No Brasil, a estrutura do trabalho continua marcada por heranças profundas da escravização. As longas jornadas, os baixos salários e a falta de descanso recaem, de maneira desproporcional, sobre a população negra. Jovens, mulheres, moradores das periferias, são eles e elas que sustentam a base produtiva da pirâmide do país enquanto carregam, nos ombros, as desigualdades que sempre tentaram silenciar.
O Atlas da Escala 6×1, estudo do Sindicato dos Empregados do Comércio do Rio de Janeiro (SECRJ), em parceria com o Observatório do Estado Social Brasileiro, revela essa realidade com precisão. Na escala 6×1, em que se trabalha seis dias para descansar apenas um, a maioria é composta por jovens negros que ganham até um salário mínimo. Muitos passam mais de uma hora e meia por dia no transporte coletivo apenas para chegar ao trabalho.
O estudo também apontou que, entre os negros, 46% recebem entre R$ 1.412 e R$ 2.120, enquanto 22% sobrevivem com até um salário mínimo, e 70% não veem qualquer possibilidade de aumento salarial. É um ciclo de estagnação e exaustão pensado para manter o povo negro sempre na base da pirâmide.
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Quando olhamos para as mulheres negras, a injustiça é ainda mais gritante. Elas são as mais afetadas pelos baixos salários, 80,7% recebem até R$ 2.120, e, além disso, enfrentam rotinas que não terminam quando o expediente acaba. As duplas e triplas jornadas dentro de casa — cuidado de crianças, idosos, manutenção do lar— criam um acúmulo de tarefas que a sociedade insiste em naturalizar. Esse trabalho, invisível para o Estado e para o capital, é fruto de uma lógica estrutural, racista e de gênero que atravessa gerações.
Essas condições não são fruto do acaso: são resultado de um modelo econômico que se apoia na superexploração da força de trabalho negra. A escala 6×1 é uma expressão concreta desse modelo. Jornadas abusivas servem à mesma elite que historicamente explorou, precarizou e desumanizou. O descanso vira privilégio, o lazer se torna luxo e o direito ao futuro é constantemente adiado. Não é “flexibilidade”, é projeto de classe.
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No Mês da Consciência Negra, é fundamental reafirmar que lutar por justiça racial também significa disputar o tempo: tempo livre, tempo de cuidado, tempo de estudar, de amar, de viver. Significa defender saúde, dignidade e proteção social para a população negra. Não há projeto de igualdade racial possível mantendo negros e negras presos à escala 6×1, sem direito a dois dias consecutivos de descanso.

Deputada federal Daiana Santos (PCdoB-RS) apresentou o Projeto de Lei 67/2025, que propõe a redução da carga horária máxima de trabalho para 40 horas semanais, assegurando pelo menos dois dias de repouso remunerado por semana. Foto: Divulgação
É por isso que o nosso PL 67/2025, apresentado por mim juntamente com a bancada do PCdoB, tem avançado no Congresso Nacional. O projeto de lei propõe substituir a escala 6×1 pela escala 5×2, garantindo dois dias seguidos de descanso e 40 horas semanais de trabalho sem redução salarial. Ao reduzir jornadas, ampliar direitos e combater a precarização, o PL 67/2025 não é apenas uma pauta trabalhista: é uma ação concreta de enfrentamento às desigualdades e uma medida de reparação social diante de tudo o que a população negra historicamente sofreu e ainda sofre.
O Brasil precisa garantir que negros e negras deixem de viver para trabalhar e passem, finalmente, a viver com dignidade. Um país que nega descanso, nega humanidade. E é justamente essa negação que precisamos enfrentar com organização, luta e projeto de nação, para que a maioria negra, que constrói este país todos os dias, possa também decidir sobre o seu tempo e o seu futuro.
Daiana Santos é deputada federal (PCdoB-RS) e autora do PL 67/2025, que propõe a escala 5×2. É sanitarista e educadora social.
Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a opinião da FMG.