A Bipolaridade da COP30 — a urgência de um novo modelo econômico
Eis que cheguei à COP30. A COP do Brasil. A COP da Amazônia. Trinta anos debatendo uma organização sociopolítica internacional que nos mantenha vivos e com qualidade de vida.
A COP30 seria o marco histórico que, há alguns anos, soava como utopia distante. Depois de uma década desde o Acordo de Paris, imaginava-se que este seria o momento de celebrar conquistas, de discutir os avanços concretos nas metas de mitigação — e não de revisitar as mesmas pautas com novas urgências e antigos discursos. Dez anos se passaram e, em vez de consolidar soluções, seguimos tentando entender como adaptar nossas sociedades e economias às consequências do que não foi mitigado.
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Faltando apenas cinco anos para 2030 — o primeiro grande marco simbólico da virada climática —, esperava-se que o debate já estivesse em outro patamar. Que estivéssemos tratando de novas tecnologias em larga escala, de uma economia regenerativa integrada, de um mercado financeiro reformado para recompensar impacto positivo — e não apenas crescimento. Mas a realidade é mais complexa e contraditória. E é nesse contraste que a COP30 se revela profundamente bipolar.
Por um lado, é impossível não se emocionar com a cena: vejo uma Belém tomada por diferentes idiomas, sotaques, cores, credos e ideias. É bonito ver tanta gente reunida, com o coração e a mente voltados para um mesmo propósito — salvar o planeta, cada qual à sua maneira. Há uma energia viva e vibrante nas ruas, uma sensação de pertencimento global e uma esperança renovada no poder do coletivo.
Por outro, basta um passo para fora da bolha dos eventos e painéis para sentir o peso da outra face. A bipolaridade aparece quando percebemos que o mundo, de fato, continua sendo movido por uma lógica que pouco tem a ver com a preservação da vida e muito com a remuneração das ações nas bolsas de valores. As decisões que realmente mudam o curso do planeta ainda não estão nas plenárias da COP, mas nos conselhos de administração das grandes corporações — nas mesas de especulação financeira. E, por mais comprometidos que estejam os ativistas, os pesquisadores e até alguns líderes, o poder real de transformação segue sequestrado por estruturas que se alimentam justamente do modelo que nos trouxe até aqui.
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Este é justamente o ponto onde entram os governos, as regulações e a coragem institucional para enfrentar o mercado. Porque o mercado — por si só — não tem sentimento, não sofre com a desigualdade, não se importa com a regeneração de ecossistemas, com justiça intergeracional, com paz ou com igualdade. O mercado age por lógica de remuneração de capital, por retorno de investimento — e não por ética.
Nesse sentido, as regulações — leis antitruste, limitação à concentração econômica, impostos progressivos, proteção ambiental, direitos dos trabalhadores, tributação justa — são instrumentos cruciais na reorganização econômica que precisamos. Instituir o Estado como o árbitro, não como o refém das corporações. Instituir regulação forte e inteligente pode limitar a externalização de custos ambientais e sociais que o mercado normalmente ignora. Estudos apontam que economias com mercados mais regulados e com forte atividade estatal podem obter melhores resultados em emprego, proteção social e menor desigualdade. O indicador de qualidade regulatória mostra que países com melhor estrutura regulatória tendem a oferecer maior estabilidade e previsibilidade (ver Indicador de Qualidade Regulatória do World Bank).

Mesa “Combustíveis Sustentáveis / SAF e Hidrogênio”, durante a COP30. Ana Paula Bernardes (FESPSP) fala sobre geração de energia a partir de resíduos (biometano, biogás e bio-óleo). Casa da Ciência, instalada no Museu Emílio Goeldi, Belém (PA), 13/11/2025. Foto: Diego Galba/ASCOM/MCTI.
Vivemos uma nova era na geopolítica — o mundo já não é mais dominado por um único eixo ocidental/neoliberal. Estamos na era de um sistema multipolar, em que grandes potências regionais (Ásia, América Latina, África) e coalizões diferentes disputam influências econômicas, tecnológicas e climáticas. Este mundo multipolar exige que as nações retomem soberania, reconstruam seus instrumentos econômicos e institucionais para responder tanto ao poder global do capital quanto a seus próprios cidadãos.
É preciso apostar num novo modelo econômico. Parte desse novo modelo exigido é justamente o oposto do neoliberalismo clássico — que apostou na desregulação, no enfraquecimento do Estado e na primazia do mercado. Hoje vemos que esse modelo resultou em concentração de riqueza, fragilidade social, externalização ambiental, e vulnerabilidades sistêmicas. O novo modelo exige Estado mais forte, regulação inteligente, modelos de propriedade e governança diferentes — o mercado a serviço da vida coletiva, não o contrário.
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É preciso um Estado mais independente, que tenha coragem institucional para testar novos modelos econômicos — romper com dogmas ideológicos e colocar a sustentabilidade, a justiça e a paz como pilares centrais de desenvolvimento sustentável. Experimentar regulação financeira mais rígida, taxação de grandes fortunas, transição energética acelerada, economia circular, parcerias público-privadas com accountability, e modelos de governança em que o mercado sirva à vida — não o inverso.
O mercado não tem sentimento. Ele não sofre com a desigualdade. Ele não se importa com justiça intergeracional ou regeneração da natureza. Ele não é estratégico, ele é imediatista. Cabe ao Estado — e aos governos que detenham a legitimidade democrática — colocar o mercado sob condição de servir à vida, à paz, à igualdade e à sustentabilidade. Se não fizermos isso, a bipolaridade que se revela na COP30 continuará sendo a norma: esperança e beleza de um lado, impotência e lógica financeira implacável do outro.
A COP30 nos dá o espelho desse dilema: o desastre de um lado, e o palco da oportunidade de outro. A questão é: teremos a coragem para transformar o espelho em janela?
Paula Bernardes é cientista política e gerente de projetos de economia circular e inovação da FESPSP. Integra o Grupo de Pesquisa Transformação Ecológica e Diversificação Energética da Fundação Maurício Grabois.
*Texto publicado originalmente na Carta Capital, em 17/11/2025, com o título A dualidade da COP30 e a urgência de um novo modelo econômico.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a opinião da FMG.