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    Comunicação

    Bilionários das Big Techs evidenciam farsa da meritocracia e do mito da garagem

    Saiba como Bill Gates, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg, vendidos como histórias de superação, construíram fortunas com heranças, dinheiro público e exploração coletiva

    POR: Ergon Cugler

    8 min de leitura

    Garagem da casa da família de Jeff Bezos foi a primeira sede da Amazon, fundada em 1994, em Bellevue (Washington). O “risco” que virou mito da meritocracia foi amparado por cerca de US$ 250 mil investidos pelos próprios pais. A casa foi listada para venda em 2024 e fotografada durante um open house. Crédito: SounderBruce – CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons
    Garagem da casa da família de Jeff Bezos foi a primeira sede da Amazon, fundada em 1994, em Bellevue (Washington). O “risco” que virou mito da meritocracia foi amparado por cerca de US$ 250 mil investidos pelos próprios pais. A casa foi listada para venda em 2024 e fotografada durante um open house. Crédito: SounderBruce – CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

    Poucos mitos foram tão eficazes em mascarar o poder quanto o da garagem. Repetido à exaustão em livros de autoajuda, palestras motivacionais e filmes sobre “empreendedores visionários”, o enredo é sempre o mesmo: jovens geniais, sem recursos, desafiando o mundo com uma ideia revolucionária. Mas basta levantar o portão dessa suposta garagem para ver o que ela realmente esconde: capital herdado, conexões políticas, financiamento público e exploração coletiva apropriada como se fosse talento individual.

    Em 1975, Bill Gates não estava em uma garagem precária, mas em um ambiente de classe média alta, estudando em Harvard e com acesso privilegiado a alguns dos raros computadores disponíveis na época. Filho de um advogado corporativo influente e de uma dirigente de grandes instituições financeiras e filantrópicas, Gates não “começou do zero”. Desde cedo, sua “genialidade” nos negócios consistiu menos em criar do nada e mais em se apropriar e revender o que outros haviam construído. Em vez de desenvolver um sistema operacional próprio, a Microsoft comprou da pequena Seattle Computer Products o 86-DOS (também chamado QDOS) por cerca de 50 mil dólares, e o repassou à IBM como base do MS-DOS/PC-DOS, obtendo uma margem de lucro monumental e alavancando os negócios com base em apropriação de trabalho.

    Leia também: Bilionários da Forbes 2025 — uma radiografia da regressão brasileira

    Steve Jobs e Steve Wozniak, ícones da Apple, também não nasceram de um lampejo criativo isolado. Antes da fundação da empresa, projetaram e venderam blue boxes, dispositivos ilegais que exploravam falhas do sistema público de telefonia para burlar a tarifação e fazer ligações interurbanas gratuitas. A gênese da Apple, portanto, não foi um ato de genialidade solitária, mas o aproveitamento de brechas de uma infraestrutura de comunicação construída com investimento público e tarifas pagas por milhões de usuários; foi revendendo esse acesso clandestino a um bem coletivo que a dupla testou seu modelo de negócio, acumulou parte do capital inicial e começou a ser tratada como “gênios” da tecnologia.

    Diversos “gênios de garagem” vendidos como histórias de superação individual, na prática, nunca começaram do zero: Jeff Bezos, da Amazon, tornou-se símbolo de autonomia e meritocracia ao largar o emprego para “arriscar” tudo em uma garagem, mas na verdade não arriscou muita coisa pessoal, pois recebeu uma bolada de quase 250 mil dólares investidos pelos próprios pais, que tinham recursos para subsidiar o filho.

    Larry Page e Sergey Brin, criadores do Google, desenvolveram o buscador como parte de um projeto acadêmico na Universidade de Stanford, apoiado por recursos públicos de pesquisa de agências como a National Science Foundation e a DARPA; o que hoje é uma das empresas mais valiosas do planeta nasceu dentro de um laboratório financiado pelo contribuinte.

    Já Elon Musk, frequentemente retratado como gênio visionário solitário, é filho de um engenheiro que teve participação em uma mina de esmeraldas durante o apartheid sul-africano, história sobre a qual o próprio Musk e o pai dão versões contraditórias, ao mesmo tempo em que seus impérios em setores como aeroespacial e automotivo cresceram alavancados por contratos bilionários com o Estado norte-americano.

    Mark Zuckerberg em seu dormitório em Harvard, em 2004, após lançar o TheFacebook.com. O retrato do “jovem gênio” consolidou a narrativa de sucesso individual que legitima a desigualdade e a concentração de poder das Big Techs. Crédito: Lowell K. Chow. Imagem de uso editorial sob direitos de The Harvard Crimson.

    Mark Zuckerberg no dormitório em Harvard (2004), após lançar o Facebook. A imagem do jovem programador reforçou o mito da genialidade solitária, mas a ascensão do império digital começou com o hackeamento de fotos de colegas de universidade. O que iniciou com a violação da privacidade de estudantes segue, em escala global, com a exploração massiva de dados pessoais. Crédito: Lowell K. Chow / © The Harvard Crimson. Uso editorial permitido mediante crédito (não é domínio público nem Creative Commons).

    Até o “gênio rebelde” Mark Zuckerberg iniciou sua trajetória hackeando fotos de colegas em Harvard para criar o Facemash, um site que comparava quem era “mais atraente”, violando a privacidade dos estudantes e enfrentando um processo disciplinar dentro da própria universidade.

    Todos se apresentam como filhos da criatividade, mas nasceram do ventre do privilégio e alguns até de práticas ilegais e imorais. A lenda da garagem serve como verniz ideológico: transforma herança em heroísmo e coragem; subsídio público em mérito; apropriação de trabalho alheio em virtude.

    Os herdeiros

    O mito da garagem não é apenas uma mentira empresarial; é um mecanismo de dominação ideológica. Ele naturaliza a desigualdade e disfarça a exploração estrutural. Ao idolatrar bilionários como se fossem trabalhadores excepcionais, o capitalismo digital reescreve as categorias de classe: o burguês se veste de proletário cognitivo.

    Sabemos que o que define uma classe não é o talento, mas o controle dos meios de produção. E no século XXI, esses meios passam também pelas gigantes de tecnologia. As Big Techs não produzem valor pelo gênio de seus fundadores, mas pela captura de dados, trabalho imaterial e infraestrutura pública. O lucro vem do trabalho coletivo de milhões de programadores, pesquisadores e usuários que, sem perceber, alimentam os algoritmos e os cofres da nova burguesia tecnológica.

    A ideologia dominante continua sendo a ideologia da classe dominante. Se antes o operário acreditava que bastava esforço físico para ascender, hoje o jovem acredita que bastam um notebook, uma boa ideia e abrir uma startup na garagem. A diferença é que, agora, o capital explora também a esperança. E a esperança, quando mercantilizada, se torna instrumento de alienação.

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    Capital-informação: Poder e desigualdade no capitalismo digital em 25 tese
    Plataformas Digitais: Trabalho, negócios e alternativas para uma economia digital justa

    Essa narrativa é útil para perpetuar o poder. Enquanto o sistema educa o trabalhador a admirar bilionários como exemplos de esforço, o Estado é capturado para financiar e resgatar essas mesmas empresas. Quando o lucro é alto, a glória é do mercado; quando o risco aumenta, a conta vai para o público.

    Quando o mercado pede socorro

    O presidente dos EUA, Donald Trump, e o CEO da OpenAI, Sam Altman, durante o anúncio do projeto Stargate — parceria entre SoftBank, OpenAI e Oracle, com investimento estimado em US$ 500 bilhões para construção de centros de dados de IA nos Estados Unidos. Casa Branca, 21/01/2025. Crédito: Reprodução / The White House

    A recente aproximação da OpenAI com Donald Trump escancara o cinismo da elite virtual. A mesma empresa que lucrou vendendo a utopia da autonomia artificial agora pede socorro político ao Estado que dizia desprezar. O Vale do Silício, que se apresenta como o santuário da meritocracia, mostra sua face mais antiga: a dependência do Estado.

    Leia também: Trump promove guerra híbrida contra o Brasil para atingir Brics

    Esse episódio não é exceção, é regra. As Big Techs sempre viveram de recursos públicos, seja via universidades, subsídios fiscais, contratos de defesa ou isenções bilionárias. Elas demonizam o Estado, mas sobrevivem dele. A lenda da garagem é, portanto, o mito fundador de um capitalismo contemporâneo que mente sobre sua própria origem para continuar acumulando sob o disfarce de uma suposta genialidade.

    A cada nova rodada de crises, fusões e resgates, fica mais evidente que o verdadeiro motor da tecnologia não está nas garagens da Califórnia, mas nas universidades públicas, nos impostos pagos por trabalhadores e na infraestrutura coletiva que o capital insiste em privatizar.

    No fim, a pergunta que fica é simples e urgente: ainda acreditamos que alguém enriquece por mérito em um mundo de códigos apropriados e privatizados?

    Ergon Cugler de Moraes Silva é Conselheiro da Presidência da República no Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS), o Conselhão do Governo Federal. Graduado e pós-graduado pela USP, mestre em administração pública e governo pela FGV e cientista de dados pós-graduado pela Universitat de Barcelona. Pesquisador CNPq do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas (DesinfoPop/FGV). Autor do livro “IA-Cracia: Como enfrentar a ditadura das Big Techs” (Kotter Editorial, 2024), integra também o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.

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