Logo Grabois Logo Grabois

Leia a última edição Logo Grabois

Inscreva-se para receber nossa Newsletter

    Democracia

    Buscando entender a consciência política do povo após décadas de democracia

    Análise das raízes históricas e sociais que permitiram a ascensão de novas forças conservadoras e tornaram a mobilização progressista mais desafiante na cena nacional

    POR: Ronald Freitas

    11 min de leitura

    Eleitor realiza a identificação biométrica na urna eletrônica durante o processo de votação. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil.
    Eleitor realiza a identificação biométrica na urna eletrônica durante o processo de votação. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil.

    Com este texto, busco entender o nível de consciência política das camadas de base da sociedade.

    O grande desafio que as forças progressistas, democráticas e de esquerda em geral — e os comunistas, em particular — enfrentam na atualidade é serem capazes de interpretar os anseios das amplas massas do povo e com elas se ligarem, estabelecendo uma relação política capaz de se transformar em força político-social real. E, assim, impulsionar as mudanças urgentes nos rumos econômicos, políticos, sociais, jurídicos e ambientais que o Brasil está a exigir, para superar o estágio de desenvolvimento dependente ao qual está submetido. Em certo sentido, tal situação nos coloca na posição de um país que se encontra estagnado, ou mesmo em fase de regressão, quando cada vez mais somos um exportador de matérias-primas, in natura ou semielaboradas, sofrendo, com isso, um lento e corrosivo processo de desindustrialização.

    A exclusão histórica do povo dos processos políticos

    Ao longo de nossa história, objetivamente, o grande ausente da vida política nacional, como construtor de uma Nação e de um Estado que o represente politicamente, foi o povo brasileiro, no sentido mais profundo do termo, que, a meu juízo, são as camadas da população que produziram e produzem a riqueza nacional, seja na era colonial, seja no período de vigência do império com fortes traços absolutistas da casa de Bragança, seja na República Velha e a partir de 1930, com o tipo limitado de revolução burguesa liderada por Getúlio Vargas, que iniciou um novo ciclo de construção e desenvolvimento do país, que, a rigor, estende-se até os dias atuais.

    A partir de 1930, o Brasil passou a viver um desenvolvimento acelerado de modernização capitalista, no qual, independentemente da forma de governo de cada momento, o processo de escolha das elites políticas que controlam o Estado Nacional tem como denominador comum a não participação do povo, de forma consciente e proativa. 

    Logo após a vitória da Revolução de 1930 (1930-1934), Getúlio passou a governar por decreto, o que dispensava a participação política do povo. Apesar disso, foram instituídos e criados por decretos presidenciais, entre outros: a Justiça Eleitoral; o voto secreto; o voto feminino, além de outras mudanças derivadas das pautas que levaram à deflagração do movimento de 1930.

    Leia mais: Crises que moldam consciências do Império Romano ao Brasil de hoje

    Avanços institucionais sem participação popular efetiva

    Com essas inovações acerca da participação em eleições, e devido às circunstâncias políticas existentes, de forte pressão sobre o governo para que fossem realizadas eleições, foi eleita em 1933 uma Assembleia Constituinte, que teve como tarefa central a elaboração da Constituição de 1934. Convém notar que, em 1933, a população do Brasil era estimada em 36.958.878, da qual, segundo dados do TSE, votou menos de 4%. Ou seja, houve pequena participação. 

    O quadro político nacional de grande instabilidade social e agitação política levou Getúlio, em 1937, a dar um golpe de Estado e instituir a Ditadura do Estado Novo (1937-1946), durante a qual governou por decretos de forma despótica. 

    Com o fim do Estado Novo, foi retomado o procedimento da realização de eleições para a escolha dos governantes em todos os níveis e esferas dos poderes Executivo e Legislativo. Mas esse período que se estendeu de 1946 até 1964 foi de grande instabilidade política, e de pouca participação popular nos processos eleitorais que, de resto – salvo algumas exceções nos grandes centros urbanos –, eram controlados por chefes de oligarquias regionais, onde imperava a prática do “voto de cabresto”

    Acrescentando a essa realidade o impedimento do voto dos analfabetos, que só foi permitido em 1985, não é exagero afirmar que a participação popular consciente era, no fundamental, um teatro de sombras. A partir de 1964, com a instalação da Ditadura Militar, que dominou o país até 1985, a participação popular, nos processos eleitorais manipulados então existentes, nada agregou à formação de uma consciência política crítica na população.

    Com o fim da Ditadura, foi restabelecido o Estado de Direito Democrático, de cunho liberal burguês, que passou a funcionar sob o regramento jurídico, estabelecido pela Constituição de 1988 – que continua em vigência, apesar das modificações sofridas que, em certo sentido, a desfiguraram. 

    Contradições do ciclo democrático pós-1988

    Nesses 37 anos da Constituição de 1988, tivemos sete presidentes da República, todos eleitos em acirradas disputas eleitorais que empolgaram o país. Dois deles receberam impeachment, e quatro foram presos ou condenados. E, como que para realçar a complexidade da nossa realidade política, nesse período tivemos as eleições de Lula e Dilma para presidentes, ambos representantes do campo de esquerda. E, durante todo esse período, o voto conservador cresceu no país, mormente na composição das casas legislativas nos níveis Federal, Estadual e Municipal. Essa contradição gritante entre a possibilidade de eleger presidentes do campo da Esquerda, casos Lula e Dilma, e ter parlamento majoritariamente, conservadores e de direita, é a explicitação maior da inexistência de uma consciência política mais desenvolvida nas camadas mais populares do país. 

    Leia também: Prisão de Bolsonaro reforça necessidade de frente ampla em 2026, avalia Nádia Campeão

    Porém, essas disputas, salvo as de 1989, não se basearam em propostas programáticas que procurassem transformar a fundo o Estado brasileiro, e que dessa maneira elevassem o nível político do eleitorado. Nem mesmo propostas de cunho reformistas que, nos marcos do capitalismo, dotassem o Estado dos instrumentos institucionais e legais que induzissem o país a enveredar por um caminho de desenvolvimento capitalista de cunho social-democrata, como ocorria e ocorre em vários países.

    Emergência de novos atores sociais e fortalecimento conservador

    Em virtude dessa falta de perspectiva de um projeto de desenvolvimento nacional autônomo, vivemos, nessa fase da vigência da Constituição de 1988, um processo de crises econômicas, políticas e sociais, que caracterizam o período como de certa estagnação econômica, instabilidade social e ascensão ao cenário das disputas políticas eleitorais de setores das camadas sociais conservadoras antes delas ausentes: novos setores do agronegócio, evangélicos, militares, representantes da burocracia estatal, influenciadores digitais etc. 

    Essa emergência, na cena política, de setores que antes – no período de 1930 a 1964 – eram meros coadjuvantes e controlados por elites tradicionais, da agricultura tradicional, da indústria e das finanças, revelou – nas sucessivas eleições que se realizaram após o fim da ditadura até os nossos dias – uma crescente ascensão de um eleitorado conservador e despolitizado, e por isso facilmente manipulável por políticos reacionários e oportunistas.

    Leia também:

    Legislativo executor de Hugo Motta amplia disfuncionalidade do Estado brasileiro

    Crescem os desafios que Governo Lula 3 precisa superar

    Essa rápida e incompleta resenha histórica de nosso processo de delegação de poder, teoricamente pelo povo, aos governantes, ressalta que só nesses últimos 37 anos, tivemos um processo de disputa do poder político, por meio do voto universal em nosso país, de forma continuada e sem bruscas interrupções autoritárias. E esse tipo de processo eleitoral, realizado em um país muito diferente daquele do interregno democrático de 1946-1964, desenvolveu na sociedade uma consciência difusa de que, por meio de eleições, os seus problemas seriam resolvidos. O que, na prática, não tem acontecido, levando a uma frustração dos eleitores. 

    Em paralelo a isso, e com mais efetividade, as várias camadas da sociedade – com algum tipo de participação social e política, igrejas, sindicatos, setores da alta burocracia estatal, como militares e membros do judiciário, associações de segmentos específicos, como dos movimentos contra o racismo, de emancipação feminina, LGBT+ etc. – tomaram consciência de que a disputa de espaços de poder, nos aparatos do Estado, seria um caminho para se fortalecerem e implementarem seus objetivos políticos, de cunho tanto pessoal quanto social. A partir daí, empenharam-se em criar partidos, arrebanhar apoiadores, principalmente por meios assistencialistas e demagógicos, junto a esse eleitorado que durante toda a vida esteve ausente de uma atuação política consciente e crítica. E, com base em manipulação dos mais variados tipos, conseguiram e continuam conseguindo capturar a confiança política das amplas camadas do povo, que, por razões históricas aqui sinteticamente expostas, não desenvolveram uma consciência crítica progressista, tornando-se presas fáceis dessa manipulação. Manipulação essa que, se sempre existiu, assume hoje sofisticadas formas de comunicação digital que a potencializam. 

    Ou seja, o que procuro levantar, para a reflexão dos ativistas e militantes progressistas e de esquerda, é que, no que pese termos um povo lutador e resistente às variadas formas de opressão das elites nacionais, o nível de consciência política progressista, da maioria da sociedade brasileira, ainda é muito limitada, e uma das causas destacadas dessa limitação é a história política de nosso país, onde as elites sempre mantiveram o povo afastado dos processos políticos, manipulando-o.

    Cremos que essa situação, da inexperiência histórica de participação política de nosso povo, está na raiz do nosso atual estado de dificuldades de atingirmos os amplos setores populares com mensagens de cunho progressista. E que esse longo/curto período (1988-2025) de práticas continuadas de mecanismos eleitorais, como forma de ascensão ao poder, despertou, em setores que antes não valorizavam a disputa eleitoral, a passarem a fazê-lo de forma intensa. E, dessa maneira, jogar um papel político de destaque, principalmente nos poderes legislativos. Os setores evangélicos, por exemplo, cresceram a ponto de contarem com uma bancada parlamentar federal capaz de, em certo sentido, ditar a pauta dos trabalhos legislativos na Câmara dos Deputados. Sem falar de outras bancadas temáticas como a do agronegócio, a BBB (da Bala, do Boi e da Bíblia) etc.

    Desafio estratégico da esquerda: reconstruir a consciência política

    Diante desse quadro, está para nós, do campo progressista e de esquerda, o desafio de desenvolvermos um amplo movimento de conscientização política das camadas populares da nação, com o qual se possa, de forma atualizada, retomar as experiências que nesse sentido ocorreram, nos anos 1950 e 1960 do século passado, onde campanhas de alfabetização por meio do “método Paulo Freire”, pelos CPCs (Centros Popular de Cultura), de divulgação cultural e educação política como a UNE volante, de alfabetização de camponeses por meio de “Escolas Radiofônicas” do Movimento de Educação de Base (MEB), patrocinadas pela Igreja Católica, que desempenharam esse papel com relativo sucesso.

    A situação de crise política continuada que vivemos, com um instável relacionamento entre os principais poderes da República, na qual se destacam o relativo esvaziamento do poder executivo, o empoderamento de um poder legislativo – dominado por forças de direita e extrema-direita – e um poder judiciário altamente politizado, tem nos levado a uma situação política em que o avanço das pautas de conteúdo progressista, que se proponham a reformas estruturais do Estado nacional, tem encontrado muitas dificuldades, e mesmo impossibilitado de ser implementado. Com isso, patinamos no processo de fazer avançar a construção de um Brasil soberano e socialmente mais justo.

    Ronald Freitas é membro do Comitê Central do PCdoB e coordenador do Grupo de Pesquisa Estado e Conflitos Institucionais no Brasil da Grabois.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da Fundação Maurício Grabois.

    Notícias Relacionadas