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    China

    O segredo tecnológico da China e o que o Brasil precisa para chegar lá

    O caso brasileiro passa por uma guerra cultural de caráter anti-neoliberal: teto de gastos, arcabouço fiscal e maiores taxas de juros do mundo não são atraentes para o tipo de investimento público e privado capaz de gerar inovação tecnológica

    POR: Elias Jabbour

    12 min de leitura

    Presidente Lula testa equipamento de realidade virtual durante visita ao Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Huawei, em Xangai, China. Acompanharam o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, e a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos. (13/04/23)
Foto: Ricardo Stuckert/PR
    Presidente Lula testa equipamento de realidade virtual durante visita ao Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Huawei, em Xangai, China. Acompanharam o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, e a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos. (13/04/23) Foto: Ricardo Stuckert/PR

    A China dos últimos 30 anos transformou-se de um país que exportava produtos de baixo valor agregado, como gravatas e ursinhos de pelúcia, para uma potência que lidera debates sobre inetligência artificial, 5G e trens de alta velocidade.

    Essa ascensão demonstra que a China alcançou os mais altos degraus da cadeia de valor e vive um constante “momento Sputnik” — aquele momento em que a União Soviética, ao lançar o primeiro ser vivo no espaço, depois o primeiro ser humano, assusta o mundo ao demonstrar que ela estava mais avançada que os Estados Unidos do ponto de vista da da ciência, tecnologia e inovação.

    Ao longo dos últimos anos, principalmente no pós-pandemia, a China tem vivido uma série de momentos Sputnik, sendo o mais recente com o Deepseek, uma startup que conseguiu quebrar a Nvidia por três dias, conseguiu colocar de joelhos uma grande big tech do Atlântico Norte.

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    O que nos interessa, contudo, é o processo pelo qual a China se tornou uma grande potência em ciência, tecnologia e inovação, sendo hoje o país que mais forma engenheiros e registra patentes no mundo, uma China completamente diferente daquela da Revolução de 1949, quando tinha 90% de analfabetos. O ponto fundamental é entender como a China se constitui em uma grande uma grande potência tecnológica e fazer algumas reflexões sobre o Brasil, onde essa discussão ainda é muito lúdica, focada em bolsas e orçamentos ministeriais, sem a dimensão real do que é esse processo.

    Ciência e tecnologia devem ser vistos como um sistema, formado por grandes empresas, um gigantesco sistema financeiro, universidades e centros de pesquisa, todos coordenados entre si, para formar um Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia (SNIT).

    Os bancos financiam o investimento e esse investimento se realiza nas empresas, tendo a universidade como um ponto de apoio fundamental dentro desse ecossistema. A questão da inovação tecnológica é, em sua essência, puramente financeira, exigindo que se invista muito dinheiro, visto que a chance de sucesso de inovações é de apenas 0,7% a cada dez tentativas. No caso aqui do Brasil, esse nível de investimento não combina com teto de gastos, com arcabouço fiscal e com as maiores taxas de juros no mundo.

    Sistema empresarial

    Na China, o ponto zero na construção do SNIT é a formação de um grande sistema empresarial, com a reforma, a partir da década de 1990, do sistema empresarial altamente verticalizado baseado no modelo da União Soviética.

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    Quando a China decide entrar no mundo capitalista, ela passa por um processo gigantesco de corporatização de empresas estatais orientadas à competição, que resultou em um núcleo de 199 conglomerados empresariais estatais em 1994, sendo que hoje esse núcleo é formado por 96 conglomerados. Esse grande sistema empresarial público é o insumo básico de inovação tecnológica. Em contraste, o Brasil tem apenas quatro grandes conglomerados (incluindo Petrobras e Eletrobras), um número insuficiente para gerar inovação. Esse é um ponto fundamental, sem um grande sistema empresarial público ou privado – no caso da China é público -, não existe um insumo básico de inovação tecnológica que é o local onde ela acontece: dentro das empresas.

    Sistema de intermediação financeira

    O segundo ponto fundamental quando se fala em inovação tecnológica é a formação do sistema de intermediação financeira, um ecossistema formado por grandes, médios e pequenos bancos públicos, assim como fundos públicos, capazes de carrear recursos para as empresas apostarem em inovação tecnológica

    A partir da década de 1990, a China desenvolveu um sistema financeiro composto por 144 bancos públicos em todos os níveis. Esses bancos são orientados para investimento a longo prazo, o que é possível por praticarem uma taxa de juros abaixo da lucratividade empresarial, o que não acontece no Brasil. Na China , esses bancos criam moeda pública – que é um bem público, como qualquer outro bem de Estado.

    A distinção entre capital estatal e capital privado na China está se tornando uma coisa nebulosa, porque o Estado está avançando cada vez mais sobre o setor privado da economia. O setor nacional da economia chinesa é um ecossistema formado por um capital nacional, tendo como base um sistema financeiro altamente capilarizado.

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    No Brasil, o sistema financeiro, ao contrário, não é orientado à produção de mercadorias, bens e serviços, mas é funcional à especulação. A economia brasileira é altamente financeirizada, o que desvia para o setor financeiro os recursos que poderiam ir para a inovação tecnológica.

    Universidades e centros de pesquisa

    No sistema chinês, as universidades e centros de pesquisa estão amplamente conectados às empresas. As universidades diretamente ligadas às ciências exatas, por exemplo, têm que estar amplamente conectadas ao processo de produção, um setor alimentando o outro, até que isso forma um todo sistêmico, que se configura no Sistema Nacional de Inovação Tecnológica.

    As universidades chinesas são amplamente orientadas a formar engenheiros, figuras centrais nesse processo, por serem capazes de desenhar as máquinas que produzem máquinas.

    A importância estratégica desses profissionais é tão grande que metade do Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh) é composta por engenheiros ligados, direta ou indiretamente, às indústrias de inteligência artificial, big techs e infraestrutura de semicondutores, espelhando os desafios estratégicos do país.

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    É importante observar que esse sistema de inovação tecnológica na China é completamente orientado pela política do PCCh. Nada é feito na base da “mão invisível” ou do setor privado.

    Ponto de virada

    O ponto de virada (turning point) no processo chinês acontece com o 11º plano quinquenal (2006 a 2010) que tem como objetivo a construção de um Sistema Nacional de Inovação Tecnológica. Em 2006, a China alcançou todos os estágios relacionados à Segunda Revolução Industrial, ou seja, ela constituiu uma indústria mecânica pesada moderna. O salto de qualidade foi utilizar essa indústria para construir máquinas. É justamente esse salto que os países da periferia têm muita dificuldade em dar.

    Eu não acredito nessa história de que existem países que caíram na armadilha da renda média,o que existe é a armadilha da financeirização. Brasil, México, Argentina e outros países que estavam em um processo de catching up (tentativa da diminuição do hiato tecnológico) em relação aos países capitalistas centrais, caíram na armadilha da financeirização da sua economia. A China não caiu nessa armadilha, decidiu dar um salto de qualidade.

    Marcas chinesas

    A partir de 2006, além do lançamento do SNIT, a China passou a constituir marcas próprias. Eu me lembro quando visitei a China pela primeira vez em 2004, eu pegava táxi e os carros eram de marcas como Volkswagen, Ford, etc. Eram carros importados, porque a China não tinha marcas próprias de carros, assim como de quase nenhum produto. O país vivia o desafio de virar uma maquiladora, como o México, ou fazer uma política global de ir para fora com suas próprias marcas. Nesse momento surgem os carros chineses, as máquinas fotográficas e uma série de outros produtos, por meio de uma política aberta e agressiva de indigenização, ou seja, da internalização das cadeias produtivas e da formação de marcas próprias.

    A China inaugurou uma política de marcas próprias em 2006 e 20 anos depois tem cerca de 86 marcas de carros diferentes, a maioria delas estatal. Em 2010, quando terminei meu doutorado, a discussão era se a China iria comprar o escritório da Siemens por 30 milhões de dólares. Hoje a discussão é outra, envolve investimentos na casa dos trilhões de dólares para superar os americanos em inteligência artificial e chips avançados.

    Um ponto fundamental nessa discussão é que esse ecossistema criou inovações tecnológicas disruptivas que são muito funcionais à planificação econômica. A partir da utilização dessas ferramentas, a China consegue otimizar o processo de planejamento da sua economia, inaugurando uma outra forma histórica que é o projetamento,  altamente funcional para o combate à pobreza. O monitoramento de famílias que entram e saem da linha da pobreza na China é feito por inteligência artificial, just in time. Quando eles percebem alguma família volta para a pobreza, uma equipe é mobilizada para ir até essa família e entender o que aconteceu, de forma muito rápida, apesar de ser um país com mais de 1,4 bilhões de habitantes. O Sistema Nacional de Inovação Tecnológica tem sido de muita serventia para o salto de qualidade que a China está dando em nível social.

    Robotização

    Em 2015, a China lançou o plano Made In China 2025, que seria o esforço final para alcançar a sua soberania tecnológica. Estamos em 2025 e a China alcançou todos os objetivos desse plano. Em 2015, a China tinha muito menos robôs que a Alemanha, e hoje os americanos estão assustados com o nível de robotização da economia chinesa. Isso gera desemprego? No capitalismo pode vir a gerar. No socialismo, acaba virando oportunidade, porque existe um planejamento desse processo.

    Outro salto que a China deu na corrida tecnológica envolve o cerco tecnológico que os americanos estão impondo a eles, a tentativa de fazer com que a China não alcance a autonomia do setor de semicondutores, por exemplo. Mas o efeito foi inverso, porque a China criou todas as condições políticas, institucionais, financeiras e produtivas para enfrentar um ambiente adverso . Isso foi muito funcional do ponto de vista político para a unificação do povo chinês em torno de certos objetivos, como a soberania tecnológica.

    Lições para o Brasil

    O que fica de lição para o Brasil? Falo como uma pessoa que já morou na China e estuda esse sistema há 30 anos. O nível do debate no Brasil sobre sistemas de inovação tecnológica está muito baixo, não existe a dimensão real do que seja isso: a dimensão financeira, empresarial e macroeconômica.

    Para que o Brasil possa enfrentar os desafios da inovação tecnológica, é necessário um choque cultural de caráter anti-neoliberal. Não dá para discutir ciência, tecnologia, inovação, supercomputador, inteligência artificial, data center, tendo essa taxa de câmbio volátil, as maiores taxas de juros do mundo, conta de capital aberto, marcos institucionais que não são atraentes para o tipo de investimento público e privado capazes de gerar inovação tecnológica.

    Para discutir ciência e tecnologia, temos que pensar quais são as empresas brasileiras que vão ser as pontas de lança deste processo, qual será a proteção para essas empresas poderem inovar e investir o que for necessário, sem o risco de quebrarem. Quais são os bancos públicos orientados a isso? É preciso um sistema financeiro mais profundo, com bolsas de valores onde as empresas possam se financiar, para financiar a nossa tecnologia.

    O caso brasileiro passa por uma guerra cultural de caráter anti-neoliberal. Não é possível discutir ciência, tecnologia e inovação nos marcos que nós discutimos hoje. Não dá para comparar com a China, o nível de discussão é outro, o mindset é outro.

    Sem uma reorganização, a distância tecnológica entre o Brasil e a China apenas aumentará, e o país corre o risco de se condenar a ser uma grande expressão geográfica e um exportador de produtos primários (soja, minério de ferro e petróleo). A discussão sobre inovação deve, portanto, estar ligada à reindustrialização do Brasil.

    Assista à íntegra do pograma Meia Noite em Pequim

    Elias Jabbour é professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ, foi consultor-sênior do Novo Banco de Desenvolvimento (Banco dos BRICS) e é presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos. É autor, pela Boitempo, com Alberto Gabriele de “China: o socialismo do século XXI”. Vencedor do Special Book Award of China 2022.

    *Análise publicada originalmente no programa Meia Noite em Pequim (TV Grabois) em 29/10/2025. O texto é uma adaptação feita pela Redação com suporte de IA, a partir do conteúdo do vídeo. 

    **Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.