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    Economia

    Violência nas favelas e o papel do capital na economia do crime

    A matança no Complexo da Penha expõe a engrenagem de um sistema em que a violência e o abandono sustentam o capitalismo periférico brasileiro.

    POR: Weslley Cantelmo

    12 min de leitura

    Moradores levam dezenas de corpos para a Praça São Lucas, no Complexo da Penha, Rio de Janeiro (RJ), após a Operação Contenção. A ação policial foi a mais letal da história da cidade, deixando mais de cem mortos, em 29/10/2025. Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil
    Moradores levam dezenas de corpos para a Praça São Lucas, no Complexo da Penha, Rio de Janeiro (RJ), após a Operação Contenção. A ação policial foi a mais letal da história da cidade, deixando mais de cem mortos, em 29/10/2025. Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil

    Economia política da matança

    Como em qualquer outra pessoa, bateu em mim aquela onda de perplexidade, diante do espetáculo macabro que foi a matança do Rio de Janeiro. Por que tem que ser assim? Procurei não emitir opinião a quente, sabedor de minha ignorância relativa acerca das nuances que preenchem a realidade do chamado problema da segurança pública brasileira.

    Claro, não vou dar uma de “isentão” e deixo claro, já aqui no início, que é óbvio que essas operações são ineficazes, quando se tem em mente qualquer objetivo que seja o avanço na “resolução” do problema “segurança”. Aliás, o ponto de reflexão deste texto é justamente esse. Mas não queria fazer isso sem ao menos confirmar com dados algumas percepções gerais. Além disso, como um plus, quero trazer outro elemento, que vai além da “questão da segurança”, que é uma das características centrais do capitalismo brasileiro: na verdade um dueto antigo, que une capital mercantil e produção/ocupação de território.

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    Quando se trata de segurança pública, nos posicionamentos à esquerda temos dois pontos que são letras comuns:

    i) não se resolve o “problema da segurança” sem resolver os problemas sociais do país, que, por sua vez, devem ser resolvidos a partir de um projeto de desenvolvimento;

    ii) no plano operacional e de curto prazo, o combate ao crime organizado deve ser feito com inteligência, de modo a sufocar as cadeias lógicas, logísticas e de realização financeira do crime organizado.

    No quadro de avanço neoliberal e acuação da esquerda, a partir da ascensão contemporânea da extrema direita, o segundo ponto tem sido mais propalado. O recado aqui, opinativo, é de que não se deve sucumbir ao inovacionismo, vazio de conteúdo, e abandonar, discursiva e praticamente, a convicção de que o primeiro ponto – resolução estrutural dos problemas sociais – é essencial.

    Também não se deve tirar da mente que o “problema da segurança” é consequência antes de causa, apesar de contemporaneamente fazer parte de uma engrenagem de retroalimentação, na qual as condições materiais de pobreza ampla criam as condições de abastecimento do crime organizado, com o abastecimento de força de trabalho barata. O que, por outro lado, é intensificado pelo próprio crime organizado, por uma série de fatores, que vão desde a criação e reforço de um imaginário social de isolamento dos territórios de favela à fatores práticos que impedem os jovens favelados de terem acesso amplo a outras formas de produção de riqueza. Esse é um assunto complexo, de história (já) longa, e está relacionado ao lugar do negro na modernidade brasileira, ao processo de urbanização e inserção do povo brasileiro enquanto força de trabalho para o capital nacional, que nunca chegou a abandonar a sua condição de periférico. Nem de perto irei detalhar ou mesmo abordar todas essas nuances, mas tangenciarei – digamos, para começar a conversa – um aspecto que considero crucial dessa dinâmica de formação de periferias dentro da periferia, que é a união do capital mercantil com uma lógica muito específica de produção de territórios feitos para terem as riquezas extraídas. Dentre essas formas de riquezas, uma delas é a própria vida humana.

    O crime como engrenagem do capitalismo brasileiro

    Viatura da Polícia Federal em frente a um prédio na Avenida Faria Lima, em São Paulo, durante a Operação Quasar, deflagrada em 28 de agosto de 2025. A ação, voltada ao combate à atuação do crime organizado na cadeia produtiva de combustíveis, visa desarticular uma organização ligada ao PCC, especializada em lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta de instituições financeiras e falsificação de combustíveis. As duas operações, embora distintas, têm em comum o objetivo de enfraquecer esquemas de lavagem de recursos ilícitos, com grande impacto financeiro e envolvimento de organizações criminosas. Foto: Polícia Federal / Divulgação

    Viatura da Polícia Federal em frente a um prédio na Avenida Faria Lima, em São Paulo (SP), durante a Operação Quasar contra uma organização ligada ao PCC. A ação mirou o crime organizado na cadeia produtiva de combustíveis. O grupo atuava em lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta de instituições financeiras e falsificação de combustíveis. 28/08/2025. Foto: Polícia Federal / Divulgação

    A questão é que, na economia brasileira, há um antigo núcleo de operação e articulação do capital mercantil, especializado em criar zonas de extração e dragagem de riquezas para abastecimento de mercados globais. Foi assim com os ciclos econômicos do açúcar, do ouro, das drogas do sertão, da borracha, do cacau, do café, da mineração contemporânea (após a década de 1990), da soja. Também ocorre de maneira similar com os chamados produtos ilícitos – armas, drogas, pessoas, órgãos, madeira, minerais com extração não declarada, combustíveis, cigarro, celulares (roubados), animais e vegetais selvagens (ou protegidos), moléculas e material genético (biopirataria), imóveis, moeda e por aí vai.

    A verdade é que as chamadas organizações criminosas são parte da expressão contemporânea – sobretudo no Brasil pós-reforma neoliberal do Estado – do capitalismo mercantil periférico, especializado na construção da logística necessária para o escoamento e abastecimento de mercados variados em todo o mundo e no próprio Brasil.  Tanto que o são, que, enquanto as pessoas em geral acreditam que essas organizações dependem do tráfico de drogas ilícitas (maconha, cocaína, etc.) para sobreviverem, estimativas de entidades como o Fórum Nacional de Segurança Pública demonstram que tais organizações possuem atuação diversificada e complexa, com participação no mercado de produtos lícitos, onde alinham a lavagem de dinheiro recebido com produtos ilícitos a fraudes em produtos lícitos (combustíveis adulterados, por exemplo) e a receitas oriundas de investimentos financeiros.

    Essas organizações criminosas são, na verdade, grandes corporações verticalizadas, altamente organizadas, especializadas em soluções logísticas de circulação eficiente (a baixo custo) de produtos das mais diferentes naturezas, em conexões para exportações e importações junto a todos os continentes do planeta. Estima-se, inclusive, que atualmente a maior parte do faturamento é oriundo das operações “lícitas” – entre aspas, porque tal faturamento é parte dos mecanismos de lavagem de dinheiro. Trata-se de um mercado que pode chegar a aproximadamente R$ 350 bilhões, mais do que uma vez e meia o orçamento da educação em todo o país ou 1,2 vezes maior que o faturamento do setor brasileiro de mineração em 2024. Desses R$ 350 bilhões, cerca de R$ 147 bilhões são de participações em mercados lícitos, o que corresponde a mais de 40%, segundo o relatório Follow the Products do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

    Favela: fonte de trabalho e entreposto da exclusão

    O que são as favelas, nesse caso? Elas cumprem dois papéis importantes, nem sempre simultaneamente. O primeiro, e principal, é de ser fonte de mão de obra barata, descartável e de fácil reposição. Mão de obra que é utilizada do chão de operações à gerência de unidade, não mais do que isso. São pessoas que, no processo de cooptação ou subsunção, geralmente muito jovens, são altamente doutrinadas na linguagem do ódio e violência, que têm como combustível as frustrações, o medo, o desejo de consumo, a falta de horizontes de vida e a própria naturalização da violência enquanto gramática do convívio social. Insumo perfeito para uma empresa capitalista.

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    Na linguagem marxista, um perfeito exército industrial de reserva. Na linguagem neoliberal, um perfeito regime flexível, sem Estado para gerar peso morto, sem amarras regulatórias em momentos indesejados, sem sindicatos. Não me estranharia se, de maneira planejada, coubesse ao Estado, sob influência direta ou indireta dessas corporações, exercer uma prática regulatória, com algumas chacinas para controlar eventuais distúrbios no pleno funcionamento dessa máquina capitalista. Sobre isso, não tenho maiores elementos materiais para análise.

    O segundo papel, ao que parece, é o de entreposto logístico, para os mercados em que se faz sentido ter um entreposto, sobretudo para abastecimento das cidades brasileiras com produtos ilícitos. O importante é que nenhum produto operado por essas corporações é produzido na favela. Eventualmente, passam por lá ou têm nela parte de seu destino, sobretudo aqueles, como armas, que são utilizadas nas operações logísticas da corporação. Para chegar a essas conclusões, basta que se consulte informações públicas.

    Esses espaços, onde ocorrem as matanças, têm outra característica, que é o abandono. A favela é feita para ser odiada, desde os seus estertores. Foram territórios construídos a partir dos perseguidos, excluídos e explorados pela economia que transitou do modelo escravista para o capitalista primário-exportador, sempre mediada pelo capital mercantil, incumbido de fazer os produtos chegarem lá e cá e sempre levando boas vantagens.

    O capital mercantil sempre teve um papel central no processo de acumulação no Brasil, ganhando muito na ida, com o subdesenvolvimento e a especialização produtiva em bens básicos que teriam como destino o exterior e, também, na volta, abastecendo o mercado brasileiro com os artigos mais avançados, produzidos no centro do mundo capitalista. Tanto que passou a exercer o papel de financiador desses fluxos, como parte do insurgente capital financeiro brasileiro, que conserva as características conservadoras de tempos outros e que, não sem motivo, está embreado nas operações também das organizações criminosas.

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    Nessa saga de constituição do capitalismo brasileiro, a formação de espaços de inserção precária não surge com a economia do crime organizado. Ainda no período colonial, foi assim com os aldeamentos indígenas. Foi assim com os regimes de escravização por dívida, que caracterizaram o colonato na grande empresa do café do século XIX. Foi assim com os aviamentos na economia da borracha, do início do século XX até os dias de hoje. Continua sendo assim em boa parte do campo brasileiro. Foi assim, com as próprias favelas no processo de surgimento da economia urbano-industrial. Por que não seria assim com as atividades econômicas que nada mais são que uma evolução de toda essa tradição?

    A economia do crime organizado é parte da economia brasileira, que produz condições de miséria e exploração. Se existe consenso sobre isso, deve também existir de que não vai ser com operações de matança que se vai avançar. Do contrário, podemos fingir que não e andar em círculos procurando maneiras de resolver o “problema da segurança”.

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    Por fim, é uma desgraça ser morador de um território ocupado e gerido por grandes corporações capitalistas do crime. Logo, não surpreende que os moradores de favela aprovem tal medida. A materialidade alimenta uma esperança, ainda que sabidamente falsa – no fundo, como as próprias pesquisas apontam, o morador desses territórios sabe que não resolve. Em um cenário sério de resolução da condição degradante dos territórios de favela, o mais provável é que seja necessária uma combinação que envolve o redesenho desses espaços, com a forte presença de equipamentos públicos promotores de cidadania, requalificação infraestrutural, reestruturação econômica (que deveria acontecer com a implantação de plantas produtivas avançadas atreladas à política industrial e tecnológica) e, eventualmente, (pressupondo a resistência dos capitalistas brasileiros que ganham com o crime) alguma forma de ocupação pelo uso da força. Qualquer coisa diferente de pelo menos isso, ou se trata de demagogia eleitoreira de uma extrema direita que mobiliza os medos (no melhor dos casos) ou uma cooperação regulatória do Estado com o crime por meios obscuros, conforme aludi. Infelizmente, esse projeto de transformação não está no horizonte do Brasil. Pelo menos enquanto o Estado brasileiro estiver sequestrado e controlado sob a lógica neoliberal, para atender justamente aos interesses das frações do capital-dragagem, que envolve também as corporações do crime.

    Precisamos, todos, é de um novo projeto de desenvolvimento, com planejamento, ousadia e investimento de Estado. Claro, não vai cair do céu e nem ser trazido por um libertador. Como diriam os jovens da periferia de onde vim: o projeto “é nois”.

    Weslley Cantelmo é doutor em Economia (UFMG) e pesquisador do Projeto Brumadinho/UFMG. Foi superintendente de Políticas de Desenvolvimento Urbano e Regional de Minas Gerais e gestor no processo de reparação dos danos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG). Na acadêmica, investiga a produção territorial brasileira, desenvolvendo conceitos como a “subsunção manchada”, voltada à análise da relação dos povos indígenas com o capitalismo nacional.

    *Este é um artigo de opinião. As ideias expressas pelo autor não necessariamente refletem a linha editorial da Fundação Maurício Grabois.