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    Economia

    Desemprego, miséria e estatísticas no Brasil

    Artigo analisa como os números oficiais, sob aparência de progresso, podem mascarar a precarização e o enfraquecimento dos direitos trabalhistas

    POR: Carlos Lopes

    9 min de leitura

    Evolução da taxa de desocupação (%) no Brasil, segundo a PNAD Contínua do IBGE, de 2023 a 2025. Crédito: IBGE/Divulgação
    Evolução da taxa de desocupação (%) no Brasil, segundo a PNAD Contínua do IBGE, de 2023 a 2025. Crédito: IBGE/Divulgação

    Dizem que Benjamin Disraeli (1804-1881), primeiro-ministro inglês conservador da rainha Vitória, desabafou uma vez:

    Há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas.

    Disraeli, além de político colonialista e reacionário, era ficcionista e entendia muito desse assunto – como se pode ver pelos seus inúmeros romances, nenhum dos quais se destaca por revelar algo verdadeiro da sociedade do seu tempo (pelo contrário).

    Na época da ditadura, alguém espalhou que o ministro da Fazenda (ou do Planejamento?) Delfim Netto, emérito falsificador de estatísticas, principalmente salariais, havia dito que:

    “Estatísticas são como a espada de Napoleão, com a qual se podia fazer tudo, menos sentar-se em cima.

    Não sabemos se Disraeli ou Delfim proferiram realmente essas pérolas. Provavelmente, não. Mas se as disseram, significa que seu humor era considerável, a ponto de não se importar muito com cifras que, eles sabiam, não queriam dizer nada de muito substancial sobre a realidade, exceto que queriam falseá-la – e, aliás, era exatamente por isso que os números não diziam nada sobre a realidade.

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    Esse humor, entretanto, tinha por base o sentimento popular de estar sendo vítima de uma manipulação. Era, portanto, o humor dos manipuladores. Não por acaso, como o leitor pode sentir, até por experiência própria, números estatísticos não são os objetos de maior confiança da humanidade. Embora, como disse o então presidente Itamar Franco, as estatísticas não mentem – quem mente são aqueles que fabricam estatísticas.

    Apesar disso, um homem da estatura de Lenin tinha em grande consideração os estatísticos russos anteriores à Revolução de 1917 e não apenas os estatísticos russos – e baseou seus livros mais decisivos nas estatísticas (para citar dois exemplos: O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia e Capitalismo e agricultura nos Estados Unidos: novos dados sobre as leis de desenvolvimento do capitalismo na agricultura).

    Talvez os estatísticos daquela época fossem melhores que os de hoje, ou mais honestos – mas, pela tirada de Disraeli, não era bem assim. O problema nos parece mais o de perceber o que está por trás dos números, ou seja, o que as estatísticas expressam verdadeiramente. Lenin, certamente, tinha essa capacidade altamente desenvolvida.

    Porém, vejamos o nosso país.

    Não temos dúvida de que estamos em um dos países mais miseráveis do mundo, com um salário mínimo inferior ao do Paraguai, com milhares, talvez milhões, morando nas ruas ou em barracos, com gente por atacado vivendo no subemprego – cuja diferença para o desemprego é quase infinitesimal. Ou seja, um país de esfomeados, muito desconfortável para a maioria das pessoas, em que os satisfeitos na vida são uma exceção, em que os detentores do Bolsa Família se julgam privilegiados.

    No entanto, as estatísticas, se lidas superficialmente, não mostram isso.

    Ao inverso.

    Segundo o IBGE, o país tem hoje 102 milhões de pessoas ocupadas e nunca houve tantas pessoas empregadas em nossa história. A taxa de desemprego está em meros e quase minúsculos 5,8% – caiu de 7% no primeiro trimestre de 2025 para 5,8% no segundo trimestre (v. IBGE).

    Em suma, a julgar por essas estatísticas, lidas desse modo, chegamos próximos ao paraíso. A população está empregada e, portanto, deveria estar satisfeita com a vida e com o governo. Por que, então, a ansiedade com as eleições vindouras? Como se explica que o fascismo ainda ameace – e, se fosse menos burro, a ameaça seria maior – retomar o poder? Será que a população do Brasil é composta por ingratos ou imbecis que não se satisfazem com tamanho progresso?

    O problema é que esse quadro, aparente e superficial, é falso. Nesse caso, as estatísticas servem, não para revelar, mas para esconder a miséria, a fome e o desemprego real – que algum eufemista pode muito bem chamar de subemprego ou até de emprego, sem que isso mude em nada a terrível realidade.

    Como diz o bastante arguto jornalista e analista político Marcos Verlaine:

    “Quando se olha além dos números, o quadro é menos alentador: informalidade, rotatividade e baixos salários continuam sendo a regra no mercado de trabalho brasileiro. Por trás da queda no desemprego, há recomposição de postos majoritariamente precários, intermitentes e mal remunerados. O trabalhador volta a ter ocupação, mas não necessariamente emprego digno. A renda média real segue estagnada, a desigualdade permanece alta e a segurança trabalhista é cada vez mais frágil.”

    Motorista de aplicativo Jonas Ferreira dirige em São Paulo; IBGE aponta aumento de 25,4% no trabalho plataformizado entre 2022 e 2024. Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil

    Segundo o IBGE, entre 2022 e 2024 houve aumento de 25,4% no número de pessoas em trabalho plataformizado. Do total, 58,3% atuam em aplicativos de transporte e 29,3% em apps de entrega. Na foto, o motorista de aplicativo Jonas Ferreira, em São Paulo (SP), 28/04/2023. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

    O autor examina as causas desse problema hediondo – o ataque do neoliberalismo aos direitos dos trabalhadores, sobretudo com a “reforma” de Michel Temer. Não nos deteremos nessa questão, até porque achamos que o ataque aos direitos precedeu o malfadado Temer. Apenas observaremos que os efeitos mencionados são horrivelmente reais:

    1. “O emprego com carteira assinada ainda representa menos de 40% da força de trabalho total. Enquanto isso, mais de 39 milhões de brasileiros atuam na informalidade — sem direitos, sem Previdência e sem garantias mínimas na relação laboral.”
    2. “Cresceu o número de trabalhadores sob contratos intermitentes, em plataformas digitais e serviços por demanda, modalidades que disfarçam relações de subordinação com o rótulo de autonomia. O que se vendeu como liberdade virou instabilidade permanente, em que o trabalhador é chamado apenas quando convém ao empregador e assim arca sozinho com os riscos e custos do trabalho. É o caso do contrato intermitente de trabalho.”
    3. “O resultado: compressão da renda média e queda na qualidade de vida. O País tem mais gente trabalhando, mas com menos poder de compra e menor proteção social.”

    É isso o que as maravilhosas estatísticas, citadas no início deste artigo, escondem. Porém, escondem apenas quando não revelamos o seu significado.

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    Nosso problema – o problema do país – é reverter essa situação. Não estamos falando de voltar ao estado inicial, conquistado depois da Revolução de 30, na época do presidente Getúlio Vargas.

    Na verdade, precisamos avançar mais.

    Somente uma excrescência como o neoliberalismo – ou o neofascismo que é a sua inelutável consequência – pode conceber que o avanço consista sempre em menos direitos para o povo. Assim, por exemplo, se os seres humanos vivem mais do que antes, a idade para a aposentadoria deve ser maior do que antes. Portanto, a oportunidade de gozar a vida deve ser sempre menor, sempre menor, sempre menor.

    Pelo contrário, o racional, o saudável, é que, na medida em que avançamos, os direitos devam ser sempre maiores. E não estamos falando – ainda – dos direitos que caracterizam uma outra sociedade, uma sociedade superior, como a sociedade socialista. Aqui, estamos no mero terreno da sociedade capitalista, tal como a temos e a conhecemos.

    Acontece que o neoliberalismo é uma excrescência até do ponto de vista do capitalismo.

    Mas aqui, também, fica mais clara a utilidade das estatísticas do IBGE. Uma vez destrinchado o seu verdadeiro significado, elas servem como instrumento de luta contra essa realidade, a rigor, pela transformação dessa realidade.

    Em algum lugar, Marx escreveu que a transformação partia do “lado mau” da história. Não é o “lado bom” do capitalismo, a produção de riqueza, que impulsiona a transformação. Pelo contrário, é o lado da produção de miséria e de desigualdade, a escassez, que leva à própria superação do capitalismo.

    A dialética, de certa forma, é sempre negativa – trata-se de negar a realidade existente para que possa existir outra realidade.

    Assim é a questão dos direitos trabalhistas – ainda que sem superar, pelo momento, o capitalismo.

    O autor que citamos aborda o problema de um modo interessante:

    “O cenário atual recoloca o tema do trabalho digno no centro da disputa política que se desenha para as eleições de 2026. De um lado, o projeto neoliberal — representado pela direita e extrema-direita — que defende mais abrandamento da legislação trabalhista, sob o argumento da competitividade. De outro — esquerda, centro-esquerda e progressistas de modo geral —, o campo que defende o Estado regulador, capaz de equilibrar as forças entre capital e trabalho.”

    Torcemos para que esse delineamento esteja certo – ou seja, que o entulho neoliberal de que ainda não nos livramos, não confunda os campos, levando-nos ao desastre.

    Mas a definição mais geral está, a nosso ver, correta:

    “Mais do que questão meramente econômica, trata-se de projeto de sociedade: decidir se o Brasil continuará aceitando modelo que normaliza a precarização ou se buscará nova agenda de desenvolvimento com inclusão, proteção e dignidade laboral. Isto é, trata-se de economia política” (Marcos Verlaine).

    Para isso, evidentemente, a independência nacional – isto é, a democracia plena – é a chave.

    Carlos Lopes é redator-chefe do jornal Hora do Povo, vice-presidente nacional do PCdoB e membro do Grupo de Pesquisa sobre Problemas e desafios contemporâneos da teoria marxista.

    Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.


    Notas

    1 – As citações de Marcos Verlaine foram retiradas do artigo O falso milagre do recorde de empregos, publicado em 20/10/2025, no Portal Vermelho.

    2 – Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre ocupação e desocupação têm como fonte a PNAD Contínua, que monitora a força de trabalho do país. Para ver mais detalhes clique aqui.