O “sucesso” de Castro
As cenas de violência e horror que marcaram o dia 28 de outubro de 2025 no Rio de Janeiro (RJ) motivaram boas e necessárias reflexões críticas de especialistas, militantes, jornalistas e líderes sociais. Via de regra, textos e imagens publicados em profusão buscaram destacar a brutalidade da Operação Contenção conduzida pelo governo do bolsonarista Cláudio Castro, enfatizando questões centrais que precisavam, de fato, ser lembradas.
Dentre elas, a avaliação de que o modelo de “guerra às drogas” centrado no enfrentamento militarizado contra facções criminosas não soluciona o problema do controle territorial que elas impõem à população carioca, não abala a lucratividade das economias ilícitas e ainda retroalimenta ciclos de violência que parecem infindáveis. Assim, o modelo hegemônico de política de segurança pública é, ao mesmo tempo, falido, nefasto e ineficiente.
Em meio a tanta tristeza, é particularmente chocante constatar que, pelos noticiários, a “única diferença” desta operação, em comparação com as que ocorrem corriqueiramente, parece ser apenas em termos de grandeza: o número de policiais envolvidos, o número de blindados empregados, a quantidade de drones utilizada e o número de mortos.
Desta vez, aparentemente, foram assassinados mais “supostos criminosos” do que costuma acontecer, com a contagem de corpos passando da centena, segundo várias fontes. No mais, tem-se a impressão de que foi uma altercação com características usuais: policiais militares invadindo o morro, veículos blindados, barricadas colocadas por criminosos, helicópteros com atiradores, tiroteios com armas de grosso calibre, etc.
As críticas ao modelo repressivo são pertinentes e acertadas, mas raramente dão à coisa o seu verdadeiro nome: a política de segurança pública no Rio de Janeiro é uma expressão nua e crua da luta de classes. Com 60, 100 ou 150 mortos, a operação de Castro foi um “sucesso” porque realizou aquilo para a qual foi planejada: conter, amedrontar, disciplinar, restringir a um determinado território, afirmar a autoridade da força, demarcar espaços entre “civilização” e “barbárie” e renovar diariamente o estado de exceção permanente sob o qual sobrevive a população preta, pobre, favelada e periférica do Rio.
Não se trata apenas da “contenção do CV”, mas da contenção, intimidação, delimitação territorial, obstrução do direito de ir e vir, aterrorização da população mais vulnerável da cidade. Como costuma acontecer com os autoritários que mal disfarçam o fascismo, os atos falhos abundam: denominar a operação de “contenção” revela o real propósito não apenas desta operação, mas da política de segurança pública do Rio como um todo.
No importante documentário Notícias de uma guerra particular (1998), dirigido por João Moreira Salles e Katia Lund, o então chefe da Polícia Civil do RJ, Hélio Luz, afirma, categoricamente, que a política de segurança pública do Rio “funcionava” — prova disso é que não havia arrastões todos os dias. De forma cínica, Luz “deu a letra”: política de segurança pública no Rio não tinha e nunca teve nada a ver com o oferecimento de um bem público à população carioca, ou seja, a garantia de uma vida social pacífica, sem a generalização da violência e da insegurança, para que todas e todos possam desenvolver plenamente suas capacidades e aspirações, com integridade física e psíquica.
Governo da miséria e das lucratividades
Em sociedades altamente desiguais como a nossa, as políticas de segurança pública são táticas de gestão da miséria e de manejo dos contingentes de excluídos, produzidos em número cada vez maior pelo capitalismo. Por essa razão, as ações repressivas policiais são de tipo militarizado.
Isso significa duas coisas. Primeiro, são militarizadas porque empregam armas, veículos e táticas que são próprias ou provêm de tropas especiais e ambientes doutrinários militares. Em segundo lugar, porque têm objetivos de tipo militar: os militares das forças armadas são treinados para enfrentar inimigos até desarmá-los ou matá-los em guerras; não são policiais que, teoricamente, lidam com cidadãos e cidadãs que, apesar de estarem em confronto com a lei, seguem sendo sujeitos de direitos e garantias.
Além disso, as políticas de segurança pública funcionam para regular os mercados ilegais e para organizar o crime organizado. Não é sem a ação das forças de segurança do Estado que determinados territórios são demarcados para abrigar mercados ilegais 一 como os lugares para receptação de cargas roubadas, venda de armas, estocagem e venda de drogas, extorsão de comércios e de moradores, etc 一 mercados que movimentam milhões de dólares anuais, dos quais dependem muitos milhares de pessoas e que impulsionam a vida econômica de bairros, cidades e até regiões inteiras de um país. Agentes do Estado participam destas economias, diretamente ou extraindo rendas por meio de coerção daqueles que operam os ilegalismos.
De forma complementar, o sistema penitenciário literalmente organiza as facções, dividindo presídios por grupos distintos, cedendo o controle da vida intramuros às próprias organizações, permitindo que chefes do crime façam das celas seus escritórios e dos pavilhões, escolas de treinamento dos seus “soldados” e call centers de golpes e fraudes eletrônicas.
Governantes como Cláudio Castro ou Tarcísio de Freitas argumentam que o crime organizado é forte demais e precisa ser enfrentado com os recursos da guerra.
No entanto, grupos como o Comando Vermelho não têm capacidade operacional, conhecimento ou mesmo recursos para suplantar o Estado — mesmo um estado como o Rio de Janeiro, muito menos o Estado brasileiro. Logo, o chamado crime organizado não é uma “ameaça à soberania do Brasil”.
Os jovens 一 todos negros, homens e muito jovens 一 registrados durante a operação correndo para a mata, sendo rendidos, levados em custódia ou carregados sem vida, não têm treinamento militar, não usavam coletes à prova de bala, não tinham helicópteros blindados ou veículos blindados.
Lembrar que tinham alguns drones comerciais para “lançar explosivos” contra a polícia, a fim de defender suposta equiparação de força com o Estado, é argumentação ridícula ou canalha. “Traficantes” descamisados não são “guerrilheiros”, nem mercenários do tipo dos que lutam na Ucrânia.
As armas sofisticadas que os membros do CV manejam chegaram à Penha e ao Alemão pelos caminhos do tráfico internacional de armas, do desvio de armamento dos arsenais públicos e pela intermediação de pessoas mais ou menos ligadas às forças de segurança do Estado. Esses fuzis e explosivos estão no morro porque fazem parte de uma grande indústria da morte que não tem origem em um laboratório escondido na selva (como a cocaína), mas em grandes indústrias de armas no Brasil e, principalmente, na Europa, nos EUA e em Israel.
O que acontece no Rio de Janeiro, portanto, não é uma guerra, não é guerrilha, não é “conflito interno”, é “segurança pública” na luta de classes. É uma “guerra de classe” voltada à contenção da miséria e à reprodução de riqueza em meio aos ilegalismos, com a ativa participação de agentes do Estado e interesses de mercado.
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Segurança Pública exige integração, participação social e tecnologia
Por isso, a repressão militarizada não “funciona” para vencer o crime organizado. Ela não é pensada e praticada para tal. A política de segurança pública serve à continuidade das violências porque:
(1) é preciso gerenciar a existência das massas miseráveis e excluídas, dando “ocupação” a elas 一 como traficantes, olheiros, vapores e outras atividades que as “contêm” nos limites das favelas 一, tornando-as passíveis de prisão 一 a contenção temporária 一 ou eliminando-as de vez 一 a contenção definitiva da morte;
(2) a existência e o crescimento das economias ilegais é um grande negócio que interessa não apenas ao agente corrupto do Estado, mas ao mercado financeiro, às indústrias de armas e de equipamentos de segurança, às empresas de segurança privada, às seguradoras, à indústria da construção civil (que oferece muros, prisões, condomínios de luxo) entre tantos beneficiários que vivem muito distantes da zona norte do Rio.
Às armadas, camaradas!
Agora, se a questão é debilitar de fato o crime organizado, sabemos que os alvos estão na Faria Lima, nas assembleias estaduais, no Congresso Nacional, e não nas favelas e nas periferias. Operações como as Quasar e Tank (da Polícia Federal) e Carbono Oculto (do MP paulista), lançadas contra o PCC e concluídas em agosto de 2025, comprovaram o que toneladas de textos e ensaios críticos estão há anos repetindo: o coração do crime organizado não bate em corpos negros e favelados, aqueles corações que são parados violentamente pelas balas da polícia.
O diagnóstico crítico, portanto, está feito. Ele é fundamental, mas não basta. É preciso levar a sério a famosa 11ª Tese sobre Feuerbach, escrita por Karl Marx, em 1845:
“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, a questão, porém, é transformá-lo.”
Nós, críticos das políticas de segurança pública do campo da esquerda, temos o dever ético-político de ir além da crítica. É preciso romper com a negligência histórica com que as esquerdas têm lidado com o tema da segurança pública. Não é possível continuar defendendo o slogan de que “com justiça social, a questão da segurança pública será superada”. Idealmente, sim, mas e até lá?
Os mais de 130 mortos da Operação Contenção não verão a chegada do socialismo, assim como as suas mães, parentes e amigos que choram os seus corpos. É preciso dar respostas imediatas e, ainda assim, consistentes com os princípios e valores da democracia e dos direitos humanos, com sensibilidade à urgente compensação histórica ao racismo estrutural, à violência de gênero e à intolerância religiosa.
Em suma, enquanto as mudanças estruturais são duramente construídas, a esquerda precisa disputar e ganhar da (ultra)direita o monopólio para tratar do problema da segurança pública. Isso somente acontecerá com políticas eficientes e eficazes, entendendo por isso a conquista de melhorias reais, tangíveis e concretas para a imensa maioria da população brasileira — pobre, racializada, batalhadora, favelada e periférica — que é quem mais sofre os efeitos da violência comum, da organizada e das políticas repressivas do Estado.
Nosso compromisso ético e político, como pessoas de esquerda, é para com essa população.
Então, para ser coerente, concluo apresentando algumas propostas que venho elaborando, debatendo e defendendo desde uma perspectiva de esquerda, pragmática, não utópica e de intervenção política imediata:
- Reforma constitucional que estabeleça uma Política Nacional de Segurança Pública comprometida com os princípios do Estado Democrático de Direito e que reequilibre as competências entre estados e União no enfrentamento do crime organizado, entendendo que ele não se trata de um fenômeno isolado ou restrito às fronteiras dos estados. A coordenação desta Política ficaria com o Ministério da Justiça e da Segurança Pública que, em Brasília, conduziria um organismo permanente (Conselho Nacional de Segurança Pública) com representantes das secretarias de segurança pública, do ministério público federal e dos estados, do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), do Ministério da Defesa, da Receita Federal, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da OAB e de organizações da sociedade civil (eleitas por mandatos fixos a partir de convocatórias nacionais);
- Reforma imediata do sistema de justiça penal e do sistema penitenciário dos estados com o objetivo de desencarcerar os condenados por crimes de baixa periculosidade, encaminhando-os para regimes de penas alternativas e, com isso, enfraquecendo o poder das facções dentro dos presídios. Regime especial de reclusão de segurança máxima para líderes do crime organizado, incluindo os criminosos de colarinho branco, milicianos e políticos condenados por envolvimento com crime organizado;
- Reforma das polícias estaduais a fim de criar polícias unificadas de ciclo completo (que investiguem, executem mandados e patrulhem ostensivamente), bem equipadas, bem remuneradas, bem preparadas, com amparo psicossocial e doutrina desmilitarizada. Criação de incentivos (promoções, prêmios) para práticas policiais afinadas aos direitos humanos e à segurança cidadã. Criação de novos corpos especializados em operações especiais, capacitados, treinados e equipados para utilização pontual em cenários de enfrentamento armado.
- Imediata extensão do julgamento do STF sobre usuários de maconha (Recurso Extraordinário/RE 635659) para as demais drogas ilegais, a fim de definir com precisão a quantidade de drogas que caracteriza usuários e traficantes, impactando no superencarceramento de jovens negros e periféricos condenados por tráfico de drogas a partir de flagrantes com pequenas quantidades de drogas.
- Criação de uma Política Nacional de Desarmamento coordenada pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública com o objetivo de: (a) reforçar o desmantelamento de redes internacionais e nacionais de tráfico de armas; (b) ampliar as operações de apreensão e destruição de armas ilegais; (c) promover recadastramento global dos clubes de tiro, limitando seu número e aumento a fiscalização; (d) recadastro nacional de colecionadores, atiradores e colecionadores de armas;
- Programa Nacional de Cidadania e Reinserção para condenados e/ou voluntários envolvidos com o crime organizado, com coordenação do Conselho Nacional de Segurança Pública do MJSP e parcerias com a sociedade civil, universidades públicas e privadas, fundações privadas, Sistema S, empresas do setor varejista, pequenas empresas, indústria e agroindústria que receberiam incentivos fiscais para promover cursos de capacitação profissional e contratação de ex-detentos e ex-membros de facções criminosas.
- Cooperação internacional institucionalizada a partir do modelo do Centro de Cooperação Policial inaugurado em Manaus setembro de 2025 que, sob a coordenação da PF, reúne adidos/representantes dos sistemas de segurança pública de todos os países da Pan-Amazônia com o objetivo de concentrar, analisar e compartilhar dados, inteligência e planejamento operacional em ações contra o crime organizado na região. Formação de um centro análogo para o arco Sul-Sudoeste com sede em Foz do Iguaçu.
Thiago Rodrigues é cientista político, professor associado no Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador no Niep-Marx/UFF, GENI/UFF, no PsicoCult/UFF e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.