Continua a decorrer a 80ª sessão da Assembleia Geral da ONU, sob o tema “Melhores juntos: 80 anos e mais pela paz, desenvolvimento e direitos humanos”, embora a atenção midiática tenha desvanecido com o fim do período de debates de alto nível. Entre as questões em pauta está um dos compromissos históricos da organização: a abolição do colonialismo. Por isso, de 6 a 10 de outubro, estive na sede da ONU, em Nova Iorque (EUA), para demandar o cumprimento desse dever primordial da humanidade, representando o Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz).
De acordo com o Departamento de Assuntos Políticos e Construção da Paz (DPPA, na sigla em inglês), de 22 a 29 de setembro, 12.296 pessoas participaram das atividades da Assembleia Geral, incluindo 194 líderes mundiais. Os temas mais discutidos foram o genocídio perpetrado por Israel em Gaza, a guerra na Ucrânia, a crise climática, a protelada reforma da ONU e outros desafios.
Marca dos tempos, ficou para a história desta sessão como o discurso mais longo a torrente de devaneios e impropérios proferidos pelo presidente dos EUA, Donald Trump, em mais de 57 minutos que ninguém se atreveu a deter. O discurso do presidente Lula, em comparação, teve 18 minutos, e o mais curto, do primeiro-ministro belga Bart de Wever, teve menos de 7 minutos. Apenas 24 das lideranças que subiram à tribuna eram mulheres.
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Por fora dos resumos e das manchetes, também segue em curso o debate sobre uma das grandes mazelas da humanidade que as Nações Unidas solenemente prometeram abolir na Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais, adotada em 1960 através da Resolução 1514 (XV) pela Assembleia Geral. Ao nos atentarmos para as dinâmicas de exploração e opressão que continuam substanciando o sistema internacional hegemonizado pelas potências imperialistas, a persistência do colonialismo mostra-se escancarada, apesar da percepção generalizada de que este sistema de dominação é um artefato de uma velha ordem mundial superada pelo liberalismo.
Daí a importância da sessão de debates da Quarta de seis das principais Comissões da Assembleia Geral, a Comissão Política Especial e de Descolonização. Daí também a necessidade da participação de atores diversos neste fórum. Além dos Estados membros, a Comissão ouve peticionários entre a representação do movimento de libertação nacional, advogados, juristas, sindicalistas, professores, solidários – ou seja, a chamada sociedade civil, no escasso espaço disponível para atores não estatais.

Sessão da Quarta Comissão (Política Especial e Descolonização) da Assembleia Geral da ONU, iniciada em 3 de outubro de 2025, na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque. Crédito: Departamento de Assuntos Políticos e Construção da Paz das Nações Unidas (ONU/DPPA)/ Reprodução/Facebook
Uma temática central é a situação dos 17 Territórios Não-Autônomos ainda no radar da ONU. Um destes territórios é o Saara Ocidental, que foi tomado pela Espanha através da divisão colonial europeia da África em 1884 e está na agenda da organização como um território pendente de descolonização desde 1963 – ou seja, há seis décadas. Por isso, neste ano, Cebrapaz, membro do Conselho Mundial da Paz, juntou-se a dezenas de outras entidades e personalidades num empenho coletivo entre membros da Coordenadora Europeia de Apoio e Solidariedade com o Povo Saharaui (EUCOCO), da Associação Internacional de Juristas pelo Saara Ocidental (IAJUWS) e da Plataforma Latino-Americana e Caribenha de Solidariedade com o Povo Saarauí (PLACSO), entre outros, em cooperação com a Frente Polisario, para participar nos debates da Quarta Comissão.
O momento tem sido avaliado com grande preocupação. Em 2025, celebra-se o 50º aniversário da unidade nacional saarauí em torno da luta pela independência sob a liderança da Frente Polisario e também da ocupação militar e recolonização do Saara Ocidental pelo Marrocos. Completa-se ainda o 5º aniversário do retorno à luta armada, anunciado em 2020 pela Polisario, passados quase 30 anos de um cessar-fogo que manteve o Povo Saarauí sob ocupação ou exílio forçado e favoreceu a colonização e a exploração do seu território pelo ocupante e os seus parceiros internacionais.
Tais marcos evidenciam aquilo que a ONU preconiza desde a elaboração da sua Carta fundadora e aprofunda, entre outros documentos, na Declaração de 1960: a autodeterminação dos povos é um princípio basilar das relações internacionais e um requisito para a promoção da paz. Isto porque, na Declaração, a organização se diz “consciente dos crescentes conflitos que surgem do ato de negar a liberdade a esses povos e de impedi-la”. Reconhece “que os povos do mundo desejam ardentemente o fim do colonialismo em todas as suas manifestações”, assim como o fato que “o processo de liberdade é irresistível e irreversível e que, a fim de evitar crises graves, é preciso pôr fim ao colonialismo e a todas as práticas de segregação e discriminação que o acompanham”. A estas afirmações estão associadas observações sobre os direitos humanos políticos, civis, sociais, culturais e econômicos dos povos, inclusive o de dispor das suas próprias riquezas e dos seus recursos naturais e o de determinar o seu próprio modo de governo.
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Por isso, fica claro que o debate na Quarta Comissão é fulcral também para que se cumpram as grandes promessas de reforma e promoção do multilateralismo e da paz. O caso do Saara Ocidental é emblemático dos persistentes problemas do não cumprimento da descolonização e do atropelo ao direito à autodeterminação. Também demonstra as consequências da degradação do multilateralismo em prol da imposição de soluções por meio da coerção direta ou indireta – inclusive da retórica diplomática e política para encobrir o total desprezo pelo anseio do povo saarauí pela libertação nacional.
O Marrocos e aliados, nomeadamente a França, Espanha e EUA, buscam confinar a questão do Saara Ocidental ao Conselho de Segurança, onde tentam tratá-la como um conflito a ser resolvido através de negociações em condições desfavoráveis para os saarauís ou da coerção. Assim, o esforço dos saarauís por mantê-la na agenda da Quarta Comissão assume também o caráter de resistência.
Mas mesmo na Quarta Comissão, a disputa continua. Ao lado dos saarauís, dezenas de pessoas solidárias de todo o mundo participam da sessão para reafirmar a demanda da autodeterminação, recobrando uma ação há muito postergada e respaldada tanto pelos relatórios das comissões da ONU enviadas ao território quanto pela Opinião Consultiva do Tribunal Internacional de Justiça de 1975, que demonstram cabalmente nunca ter havido soberania marroquina sobre o Saara Ocidental e haver, sim, um desejo incontornável de independência. A reivindicação do Marrocos sobre o território não tem fundamento.
Já o Marrocos tem mobilizado cada vez mais peticionários para promover a sua narrativa falsificadora de uma história amplamente documentada. Os seus porta-vozes esforçam-se por negar que a questão é uma de descolonização, alegando que os saarauís lideram um movimento separatista impulsionado pela vizinha Argélia em prol da desestabilização regional, alimentando o terrorismo. Esta é uma das linhas narrativas de deslegitimação da Frente Polisario. Há muitas outras, frequentemente contraditórias.
Nas narrativas de legitimação da ocupação marroquina, o que alegam, em tom claramente colonial, é que o Reino do Marrocos promove o desenvolvimento das “províncias do sul” – o “saara marroquino”, os direitos humanos e o investimento estrangeiro, que cria empregos, estabilidade e segurança – agora, tendo acabado com o terrorismo.
Não parece haver coerência, seja com o direito internacional, com a história, ou com a lógica da argumentação. Isto porque o Marrocos usa outros meios para buscar aplastar a justa demanda do povo saarauí e estabelecer fatos consumados – seja os acordos comerciais e políticos com os seus parceiros e aliados, a campanha diplomática para isolar a Frente Polisario e reverter as suas conquistas no plano internacional, ou a violação sistemática dos direitos humanos dos saarauís, mesmo diante dos restantes membros da ONU.

Moara Crivelente, diretora para questões coloniais e neocoloniais do Cebrapaz, discursa em comissão da Assembleia Geral da ONU, outubro de 2025. Foto: UN/Reprodução YouTube
Ali na Quarta Comissão, assistimos a uma incessante busca por censurar os saarauís nas suas denúncias das práticas e das consequências da ocupação, muitas vezes anulando a sua petição. Abusando do ponto de ordem, a representação marroquina interrompeu os saarauís e outros solidários ao menos 50 vezes. A arbitrariedade de tal ação, perpetrada não nas ruas do território ocupado, onde a censura é feita às pancadas e sob detenção arbitrária e prisão política, mas sim pela representação diplomática do Estado marroquino e pela presidência da sessão, foi clara. Mencionar o Rei ou as autoridades marroquinas que exercem a ocupação era uma das linhas vermelhas.
A censura exerceu-se em nome do “decoro” e sob a alegação do desvio do assunto em pauta, em clara manipulação dos procedimentos. Os saarauís e a Frente Polisario, contudo, difamados em cada petição de maneira leviana pelos pró-marroquinos, não tiveram o mesmo direito de se defender, por não serem estados-membros. Contaram, na medida do possível, com a intervenção solidária de países amigos como a África do Sul e a Argélia, especialmente na defesa da liberdade de expressão, mas não puderam fazer a réplica em seu próprio nome.
Outros momentos são aproveitados para este fim. Além das cartas de resposta que a Frente Polisario costuma enviar à Assembleia Geral e ao Conselho de Segurança, os saarauís e as delegações solidárias que participaram da sessão da Quarta Comissão também realizaram reuniões com algumas das representações diplomáticas dos diversos países e com representantes do DPPA da ONU, e num painel sobre Libertação Nacional e o Saara Ocidental na sede da associação People’s Forum – Fórum Popular, em Nova Iorque.
O foco dessas atividades incidiu sobre a denúncia da violação sistemática dos direitos humanos dos saarauís no território ocupado pelo Marrocos, especialmente a detenção arbitrária e a tortura dos prisioneiros políticos no cárcere marroquino, assim como sobre os sérios cortes à ajuda humanitária a uma população refugiada no deserto há cinco décadas e a exploração dos recursos naturais saarauís, comercializados, por exemplo, com a União Europeia. A Frente Polisario tem desafiado tais acordos nas cortes europeias desde 2015 e conquistado importantes vitórias jurídicas, mas países membros da UE e a Comissão Europeia buscam subterfúgios para atropelar as decisões das suas próprias instâncias sobre a ilegalidade daqueles negócios. A luta nesta frente, portanto, continua.
Também foco das preocupações levantadas naqueles intercâmbios e em reunião com representantes do DPPA foi a incerteza sobre o orçamento ou a renovação do mandato da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental (MINURSO). Essa missão de manutenção da paz foi estabelecida em 1991 para preparar e implementar o referendo de autodeterminação dos saarauís, mas passados 34 anos, não conseguiu completar a sua tarefa, especialmente devido à sabotagem do processo pelo Marrocos. É ainda a única missão do tipo sem um mandato para monitorar a situação dos direitos humanos, deixando os saarauís completamente desprotegidos. Tal ponto foi também crucial porque o mandato da missão esteve sob dúvida, mas deverá ser renovado pelo Conselho de Segurança a 30 de outubro, acompanhado de novos intentos pela retomada das negociações.
Desde 2007, o Marrocos tem promovido um “plano de autonomia” que, com efeito, anula a possibilidade de os saarauís optarem pela independência num referendo. Diante do impasse criado pelo país, os seus aliados passaram a impulsionar tal plano como “a única solução credível e realista”, ainda que contrária ao direito do povo saarauí de escolher o seu destino. Assim, diversos membros do Conselho de Segurança buscam legitimar essa alternativa, numa clara manipulação do direito internacional e aventando até mesmo a possibilidade de mudar a posição histórica do órgão sobre o caso, enquanto outros, como a Rússia, recém afirmaram que só a apoiariam caso os saarauís a adotem.
Contudo, em abril deste ano, a liderança da Frente Polisario e outros membros da sociedade saarauí encontraram-se com o enviado pessoal do secretário-geral da ONU, Staffan de Mistur, nos campos de refugiados em Tindouf, Argélia, para reafirmar os seus princípios em prol da libertação nacional. A mesma posição foi reiterada pelo embaixador Sidi Omar, representante da Frente Polisario na ONU, na sessão da Quarta Comissão.
Em seu discurso, Omar recobrou as palavras do secretário-geral António Guterres sobre os 80 anos da ONU para dizer que a organização “não é apenas um lugar de encontro, mas uma bússola moral, uma força de paz e um guardião do direito internacional e, portanto, deve cumprir com as suas responsabilidades para com o Saara Ocidental e permitir que o nosso povo exerça livre e democraticamente o seu direito inalienável à autodeterminação e à independência”.
Foi esta também a mensagem que transmitimos em nome do Conselho Mundial da Paz e do Cebrapaz, concluindo que, se abrirmos mão de tratar o caso do Saara Ocidental como uma questão de descolonização a ser concluída imediatamente, continuaremos a testemunhar “a degradação irreversível do direito à autodeterminação, tão arduamente conquistado pelos povos, a vitória da força sobre a promessa, a esperança e a ação coletiva por um mundo mais justo”.
É a esta tendência catastrófica que os saarauís, as dezenas de pessoas solidárias que os acompanharam na sessão deste ano e tantas mais mundo afora continuam resistindo.
Moara Assis Crivelente é diretora-executiva do Cebrapaz – Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz, doutora em Política Internacional e Resolução dos Conflitos e pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Integra o Observatório Internacional da FMG.
*Publicado originalmente no Cebrapaz, com o título O colonialismo que ainda mancha a agenda da ONU e a questão do Saara Ocidental, em 15/10/2025.
*Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.