A ideia de esquerda é um conceito em disputa. Se, em sua origem, a esquerda se pautava por ideais universais de luta de classes e justiça social, a partir da década de 1960 ramificações desse pensamento se fortaleceram, distanciando-se e relativizando cada vez mais seus princípios fundamentais.
O contexto da Guerra Fria contribuiu para essa pulverização. Embora os soviéticos tenham fortalecido ideias, partidos e governos de esquerda pelo mundo, os Estados Unidos e a Europa Ocidental, por meio de seus movimentos civis e culturais, construíram uma visão alternativa, avessa à experiência soviética, sobre o que é ser de esquerda. E, assim, a ideia foi se desfigurando.
A pauta identitária é expressão de como essas divisões evoluíram para uma crise existencial.
O geógrafo britânico David Harvey, em seu livro A condição pós-moderna, lançado há mais de 30 anos, expõe com clareza os elementos que estão na raiz da fragmentação que tomou conta do pensamento de esquerda.
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Ao abordar a transição do modernismo para o pós-modernismo, Harvey mostra que os fundamentos da chamada pauta identitária — embora ele não use esse termo — se situam no âmbito da pós-modernidade, a partir da década de 1970.
Ele descreve os modernistas como otimistas que depositavam “fé” na inteligência humana, mesmo que tenham sido frustrados pelas contradições do progresso científico e industrial do século XX.
No pós-guerra (1945), o fordismo, com sua organização do trabalho que contava com grande concentração de operários em fábricas e que proporcionou elevação do padrão de vida, alimentou teorias de resistência e de superação do capitalismo. Mas aquele sistema, que parecia “estável e duradouro”, começou a dar sinais de esgotamento a partir de 1973, com as crises do petróleo, a estagnação industrial e o início da era neoliberal.
Harvey identifica o pós-modernismo a partir desse momento e o define pela aceitação do efêmero, do descontínuo e do caótico. Ao contrário do modernismo, entrava-se em uma época em que o pensamento dominante deixava de buscar “a essência imutável em meio à transitoriedade” e de vislumbrar futuros melhores — e passava a chafurdar “nas fragmentárias e caóticas correntes da mudança, como se isso fosse tudo o que existisse”.
Entre os pensadores mais influentes daquele período, Harvey destaca Michel Foucault, que via a União Soviética como um regime repressor que “recorria às mesmas técnicas do modo capitalista que buscava substituir”. O trabalho do filósofo com homossexuais e presos, por exemplo, segundo Harvey, “não pretendia produzir reformas nas práticas estatais, dedicando-se antes ao cultivo e aperfeiçoamento da resistência localizada às instituições, técnicas e discursos da repressão organizada”.
Harvey afirma que “as lutas localizadas do tipo que Foucault parece encorajar” atraíram movimentos sociais surgidos nos anos 1960 — feministas, homossexuais, étnicos, religiosos e autonomistas regionais, entre outros — bem como os desiludidos com as práticas e políticas dos partidos comunistas. No entanto, esses movimentos não tiveram o efeito de desafiar o capitalismo.
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Hoje, esse processo se manifesta como um enfraquecimento da esquerda e de seus propósitos, diluídos no turbilhão de informações que o nosso tempo produz — e que, em vez de enriquecer o debate, o esvazia. Manifesta-se também como uma grande desilusão diante das causas emancipatórias e universais, alimentada por uma subjetividade forjada no individualismo típico da sociedade capitalista.
Ao se dispersar em múltiplas agendas particulares, muitas vezes desconectadas da crítica estrutural ao sistema econômico, a esquerda perde a capacidade de formular um projeto coletivo de transformação social. Não se trata de negar causas e lutas sociais, mas de reinseri-las em um projeto maior de emancipação e justiça.
Diante dos grandes desafios colocados pelo mundo real — empobrecimento, desregulamentação, enfraquecimento das organizações da classe trabalhadora, além das crises ambientais e humanitárias —, torna-se urgente que a esquerda não se deixe levar pela fragmentação pós-moderna e reencontre sua coerência histórica e seu horizonte comum.
Carolina Maria Ruy é jornalista e pesquisadora, coordenadora do Centro de Memória Sindical, editora do Rádio Peão Brasil. Integra o Conselho Consultivo da Fundação Maurício Grabois.
*Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.