Reparação. Esta foi a tônica das mobilizações do Novembro Negro em todo o país, encampadas nas ações da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro). “É a palavra-chave para a nossa luta porque a gente precisa avançar com a PEC 27; a gente precisa de um fundo [para o financiamento], precisa falar sobre isso no Mês da Consciência Negra em 2025”, afirma ao Portal Grabois Marina Duarte, coordenadora da Unegro Nacional, presidenta da Unegro Bahia e vice-presidenta do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR).
A PEC 27/2024, chamada de PEC da Reparação, inclui na Constituição a previsão do Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial (FNREPIR), com a destinação de R$ 20 bilhões ao longo de 20 anos para o financiamento de políticas públicas e projetos de promoção cultural, social e econômica de pretos e pardos como bolsas de estudo, investimentos em educação na primeira infância e apoio ao empreendedorismo.
Com relatoria do deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), a proposta foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados e segue para análise na Comissão Especial presidida pela deputada federal Benedita Barbosa (PT-RJ), etapa que antecede a votação em dois turnos no Plenário da Câmara e, posteriormente, no Senado Federal.
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A coordenadora da Unegro ressalta:
“Em um país onde o capital diz quem vive e quem morre, precisamos de recursos para girar nossas pautas, para conseguirmos falar sobre a saúde da população negra, sobre a vida e o futuro da juventude negra, sobre segurança pública.”
Como parte das atividades do Mês da Consciência Negra, a organização reuniu 160 jovens entre os dias 7 e 9 de novembro no Rio de Janeiro, durante o 1º Encontro da Juventude da Unegro. Palco da operação promovida pelo governador Cláudio Castro, que resultou na morte de 121 pessoas, o encontro foi um posicionamento da juventude contra a morte da população negra e periférica do Estado. Marina Duarte destaca:
“A megaoperação do Rio de Janeiro é mais um estrato da extrema direita que deixa os fragmentos de uma política de morte, uma política de negação dos corpos negros, de extermínio, de direitos negados.”
Na entrevista ao Portal Grabois, a coordenadora da Unegro também fala sobre a importância do combate ao racismo ambiental no contexto da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), a mobilização política da juventude negra e periférica com foco nas eleições de 2026 e o centenário do intelectual comunista Clóvis Moura (1925-2003).
Leia a entrevista completa
Quais temas e agendas a Unegro priorizou neste Mês da Consciência Negra de 2025?
A Unegro é uma entidade de organização nacional com uma diversidade muito grande de prioridades, de pautas e de territórios. De forma nacional, nós do movimento negro — a Unegro se inclui nisso, por ser uma organização de 37 anos que combate o racismo de todas as formas que ele se apresenta — neste ano de Conferência de Promoção da Igualdade Racial, e COP30, a gente fala muito sobre reparação e traz a questão da memória.
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Enquanto vice-presidenta do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), por todos os espaços que passamos, falamos muito sobre a construção dos governos progressistas de Lula e Dilma, seguidos de um desmonte [governos Temer e Bolsonaro] e agora uma reconstrução. O que isso traz de memória?
Este ano completamos 30 anos da primeira Marcha de Zumbi dos Palmares [em 20 de novembro], que marcou os 300 anos da morte desse líder com uma agenda de cobrança de políticas para o nosso povo, durante o governo do Fernando Henrique Cardoso (PSDB). A partir desse momento, houve grandes avanços, construímos a Sepir [Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial], que hoje é o Ministério da Igualdade Racial, a pauta da lei das cotas e um Estatuto de Promoção da Igualdade Racial.
Depois desse evento, tivemos avanços. Participamos da cúpula de Durban [III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas realizada na África do Sul, em 2001] onde foi construído um grande documento de urgências de políticas públicas. Quando revisitamos esse documento, percebemos que muitas coisas ainda precisam avançar e este é um ano para falarmos sobre isso. O governo que a gente ajudou a construir, traz a reconstrução no slogan. Para nós da população negra, essa reconstrução é uma reparação urgente e imediata, a urgência do movimento negro é a reparação.
A gente está lutando pela PEC da Reparação, que cria um fundo de promoção da igualdade racial para ajudar a construir as nossas pautas. A gente vive em um mundo capitalista, em um país onde o capital diz quem vive e quem morre, e precisamos de recursos para girar nossas pautas. Na educação, para que a gente consiga realmente implementar a Lei 10.639/2003 [legislação que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas de ensino fundamental e médio no Brasil]. Para falar sobre a saúde da população negra, sobre a vida e o futuro da juventude negra e sobre segurança pública. Reparação é a palavra-chave para a nossa luta, porque a gente precisa avançar com a PEC 27, a gente precisa de um fundo e precisa falar sobre isso no Mês da Consciência Negra em 2025.
Eu sou presidenta da Unegro na Bahia e aqui a gente fez este ano a 17ª lavagem da Estátua de Zumbi dos Palmares com o tema “Da Marcha de Zumbi dos Palmares à PEC 27: 30 anos de luta por reparação”.
A Unegro realizou o 1º encontro da juventude no Rio de Janeiro após a megaoperação do governador Cláudio Castro que deixou mais de 120 mortos nos complexos do Alemão e da Penha. Qual a importância desse encontro e como a juventude se posiciona diante dessa situação?
A Unegro nasce falando sobre o extermínio programado da população negra e isso inclui o genocídio da juventude negra. A megaoperação do Rio de Janeiro é mais um extrato da extrema direita, que deixa seus fragmentos de uma política de morte, uma política de negação dos corpos negros, de extermínio, de direitos negados. Essa operação retrata mais uma vez a não importância da preservação, do cuidado da vida, dos corpos dos homens, da juventude masculina e dos homens negros que habitam a periferia.
Fazer um encontro de juventude negra com mais de 160 jovens dentro do Rio de Janeiro é dizer que a juventude está alerta contra esse projeto de morte, que não conseguimos ainda enterrar de uma vez em nosso país.
A gente ganhou muito em ouvir jovens nos grupos de trabalho, aprendendo a linguagem da juventude. Saímos com um fórum formado por jovens de todos os cantos do país, com um direcionamento político muito importante, um documento construído pela juventude com as suas prioridades para 2026. A primeira é ocupar os espaços de poder, essa tentativa nunca pode morrer entre nós da população negra.
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A juventude tem que começar com um fogo da política, então a gente bateu muito papo sobre eleição de 2026, sobre fazer a política em cada território, em cada município. É preciso acordar a juventude, dialogar através de rima, de hip-hop, de filme, de música, sobre educação, saúde, em todos os contextos. Enterrar o bolsonarismo e a extrema direita em 2026 é a principal meta, mas a gente precisa ter esse foco na juventude.
Conversamos também sobre os avanços da reparação, sobre a PEC 27, sobre o futuro, sobre a necessidade dessa juventude negra estar viva para incidir na política de 2026. A juventude negra está atenta, está se articulando politicamente para mudar o estrato e a fotografia desse país, só assim a gente vai conseguir grandes avanços na política pública.

Participantes do Encontro Nacional de Juventude da Unegro, realizado no Rio de Janeiro (RJ), entre os dias 07 e 09 de novembro de 2025. Crédito: Unegro Brasil/Facebook
Nessa COP30 em Belém, o Brasil se coloca como porta-voz do Sul Global na questão climática. Sabemos que a questão do clima também apresenta um recorte racial, por meio do racismo ambiental. Como essa discussão foi colocada na COP30, o que precisa avançar nesse sentido?
A gente começa com o Brasil entregando o documento sem falar sobre o racismo ambiental. Foi preciso que o movimento negro, os movimentos quilombolas que compõem a Conaq [Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas], falassem sobre o tema.
Não existe transição energética, discussões que envolvem o meio ambiente sem falar sobre a continuação do sacrifício dos mesmos corpos e territórios: a população negra e os territórios quilombolas, os povos indígenas, as periferias, que sofrem com os impactos da crise climática.
Quando o Brasil se apresenta como o porta-voz do Sul Global sobre esse tema, precisa reconhecer a necessidade de evoluir nesse debate. A gente não está falando sobre teoria de racismo ambiental, estamos falando de um território com um percentual muito grande de comunidades negras, quilombolas, indígenas, com falta de saneamento, poluição industrial, ocupações desiguais, falta de assistência, insegurança hídrica e quilombos ameaçados por mega empreendimentos. Os territórios de matriz africana, de povos e comunidades tradicionais e povos de terreiro sofrem muito com a degradação ambiental, então a gente precisa avançar em alguns pontos.
Um deles é o reconhecimento institucional do racismo ambiental. O Brasil precisa reconhecer que é um país racista. Reconhecendo que é um país racista, reconhece que o racismo ambiental tem participação direta na escassez e na falta de políticas públicas que impactam na saúde e no futuro de um certo segmento da população.
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A gente precisa falar sobre o financiamento para adaptações climáticas em territórios negros como os quilombos e as periferias. Tivemos um avanço no reconhecimento dos povos quilombolas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], mas eu sigo dizendo que pesquisas com dados anunciados sem um acompanhamento de política pública são pesquisas vazias. A gente tem áreas quilombolas já mapeadas nesse controle do IBGE, precisamos acompanhar isso com políticas públicas e a garantia da não reprodução das desigualdades, nos grandes avanços que vão desaguar dessa COP30. Precisamos tocar nesses pontos e dar a devida atenção.
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Este ano está sendo celebrado o centenário de Clóvis Moura, um autor fundamental para pensar a história da população negra no país e considerado um dos mentores intelectuais da Unegro. Qual a importância de celebrar o pensamento desse autor?
Falar de Clóvis Moura é falar de um dos maiores intelectuais da luta antirracista. Clóvis Moura foi um intelectual para além do seu tempo, porque ele desmontou o mito da democracia racial, quando a gente nem sabia ainda o que era política de promoção da igualdade racial.
Clóvis Moura foi um estruturante de formação, de opinião, que nos deu instrumento e pesquisa para compreender a violência do Estado brasileiro, a falta de projetos políticos e a desigualdade no país. Falar de Clóvis Moura é falar desse mentor intelectual, que nos ensinou que a luta pela igualdade racial é inseparável da luta de classes, da disputa dos espaços de poder, da organização popular.
Celebrar o centenário de Clóvis Moura é dizer que a gente não abre mão de uma leitura crítica, radical, uma leitura que direciona a sociedade brasileira para se organizar politicamente, intelectualmente, comprometida com transformações reais e não superficiais.
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Clóvis Moura foi um revolucionário das ideias que mostrou para o país que a história do povo negro não se reduz à escravidão, que a gente precisa contar a história do nosso povo a partir das resistências, das revoltas, da criação dos quilombos, a insurgência do negro e não desse mito de que o negro aceitou ser escravo. Clóvis Moura nos traz à realidade, ao pensamento crítico revolucionário do povo negro que foi sequestrado de África, fez esse transatlântico sequestrado, mas quando chegou aqui não se curvou, como o mito da democracia racial queria nos contar. Graças ao Orixá, ao tempo e à nossa ancestralidade, a gente teve Clóvis Moura quando ninguém tinha coragem de escrever sobre revolução negra, não por falta de conhecimento, mas sim por falta de amparo, de políticas que matavam as pessoas negras que conseguiam se insurgir.
Ele foi um homem fora da curva e nos trouxe o pensamento sobre as nossas insurgências enquanto negros e negras para derrubar a falsa verdade de que o país era um território democrático, trouxe a compreensão de um território racista e a necessidade da revolução negra para reduzir as mazelas da escravidão. Até hoje a gente faz isso, luta para reduzir essas mazelas que ainda respingam na vida da população negra.
Poderia indicar livros que considera fundamentais para pensar a Consciência Negra?
Já que estamos falando de Clóvis Moura, vamos de Rebeliões da Senzala (Editora Anita, 2025), podemos também falar de Mulheres, raça e classe (Boitempo, 2016) de Angela Davis, que fala sobre o feminismo negro, o trabalho e a opressão, pois nós ainda somos a base da pirâmide. E toda a população, independente de ser negra ou não, tem que ler o Estatuto de Igualdade Racial, é imprescindível.