O identitarismo é o reacionarismo dos tempos atuais
O identitarismo é um resultado bastardo da fragmentação do pensamento.
Desde o Iluminismo, desde Descartes, passando por Spinoza, Kant, Hegel, até Marx e seus seguidores – sobretudo Lenin e Stalin – o pensamento é encarado em seu aspecto de unidade, exatamente a unidade imprescindível para pensar a unidade do mundo. Sem unidade, o pensamento não existe, não é nada, ou, melhor, ele se desfaz.
Como escreve Marx, firmando este ponto de vista em Introdução à Crítica da Economia Política:
“O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação.”
A partir já do século XVII, houve muitas tentativas de se contrapor ao Iluminismo. Mas ele foi vencedor de todas as batalhas filosóficas, tanto na Revolução Burguesa, com os Enciclopedistas, quanto na Revolução Socialista, com os marxistas.
As tentativas posteriores de avivar as brasas (ou as cinzas) do irracionalismo alemão – sobretudo com o incensamento de Nietzsche – contra o Iluminismo foram baldadas.
O melhor e mais estrondoso exemplo desse fracasso foi a derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial. Hoje, desde 1945, tenta-se desvincular Nietzsche do nazismo. Até mesmo surgiu a teoria, nauseantemente repetida, de que suas obras, aproveitadas pelos hitleristas, teriam sido deformadas por sua irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche, uma nazista muito prestigiada por Hitler e seus acólitos.
No entanto, aos adeptos da desvinculação de Nietzsche do nazismo, resta explicar a fascinação dos nazistas por ele. Nenhuma deformação nos seus livros pode explicá-la. Os nazistas identificavam-se com o pensamento de Nietzsche por seu irracionalismo – e, antes que algum acadêmico nos faça reparação, acrescentamos que não consideramos tudo igual em sua obra. É evidente que A Origem da Tragédia, seu primeiro livro, não é igual a Assim Falou Zaratustra. É verdade que o primeiro desses livros, com as suas categorias de “dionisíaco”, “apolíneo” e “socrático” é uma narrativa. Não colocaríamos a mão no fogo pelo seu rigor histórico. Mas não é tão reacionário, tão anti-humano quanto Zaratustra e outras preciosidades posteriores.
O fato é que a tentativa de opor Nietzsche, e outros irracionalistas, ao Iluminismo fracassou junto com os nazistas na Segunda Guerra – e mesmo antes: lembro de um comentário negativo de Jack London, que morreu em 1916.
Já nesta época, no entanto, o capitalismo estava imerso em profunda crise, aquela que se chamou (e se chama) “crise geral do capitalismo”, iniciada com a virada da livre concorrência para o capitalismo monopolista, com a Primeira Guerra Mundial e com a Revolução Russa de 1917.
Da crise do capitalismo à busca por doutrinas irracionais
O próprio nazifascismo foi uma resposta a essa crise. Daí, ao mesmo tempo, no plano do pensamento, o recurso a Nietzsche e a outros irracionalistas contra o Iluminismo – cujo principal representante passara a ser o marxismo.
É verdade que o capitalismo, mesmo imerso na extremíssima crise que eclodiu em 1929 (por assim dizer, uma crise dentro da crise geral ou uma manifestação aguda da crise geral), não estava tão degenerado quanto hoje. A demonstração principal disso foi a eleição, para a Presidência dos EUA, de Franklin Delano Roosevelt. O nazifascismo dominou, principalmente, imperialismos secundários, como o da Alemanha e o da Itália. Os EUA, a Inglaterra e a França permaneceram fora da órbita do fascismo.
Isto é diferente hoje, quando o fascismo está no poder nos próprios EUA.
Virada neoliberal e esvaziamento produtivo nos EUA
A questão é que, da década de 1970 do século XX para cá, a base econômica imperialista – a base econômica dos EUA – foi despedaçada. Alguns escritores expressaram essa realidade, falando em fim do “fordismo”. Ou seja, aquele capitalismo que, dentro dos EUA, reunia milhares de trabalhadores na linha de produção das fábricas, não existe mais.
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Porém, isso – da mesma forma que o domínio das big techs – não é um avanço. Pelo contrário, é um retrocesso que corresponde a uma profunda desindustrialização no principal país capitalista industrial do mundo. Não é uma evolução das forças produtivas do capitalismo, mas um efeito do entravamento destas mesmas forças produtivas pelas antiquadas relações de produção. É verdade que as forças produtivas sempre se desenvolvem, nunca param de se desenvolver, mas se desenvolvem travadas pelas relações de produção anacrônicas. Daí a devastação e a decadência da economia norte-americana. Tal como apontou Engels, no final do século XIX, o capitalismo é um cadáver – e, ao não ser sepultado, empesteia a atmosfera com sua putrefação
Se isso era verdade na época de Engels, muito mais agora, mais de 100 anos depois.
Entretanto, qual foi a alternativa econômica a que o capitalismo monopolista recorreu, ainda que inconscientemente, diante da redução da taxa de lucro, que tornou-se uma questão dramática nos EUA?
A primeira foi o rentismo – fundamentalmente, a maior parte dos lucros não são mais advindos da produção, mas da especulação com papéis. É isso o que faz com que os derivativos, somados, tenham um valor que é oito a dez vezes o PIB mundial.
A segunda foi o ataque à periferia – a países como o Brasil – através das privatizações, desregulamentações, estrangulamento fiscal, corte nos gastos sociais, taxas de juros escorchantes, fim do protecionismo, favorecimento ao capital estrangeiro, anulação de patentes, ou seja, tomada das suas economias, com uma desindustrialização forçada e hedionda.
A terceira foi a transferência de suas unidades produtivas – isto é, de suas fábricas – para a China e alguns outros países, para aproveitar as condições locais. Esta, aliás, foi uma causa direta de desindustrialização nos EUA e países centrais, embora também o rentismo e o ataque à periferia tivessem esse efeito.
Crise econômica como solo fértil para novas ideologias
Esta é a base econômica tanto do neoliberalismo quanto do identitarismo. Não por acaso, o principal profeta do identitarismo, Michel Foucault, acabou a vida como neoliberal.
Porém, ainda é necessário precisar em que momento houve uma virada do “fordismo” para o neoliberalismo (entendendo, por esse termo, sobretudo as três características que apontamos).
Carolina Maria Ruy, no artigo Esquerda, pós-modernidade e pauta identitária, aponta 1973 como o ano em que o modelo capitalista anterior começou a dar sinais de esgotamento.
Podemos adotar, e não erraremos nisso, este ano como o ponto de virada (mais um ponto de virada) no capitalismo. É um espaço de meio século até os tempos de hoje, com o fascismo de Trump transformando os EUA em uma república de bananas (ver Chris Hedges, America is a Banana Republic).
A questão, logo, é que o Iluminismo – que, antes de tudo, implica no predomínio da razão – tornou-se incompatível com esse estado de coisas, com o despedaçamento da própria base econômica do capitalismo nos EUA.
Uma economia – e uma realidade – irracional não poderia ser pensada por uma filosofia racional. O pensamento racional só teria como resultado, para continuar a evolução de sua racionalidade, a transformação da realidade em outro modo de produção, este, sim, racional.
Mas era exatamente isso que os apologistas e ideólogos do capitalismo queriam evitar – ainda que não estejamos seguros de qual o grau de consciência deles. O que não importa. O que realmente importa é que esse era (e ainda é) o seu objetivo.
Daí, a fragmentação do pensamento e o surgimento do identitarismo, por parte daqueles que queriam conservar os moldes do capitalismo monopolista.
Pela primeira vez desde o surgimento do Iluminismo, propunha-se o abandono da unidade do pensamento – e, portanto, da unidade do mundo. Esse truque (pois trata-se de um truque, que acontece no plano das ideias – e só ilusoriamente no plano da realidade) foi acompanhado, e ainda é acompanhado, por uma feroz campanha contra o Iluminismo. Era necessário destruí-lo para que essa infâmia vigorasse.
Assim, o Estado e as instituições mais gerais tornaram-se intocáveis. Para um marxista, a resolução dos problemas nacionais, das discriminações à mulher, aos negros, aos homossexuais, etc., fazem parte de uma transformação geral, ou seja, de uma revolução. Nenhum marxista jamais propôs ou tentou, por exemplo, revolucionar a escola, ou as prisões, sem tocar na sociedade – ou no resto da sociedade.
Para os identitários, as várias discriminações ou problemas têm que ser enfrentados isoladamente – e, assim, não existem problemas nacionais. A rigor, nem problemas sociais, pois a microcontestação dos identitários ignora a própria sociedade. É preciso, para eles, focar na escola ou na medicina ou seja lá em que aspecto parcial – contanto que se ignorem os problemas gerais. Até porque não existe outra forma de deixar a sociedade intocada.
Toda a retórica – pois se trata mais de retórica que filosofia – de Foucault tem esse caráter, por mais complicada e rebuscada que ela pareça. Assim, a realidade é sempre um reflexo invertido da ideia. Por exemplo, é a psiquiatria que cria (ou criou) as doenças mentais – e não o inverso.
Da mesma forma, a sua oposição à União Soviética, ao mesmo tempo que os elogios ao neoliberalismo, ideologia do imperialismo decadente.
Significativamente, ele também recorreu a Nietzsche, em seu aspecto mais reacionário: a teoria do super-homem. Somos quase forçados a dizer que, ao se sentir menos que um ser humano, Foucault queria compensar esse sentimento com o mito de Nietzsche. Como algum foucaultiano pode reclamar, contentemo-nos apenas em observar que o identitarismo, então, identificava-se (e identifica-se) com o irracionalismo. O que era inevitável: como arguir qualquer racionalidade para o identitarismo, uma ideologia que, ao fim e ao cabo, tem o objetivo de conservar o mundo (isto é, o esfrangalhado mundo capitalista) tal como ele está – e eternamente?
O identitarismo é, assim, a ideologia reacionária dos tempos atuais.
Em Questões de Método, Sartre escreve:
“Considero o marxismo como a insuperável filosofia de nosso tempo.”
Já o reacionarismo, tem uma ideologia a cada momento de decadência do capitalismo.
O identitarismo corresponde a uma fase de avançada decomposição econômica do capital, na qual seu credo financeiro é o rentismo e o neoliberalismo, isto é, a esterilidade. É verdade que os acontecimentos na União Soviética e no Leste Europeu lhe deram a oportunidade de uma sobrevida, isto é, de uma existência de morto-vivo, portanto, vampiresca.
Esta é uma questão importante: quando Kruschev queimou as pontes com o passado – com a construção do socialismo – estava, embora não soubesse disso, abrindo as portas para o lixo identitário. Mesmo assim, durante 20 anos, e até mais, esse lixo foi contido pela influência soviética.
Ascensão acadêmica das correntes pós-estruturalistas
Mas é interessante que Foucault, tão direitista quanto aquela plêiade insuportável de “novos filósofos” franceses, fosse tratado como um pensador “de esquerda”, tanto no Brasil, quanto também, é justo que se diga, na França e outros países.
Por que a visão das pessoas, sobretudo na academia, não conseguia ver o seu direitismo? É verdade que ele próprio vestia uma fantasia “de esquerda”. Além disso, apresentava-se como vítima, quando atacado, por sua condição de homossexual. Mas não é esse o principal motivo.
A questão fundamental é a invasão da academia francesa – com sua influência no resto do mundo – pelo anticomunismo que ressurgiu após o XX Congresso do PCUS, em 1956.
Após esse Congresso, não houve contraponto soviético de peso ao direitismo ocidental.
Refluxo do marxismo e hegemonia do pensamento fragmentado
Daí, o identitarismo se espalhou praticamente sem oposição.
Mas nem assim foi capaz de uma autêntica vitória. Hoje, que ele está, bem ou mal, em refluxo, é mais do que hora de voltarmos aos princípios e fundamentos do Iluminismo.
Carlos Lopes é redator-chefe do jornal Hora do Povo, vice-presidente nacional do PCdoB e membro do Grupo de Pesquisa sobre Problemas e desafios contemporâneos da teoria marxista.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a opinião da FMG.