua totalidade não diminui a urgência das ações de adaptação e mitigação. Pelo contrário, ele as fortalece, pois dá a elas fundamento e direção e fornece o conhecimento necessário para agir de forma mais inteligente e estratégica.

    O futuro do planeta dependerá da nossa capacidade de aprender com seu passado, compreender a resiliência da Terra e, com base nesse conhecimento, enfrentar os problemas que nós mesmos criamos. O tempo é curto, e a ciência é a nossa única ferramenta para isso.

    Luigi Jovane é professor do Instituto Oceanográfico da USP.

    Mariana Nunes de Moura Souza é doutora pelo Instituto de Energia e Ambiente da USP e pesquisadora pós-doc sobre Financiamento da Ciência no Centro SOU_Ciência da UNIFESP. 

    Sidney L. M. Mello é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).

    *Publicado originalmente no Jornal da USP em 09/10/2025.

    *Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.


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