Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade,
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade.
Luís de Camões
Os Lusíadas (IX – 28)
Era um debate sobre a agropecuária brasileira. Um camarada me questionou. Para ele, com apoio governamental adequado (e destacou essa premissa), os assentamentos de reforma agrária e do MST alimentariam o Brasil. Melhor e mais barato, comparado ao agronegócio. Ele tinha dados do seu potencial de produção. Queria minha opinião, como pesquisador. Primeiro, dei um conselho. Assumir o desafio de alimentar o Brasil parecia exagerado. Propus começarem pelo panetone. Sim. Garantir, daqui um ano, no próximo Natal, o panetone dos brasileiros.
Só a Bauducco, produz no Natal mais de 80 milhões de panetones e exporta para 50 países. Existem outras marcas: Visconti, Ofner, Cacau Show, Kopenhagen, Lindt, Nestlé, Tommy, Casa Suíça, Village, Panco, Arcor, Wickbold… além dos panetones produzidos em padarias e até nas casas. Para garantir a fabricação desses panetones para o Natal, assentamentos e acampamentos precisariam produzir e fornecer, quase em bloco, cerca de 360 milhões de ovos, 60.000 toneladas de farinha de trigo, 15.000 toneladas de açúcar, uns 15 milhões de litros de leite, 12.000 toneladas de manteiga, 12.000 toneladas de uvas passas, 11.000 toneladas de frutas cristalizadas, sem falar de umas 10.000 toneladas de celulose para o papel e os papelões utilizados do cozimento à embalagem. Perguntei ao camarada, se dava para garantirem apenas o panetone no próximo Natal. Ele sorriu.
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Natal não é só panetone. Em dezembro ocorrem os dias mais longos do ano. No campo, é tempo de colheitas. Poucos se dão conta: os produtos da agropecuária e da agroindústria garantem os símbolos, a ceia natalina e parte dos presentes, sobretudo os tecidos em algodão. Vive-se um verdadeiro Agronatal. Sem a agropecuária, haveria Natal?
Aumenta o consumo de carnes especiais. Consumidores demonstram forte preferência por carnes suínas (pernil e lombo), presentes em 64% das ceias. Aves comemorativas como chester e peru são consumidas em 29% das ceias. Empresas frigoríficas têm unidades dedicadas só à produção dessas carnes especiais para o Natal. Carne bovina e cordeiro têm consumo menos expressivo (7%). Entre 2006 e 2007, o consumo de aves ultrapassou o de bovinos e segue assim, salvo no final do ano.

Gráfico mostra a evolução do consumo brasileiro de carne bovina e de carne de frango, em milhões de toneladas, entre 2000 e 2025. Crédito: Scot Consultoria / Reprodução
A MBRF é um exemplo de como a produção agropecuária brasileira ganhou escala, eficiência e projeção internacional. Ela é hoje uma das maiores empresas globais de alimento, atua em 117 países, baseada em uma plataforma verdadeiramente multiproteínas e 100% integrada, com receita anual de R$ 160 bilhões, produção de 8 milhões de toneladas por ano, com mais de 425.000 clientes. O esquema abaixo ilustra sua evolução.

Linha do tempo da BRF e da Marfrig, destacando fusões, aquisições e marcos corporativos até 2025, conforme apresentado no site institucional da MBRF. Crédito: Reprodução de tela do site MBRF (mbrf.com.br).
O Natal coincide com a passagem da primavera para o verão, o tempo da colheita de frutas tropicais e subtropicais. Frescas ou secas, acrescentam cor e sabor às ceias, integradas inclusive em farofas, bolos e panetones. A pesquisa agropecuária ampliou o tempo da frutificação e da disponibilidade de figos, abacaxis, laranjas, pêssegos, tangerinas, uvas, bananas, morangos, nectarinas, mangas, ameixas, maçãs, papaias e outras. O Brasil produz 59 milhões de toneladas de frutas por ano. Exporta um milhão de toneladas. É o terceiro produtor mundial, atrás da China e Índia.
No Natal, cresce o consumo de nozes-pecã, castanha do Pará, castanha de caju, uvas-passa, cacau, castanha de baru, frutas cristalizadas e macadâmia. Segundo a Associação Brasileira de Nozes, Castanhas e Frutas Secas, a produção global de nozes cresce, em média, 6% ao ano. Um mercado de US$ 35 bilhões. O Brasil é o oitavo produtor mundial.
Entre os primeiros símbolos natalinos levados do campo às cidades estão as árvores de Natal. São centenas de milhares de pinheiros, tuias e murtas, produzidos por viveiristas, em vários tamanhos e formatos, para atender desejos e possibilidades do consumidor. Os pinheiros natalinos, sempre verdes, simbolizam a esperança. Sua forma triangular evoca a Trindade. O inventor da árvore de Natal foi S. Bonifácio, o apóstolo dos germanos, em 723, em Fritzlar, na Alemanha. Em pleno Advento, ele convenceu, pelo machado, povo e druidas, a trocar a veneração do deus Thor no carvalho, pela do Menino Jesus no pinheiro. Ele manteve a veneração vegetal, com outra árvore e divindade. Deu certo. O costume dos pinheiros para celebrar o nascimento de Jesus estendeu-se pela Alemanha e ao mundo.
Se os trópicos importaram símbolos natalinos de regiões temperadas: (pinheiros, Papai Noel, lareiras e neve de algodão), exportaram um novo símbolo: a flor do Natal ou poinsétia, conhecida como cardeal ou estrela-do-natal. Originária do México, ela tem folhas verdes e acima, folhas semelhantes a flores vermelhas. Seu nome científico Euphorbia pulcherrima significa a mais bela das eufórbias.
Esse símbolo vegetal mexicano não vem de astecas e sim dos franciscanos, especialistas em novidades natalinas. A montagem do presépio foi invenção do próprio São Francisco. A partir do século XVII, no México, os frades franciscanos utilizaram a poinsétia em comemorações natalinas e associaram suas brácteas vermelhas à estrela de Belém. Hoje, mais de 120 milhões de vasos servem para fins decorativos natalinos na Europa. Aqui, é a planta de decoração mais vendida no Natal para enfeitar shoppings, lojas e residências. A Cooperativa Veiling Holambra, principal centro de comercialização atacadista da floricultura, só na época do Natal vende 2 milhões de vasos. A produção, sempre em estufas, concentra-se em Holambra, Paranapanema, Alto Tietê e Ribeirão Pires em São Paulo.
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O agronegócio mais colorido e perfumado é o das flores, obra-prima de pequenos agricultores, com base empresarial e tecnológica avançada. São mais de 8.000 pequenos agricultores, com área média de 1,5 hectare. Empregam, em média, oito trabalhadores por hectare (Instituto Brasileiro de Floricultura). Cultivam 2.500 espécies e 17.500 variedades. Nas pequenas propriedades, 20% da mão-de-obra é familiar e os demais 80% contratados. O mercado de flores gera 209.000 empregos diretos e 800.000 indiretos. O faturamento em 2024 foi de 22 bilhões de reais. São mais de 600 empresas atacadistas e 25.000 pontos-de-venda. O mercado nacional de flores absorve 97,5% da produção. O resto é exportado.
Neste Natal, deixe o plástico do lado, compre tuia, pinheirinho e vasos de poinsétia. Não é questão religiosa e sim cultural, de identidade nacional. Transforme com flores a sua casa num lar, onde ideias florescem. Naturalmente. Celebre com frutas, nozes e proteínas animais. Com amigos e família. Na medida de suas possibilidades.
Os relatos evangélicos e a tradição cristã retratam o nascimento de Jesus em ambiente rural, num estábulo. Ali descansavam, após a labuta diária, um boi e um jumento (Is 1,3). Em meio ao feno e à palha, o recém-nascido numa manjedoura, de pais sem-teto e sem-terra. O evento foi anunciado a pecuaristas. Chegaram humildes pastores com cães, ovelhas, cabras e camelos. Foi quase uma feira pecuária. Um Agronatal! Politicamente correto. Tão distante do atual exemplo de gastança das mais altas esferas dos três Poderes da ré-pública, onde se esbanja mandos e riqueza, simulando justiça e integridade.
Evaristo de Miranda é agrônomo, com mestrado e doutorado em ecologia pela Universidade de Montpellier. Com mais de 1.400 publicações no Brasil e exterior, é autor de 56 livros, como “Tons de Verde – A Sustentabilidade da Agricultura Brasileira” (em português, inglês, árabe e mandarim). Pesquisador da Embrapa de 1980 a 2023, coordenou mais de 40 projetos e dirigiu três centros nacionais de pesquisa. Membro da Academia Nacional de Agricultura, foi eleito Agrônomo do Ano em 2021. Sua produção científica e artigos estão disponíveis no site: evaristodemiranda.com.br.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da Fundação Maurício Grabois.