O desenvolvimento chinês recente é marcado por um crescimento econômico absurdo, com mais de cinco décadas de expansão a uma média de 9% ao ano. Um dos fenômenos que marcam a China contemporânea é a urbanização. Nos últimos dez anos, o país movimentou cerca de 200 milhões de pessoas do campo para a cidade, do trabalho agrícola para a indústria e serviços — quase um Brasil migrou em uma década.
Além da mudança dos locais de residência e trabalho, esse movimento gigantesco transformou hábitos e costumes de consumo. O chinês, que antes era alvo de piadas relacionadas à sua alimentação, passou a consumir proteína animal de forma exponencial, tornando a China o maior mercado mundial para carne bovina. A mudança também foi marcada pelo aumento do consumo de soja, que, além de compor uma série de produtos utilizados na culinária chinesa, é responsável pela alimentação do rebanho. Além disso, a urbanização chinesa, baseada em construção civil e na infraestrutura, gerou uma demanda colossal por ferro.
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O Brasil estava preparado para entregar à China proteína animal e se colocou à frente de Estados Unidos e Argentina também para o fornecimento de soja, graças à nossa capacidade produtiva, impulsionada pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), que transformou qualitativamente a agricultura brasileira na mais potente do mundo.
Nos posicionamos muito bem à frente da demanda chinesa, entregando soja, carne e ferro, e hoje os chineses são nosso principal parceiro comercial. Somente esses três produtos primários respondem por mais de 70% das nossas exportações para o país. Vendemos o dobro para a China em relação aos Estados Unidos.

Apesar dos benefícios das reservas, há um lado sombrio: a reprimarização da economia brasileira. O Brasil foi um gigante industrial, o país capitalista que mais cresceu entre 1930 e 1980. No mundo, apenas Japão e União Soviética cresceram tanto quanto o Brasil. Saímos da Idade Média em 1930 e entramos na Idade Contemporânea em 1980. Um caminho de 50 anos, que a Europa demorou 600 anos para fazer. Porém, em 1982 vem a crise da dívida e o Brasil começa a não dar conta de enfrentar as contradições que surgem desse processo de industrialização.
A partir dos anos 1990, com as reformas neoliberais, iniciamos um intenso processo de desindustrialização e desinvestimento e, ao mesmo tempo, nos especializamos em exportar produtos primários. A China, que era menos industrializada que o Brasil na década de 1980, subiu degraus das cadeias de valor nos últimos anos — deixando de vender tênis, gravata e camisa para vender aviões e computadores. Hoje, a China disputa a fronteira tecnológica com os EUA e está à frente em 36 de 40 setores de alta tecnologia.
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Enquanto isso, o Brasil andou para trás, voltando a ser um país com o comércio internacional baseado na exportação de commodities. Nós ocupamos uma posição desfavorável no comércio internacional, já que os preços das commodities são definidos fora do Brasil.
Relações estratégicas Brasil – China no século XXI
Em 2004, eu estava na China quando Lula assinou um grande acordo que alçou as relações com os chineses ao patamar de parceria estratégica. Vinte anos depois, em novembro de 2024, durante a visita do presidente chinês Xi Jinping ao Brasil, as relações entre Brasil e China foram elevadas a um patamar superior, recebendo a designação de “Comunidade de Futuro Compartilhado”.
Em termos de economia, o mercado chinês nos garantiu algo muito importante. Enquanto a direita insiste no mito de que o PT “quebrou o Brasil”, a realidade é que nenhum país quebra em moeda nacional. Os países quebram por falta de reservas cambiais em moeda estrangeira.
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Graças, em grande medida, ao comércio com a China e à orientação do nosso comércio para o Sul Global, o Brasil construiu um colchão de reservas cambiais que supera US$ 350 bilhões. Isso garante autonomia para a nossa política monetária, independente dos ciclos econômicos externos. Ou seja, o Brasil não só não quebrou, como mantém um colchão de dólares que impede a quebra nas próximas décadas.
Golpe de 2016 e reprimarização da economia
Transformado em política de governo no mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o neoliberalismo foi elevado à condição de política de Estado no governo de Michel Temer (MDB).
Durante os governos anteriores (Lula 1 a Dilma 2), surgiram possibilidades para a construção de um projeto nacional de desenvolvimento e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) teve uma política muito ativa na contenção da crise financeira em 2009. A descoberta do Pré-Sal tendo a Petrobras como única operadora dessas imensas reservas e a participação do Brasil na fundação do grupo BRICS foram medidas que caracterizam o surgimento lento e gradual de um projeto nacional, ainda não capaz de mudar os marcos macroeconômicos.
O golpe de 2016 encerrou o ciclo de possibilidades de um projeto nacional. O Brasil viu o estabelecimento de novos marcos institucionais que converteram o neoliberalismo de política de governo em política de Estado. Tais marcos incluem a Independência do Banco Central, o Teto de Gastos (que levou à criminalização da política fiscal) e a abertura das compras governamentais a licitação internacional, o que impede que as compras públicas sejam usadas como instrumentos de fomento à ciência e à tecnologia.
Esse fechamento institucional consolidou um consenso de anti-industrialização no Brasil. A reprimarização é o fenômeno mais claro resultante desse processo, sendo o outro lado da moeda do processo de desindustrialização. O consenso institucional que existe hoje é anti-industrialização. Isso significa que qualquer política industrial irá esbarrar nas maiores taxas de juros do mundo e na criminalização da política fiscal.
Nesse sentido, as relações Brasil-China acarretam o aprofundamento da tendência de deterioração dos termos de troca, porque o Brasil sofre quando os preços das commodities caem. Os chineses sofrem muito menos quando vem alguma crise, porque o preço dos produtos industriais cresce de forma muito mais lenta do que o dos produtos agrícolas. É aí que está o problema: o aprofundamento da reprimarização e da deterioração dos termos de troca.
Esse é um ponto fundamental, porque muita gente coloca a culpa na China. Mas não foi o país asiático que nos impôs o Consenso de Washington, os empréstimos condicionados pelo FMI, o Plano Real ou o regime de metas de inflação. A China apenas faz negócios conosco, e é evidente que esse padrão de comércio não nos interessa nesse aspecto. Mas é preciso que esteja muito claro: isso não é culpa dos chineses.
Em ciclos à esquerd, vem sempre essa discussão de que a China foi um elemento propulsor do nosso processo de reprimarização. Eu não concordo. Foi uma escolha brasileira; evidentemente, a atratividade que o mercado chinês exerce acaba sendo muito sedutora para a manutenção desse padrão de acumulação não industrial brasileiro.
Oportunidade de reindustrialização
Como qualquer país periférico, o Brasil não tem capital bancário e capital industrial fundidos. Também não somos um país socialista, onde os meios de produção fundamentais estão sob o controle do Estado. Nós, ao contrário, não conseguimos gerir as tendências do nosso processo de desenvolvimento.
Cabe a países como o Brasil observar as tendências internacionais, internalizá-las e planejar. Por exemplo, a tendência do automóvel lançada pelos Estados Unidos na década de 1950 foi muito bem absorvida e trouxe as montadoras estrangeiras para o Brasil, dando início a uma política de substituição de importações.
Com isso, o Brasil passou a orientar o seu processo de unificação física e do seu mercado interno por meio de grandes rodovias. Ou seja, o país aproveitou muito bem essa tendência do automóvel para planejar o processo de desenvolvimento.
Qual é a grande questão para o Brasil atualmente? O país precisa se reindustrializar. Tanto é que, para as eleições de 2026, caso nossa pré-candidatura a deputado federal se consolide, um dos carros-chefe da campanha será a volta do parágrafo que coloca a diferenciação entre capital nacional e capital estrangeiro na Constituição. É uma mudança institucional que ajuda a impulsionar o nosso processo de reindustrialização.
Ao mesmo tempo, observamos que nossas conexões físicas estão completamente destruídas. Você não vai de Porto Alegre (RS) até o Norte do país sem enfrentar sérios problemas por causa da má condição das rodovias. A questão da interligação física brasileira, dos nossos mercados internos, virou uma questão de soberania nacional. É urgente que o Brasil reconstrua as vias que ligam os mercados regionais, elevando o país novamente à condição de mercado nacional unificado, algo que estamos deixando de ser.
Então, olhamos para a China e ela virou uma grande exportadora de bens públicos, como rodovias, portos e trens de alta velocidade.
Discute-se muito a tal da sinergia Brasil-China entre o Programa Nova Indústria Brasil e a Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative — BRI). O que eu acho disso? Primeiro, nós temos que elevar a nossa capacidade de pensar de forma sofisticada a estratégia nacional. Uma das camadas de um projeto nacional de desenvolvimento que queremos pautar é o estabelecimento de relações exteriores que tenham como norte orientador a reindustrialização.
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Nossas relações com a China têm que estar baseadas em grandes alianças políticas, grandes conceitos políticos, mas também com um interesse nacional muito claro: o nosso processo de reindustrialização. Negociar com os chineses é muito difícil, mas é possível.
Precisamos ter condições de discutir a reconstrução das nossas infraestruturas, destruídas ao longo dos últimos anos. Ao comprar um pacote de reconstrução da malha rodoviária e ferroviária, por exemplo, deve estar em pauta a negociação da constituição de fábricas em joint venture entre Brasil e China, nos setores de construção, indústria mecânica pesada e metalmecânica.
Isso permitiria enfrentar a reconstituição das cadeias produtivas perdidas na desindustrialização e, crucialmente, reconstruir as cadeias destruídas pela Operação Lava Jato, que liquidou 4 milhões de empregos e a fina flor da indústria de construção brasileira. Aliás, caso eu venha a ser deputado um dia, penso em instalar uma Comissão da Verdade da Operação Lava Jato.
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Negociações
Existem vários exemplos no mundo de negociações com os chineses com resultados melhores do que as feitas com o Brasil. Os chineses podem nos entregar ferrovias e rotas bioceânicas. Mais: em vez de servirem apenas para unificar o mercado nacional, podem consolidar a tendência do Brasil exportador de matérias-primas, ao ligar o litoral brasileiro ao Porto de Chancay, no Peru.

Traçado previsto ligando o Porto Sul, no Oceano Atlântico (Ilhéus, Brasil), ao porto de Chancay, no Oceano Pacífico (Peru), localizado a cerca de 80 quilômetros de Lima. O corredor integra as ferrovias FICO e FIOL para expandir o comércio entre China e América do Sul. Fonte: Ministério dos Transportes
Se não observarmos as relações com a China como funcionais a esse processo de reindustrialização, corremos o risco de consolidar o Centro-Oeste como o centro dinâmico do agronegócio e transformar o restante do país — Brasília, Minas, Bahia e partes das regiões Nordeste, Sul e Sudeste — em um “favelão”. Não estou exagerando: onde existe desindustrialização, há aumento da criminalidade e proliferação de favelas.
Meu objetivo é pautar a centralidade da questão nacional e a necessidade urgente de uma repactuação em torno de um projeto nacional de desenvolvimento, usando a China como elemento funcional a esse processo e não como bode expiatório das nossas escolhas equivocadas.
Assista a íntegra do programa Meia Noite em Pequim:
Elias Jabbour é professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ, foi consultor-sênior do Novo Banco de Desenvolvimento (Banco dos BRICS) e é presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos. É autor, pela Boitempo, com Alberto Gabriele de “China: o socialismo do século XXI”. Vencedor do Special Book Award of China 2022.
*Análise publicada originalmente no programa Meia Noite em Pequim (TV Grabois) em 22/10/2025. O texto é uma adaptação feita pela Redação com suporte de IA, a partir do conteúdo do vídeo.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.