Conheço Luiz Eduardo Soares desde os anos 1970 e essa convivência longa com sua obra e sua presença intelectual nunca deixou de me surpreender. Sempre admirei seu pensamento, sua ação, sua docência e sua militância. Mas somente agora, depois da leitura de Escolha sua Distopia ou pense pelo avesso, percebo que nossas afinidades são muito maiores do que eu imaginava. Há algo de reencontro nesse livro, como se ele abrisse um espelho que me permite reconhecer gestos, inquietações e desconfianças que também são minhas. Especialmente no modo como revisita as jornadas de 2013. Eu próprio repudio as interpretações produzidas pelo PT e pelos intelectuais vinculados ao partido. Aquelas leituras que reduziram Junho à manipulação ou desorientação me soam sempre insuficientes e autorreferidas. Estou muito mais em sintonia com Idelber Avelar e Pablo Ortellado na disposição de enxergar naquele período um terremoto subjetivo e político que nenhum aparelho partidário soube compreender. Nesse ponto, Luiz Eduardo não apenas acerta. Ele ilumina.
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O livro começa perguntando onde estamos e como chegamos aqui. Essa pergunta atravessa o país como flecha. Ele volta a 2013 não como quem procura culpados, mas como quem busca sentido. As ruas cheias, as demandas múltiplas, os corpos misturados, as vozes desencontradas, tudo isso aparece no texto como um campo pulsante. As placas tectônicas da sociedade brasileira se moveram naquele junho. Moveram e deixaram rachaduras profundas. Soares descreve essas fendas com a sensibilidade do antropólogo, com a precisão do sociólogo e com a inquietação ética de quem sempre esteve implicado com a vida pública. Sua leitura mostra que 2013 abriu tanto a porta para exigências democráticas radicais quanto para os medos e ressentimentos que alimentariam o fascismo à brasileira nos anos seguintes. Essa ambivalência se aproxima muito da minha própria leitura. Talvez porque eu também tenha visto ali o conflito entre novos sujeitos e velhas estruturas, entre vitalidade e recusa, entre desejo e frustração.
No capítulo sobre a crise da representação, o livro desmonta a ideia de que a democracia brasileira teria simplesmente sofrido um acidente. Soares mostra como o figurino institucional já não cabia no corpo social que crescia em ambições, desigualdades e demandas. Partidos, sindicatos, parlamentos, tudo parecia limitado diante do pulsar das ruas e das redes. Essa percepção também me acompanha desde então. Sempre entendi aquela crise como ruptura e não como desvio. Era como se a política formal insistisse em olhar o mundo por lentes embaçadas. O livro amplia essa percepção e mostra como a sensação de abandono produziu ao mesmo tempo desejo de mais democracia e tentação punitiva. Esse duplo movimento é central para entender a ascensão da extrema direita, mas também para compreender a profunda desconfiança que os setores populares passaram a nutrir em relação a qualquer promessa institucional.
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Quando Luiz Eduardo analisa o universo pentecostal e neopentecostal, encontro pontos de contato e divergência. Ele mostra com precisão sociológica como a teologia da prosperidade se articula ao neoliberalismo, à meritocracia e ao culto do esforço individual. Essa crítica é sólida, necessária e contundente. Mas aqui preciso situar minha posição. Há décadas observo que os pentecostais e neopentecostais oferecem acolhimento concreto às populações vulneráveis das favelas, dos subúrbios e das periferias. Eles não chegam com promessas abstratas. Chegam com comida, ouvido, afeto, consolo, redes de apoio. A presença dessas igrejas, somada às pastorais sociais da Igreja Católica, às pastorais de rua, carcerárias, de moradia e de favelas, forma uma teia protetora para os desvalidos, os descartáveis, os silenciados. Para aqueles que foram esmagados por um país montado sobre elitismo patrimonialista, racismo estrutural e machismo cotidiano. Os corpos de pretos, pardos, mestiços, nordestinos e refugiados de guerras, conflitos e colapsos ambientais carregam a marca permanente do que chamo de escravismo como persistência histórica. No Rio e em São Paulo, essa permanência é gritante. As igrejas, com todos os seus limites, funcionam como abrigos. Essa minha observação não nega a crítica do livro. Apenas a complementa. Luiz Eduardo sabe disso. Ele não desconhece esse acolhimento. Mas insiste, com razão, que há uma articulação perigosa quando fé, mercado e autoritarismo se misturam. A sociologia e a política lhe dão razão. Mesmo que a vida concreta exija de nós um olhar mais matizado.
O livro retoma a Lava Jato como parte de uma narrativa moral que destruiu proteções institucionais e pavimentou o golpe parlamentar. Aqui, sinto a força do analista político que ele jamais deixou de ser. O espetáculo jurídico, o messianismo dos procuradores, a busca de purificação nacional, a fabricação de heróis midiáticos, tudo isso é dissecação necessária para entender como se armou a ponte para o bolsonarismo. Essa ponte não era apenas ideológica. Era afetiva. Era moralizante. Era vingativa. E abria espaço para um personagem político que transformou ressentimento em método.
No capítulo sobre o bolsonarismo, a descrição é rigorosa e incômoda. O fascismo brasileiro, com suas particularidades, aparece como continuidade histórica e não como aberração. As raízes escravistas, a ditadura militar, a cultura da violência, o ódio às minorias, a erotização das armas, tudo se combina num mesmo caldo. O livro não espetaculariza. Ele organiza. Com frieza, com calma, com profundidade. Ler esse trecho é como atravessar um corredor estreito onde as paredes repetem as vozes sombrias da política recente. Soares conhece esse terreno e sabe reconhecer seus códigos.
Nos capítulos sobre milícias, violência policial e encarceramento, o livro mostra a continuidade entre coronelismos antigos e máfias contemporâneas, entre violência institucional e guerra às drogas, entre desigualdade e punição. A máquina penal aparece como engrenagem seletiva que administra corpos indesejados. Aqui, sinto novamente o vigor ético de Luiz Eduardo. Ele descreve sem complacência um sistema que transforma jovens negros em alvos fáceis. A distopia, nesses capítulos, não é imaginação futurista. É o cotidiano brasileiro. É a vida de muitos que nunca conheceram o Estado a não ser pela força brutal de suas armas.
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A metáfora da visão de túnel, tomada do treinamento policial, funciona como síntese do país. Ver apenas a ameaça é perder o mundo. E perder o mundo é perder a ética. Quando o livro aproxima essa metáfora de teorias políticas e da crítica ao capitalismo, revela a profundidade da crise moral brasileira. A violência deixa de ser solução e passa a ser sintoma de uma sociedade enferma.
Nas partes finais, dedicadas aos direitos humanos, ao direito, à psicanálise e ao perdão, o livro opera o gesto mais bonito. Ele tenta imaginar outra República. Uma República que renuncie à amnésia. Uma República capaz de olhar seus traumas. Uma República que aceite sua história sem fugir dela. Luiz Eduardo sabe que o Brasil recalca suas violências. E sabe que esse recalque retorna como autoritarismo. O perdão, aqui, não é sentimentalismo. É coragem. É método político. É possibilidade de reconstrução.
Ao terminar o livro, percebo o quanto minha trajetória intelectual se aproxima da dele, embora tenhamos caminhado por rotas distintas. As jornadas de 2013, o espanto com a cegueira institucional, o incômodo com leituras dogmáticas, a recusa do punitivismo, a defesa radical da vida, tudo isso nos aproximou mais do que eu imaginava. Escolha sua Distopia ou pense pelo avesso é livro que reorganiza pensamentos e reabre feridas. É também livro que nos lembra que a distopia não é destino, mas escolha política. E que pensá-la pelo avesso é abrir caminho para imaginar outra forma de existir no Brasil.
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Título: Escolha sua distopia (ou pense pelo avesso)
Autor: Luiz Eduardo Soares
Editora: Edições 70 (Almedina)
Páginas: 336
Ano/Edição: 2025 – 1ª edição
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Paulo Baía é sociólogo, cientista político, ensaísta e professor da UFRJ.
*Texto publicado originalmente no site Agenda do Poder, em 22/11/2025.
*Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.