Morreu na última quinta-feira (4) o militante político e pesquisador estadunidense Asad Haider, filho de imigrantes paquistaneses e autor de Armadilha da Identidade: raça e classe nos dias de hoje (Veneta, 2019) – livro onde critica com rigor científico a política identitária a partir da teoria anti-racista revolucionária, resultado de sua pesquisa sobre intervenções teóricas dos movimentos anti-racistas nos Estados Unidos.
Haider fez esse estudo em paralelo à sua atuação como editor da revista política Viewpoint, da qual foi um dos fundadores, e da sua tese de doutorado Party and Strategy in Postwar European Marxist Theory (Partido e Estratégia na Teoria Marxista Europeia do Pós-guerra), sobre desenvolvimentos do marxismo a partir do estudo comparativo dos movimentos sociais na França e na Itália nas décadas de 1960 e 1970.
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Formado em Crítica e Teoria Cultural pela Cornell University, Haider concluiu seu doutorado no Departamento de História da Consciência da UC Santa Cruz na Califórnia em 2018. Foi bolsista de pós-doutorado Mellon no Departamento de Filosofia da Penn State University e, em seguida, professor assistente visitante de Filosofia na New School for Social Research.
“A perda precoce de Asad Haider é a perda de uma potente voz que oxigenava um debate carcomido pelo voluntarismo epistêmico dominado pelo horizonte de competição no interior da forma de gestão atual. É a perda de um crítico que sabia que militância sem uma teoria profunda é só uma forma de consolidação de rebanho em torno de um pastor ou de uma ideia romanesca de limpeza étnica. E, sobretudo, é a perda de uma voz corajosa que, diante da violência que avança no mundo atual, não tinha tempo para ter medo”, escreveu o psicanalista Douglas Barros em homenagem no site da editora Veneta, que publicou Haider no Brasil.
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“Com rigor, clareza e uma extraordinária firmeza, Asad Haider recusava reducionismos. Sua metodologia era um exercício constante de ligar o universal ao particular, a história à carne viva da luta em todas as suas intersecções e conexões”, escreveu para o site A Terra é Redonda Alexandre Linares, jornalista membro da direção do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, após saber da notícia da morte do pesquisador por meio de Leo Vinicius, seu tradutor para o português.
Em 2021, Asad Haider concedeu uma entrevista à TV Grabois, conduzida pela deputada estadual Dani Balbi (PCdoB-RJ), onde aborda os temas trabalhados no livro a partir de sua pesquisa.
Confira os principais trechos da entrevista:
Um dos argumentos centrais que você desenvolve no livro é que a identidade equivocada molda precisamente uma mentalidade liberal em termos de proteção de grupos que compartilham uma identidade comum, reivindicando participação em uma estrutura social injusta. Poderia explicar essa conexão entre liberalismo e movimentos de identidade hoje em dia?
O liberalismo, em sentido amplo — englobando o liberalismo clássico e o neoliberalismo contemporâneo —, reduz a política à incorporação na sociedade existente e à exigência de reconhecimento. Nesse sentido, é uma forma de ver as pessoas como vítimas que precisam ser protegidas.
Toda a concepção de direitos liberais é sobre indivíduos que podem ser prejudicados de alguma forma e requerem a proteção do Estado. Quando são feridos, eles podem exigir reconhecimento do Estado e da sociedade em geral. Mas essa é uma maneira de pensar a política que não se refere à capacidade das pessoas de mudar sua realidade, de se autogovernar ou de controlar suas próprias vidas. Essa possibilidade é excluída na concepção liberal. Assim, mesmo em uma linguagem oposicionista relacionada à identidade, vemos essa lógica liberal sendo reproduzida.
Quando as pessoas exigem reconhecimento para suas categorias de identidade — as identidades nas quais foram classificadas — e quando identificam a política com o fato de terem sido feridas de alguma forma e de que o Estado deve reconhecer e protegê-las, é assim que a política é essencialmente apagada.
Como se dá essa relação íntima entre capitalismo, racismo, opressão de gênero e misoginia? Eu penso que a chave para entender essa relação está justamente no processo de dominação capitalista. Poderia nos explicar isso?
Há muitas posições diferentes sobre a relação entre racismo e capitalismo. Uma posição é que o capitalismo é sobre mercados e classe, e o racismo é essencialmente acidental ou secundário. Poderíamos ter um capitalismo sem racismo. Outra posição é dizer que o racismo é um aspecto necessário do capitalismo e que o capitalismo não pode existir sem o racismo.
Eu não concordo com nenhuma dessas posições, pois acho que a maneira como olhamos para a história deve ser através da observação, e não de modelos abstratos. Temos que olhar para o processo histórico real.
De certa forma, é quase acidental que o racismo tenha sido tão fundamental para a história do capitalismo, porque aconteceu que o capitalismo europeu veio a dominar o resto do mundo. Ao fazer isso, ele se depara com essas categorias raciais, que, como eu disse, são categorias falsas. Mas elas estão associadas a essa relação de dominação que surgiu devido ao domínio capitalista, à exploração capitalista das grandes populações do mundo. Neste sentido, o que era uma espécie de acidente histórico torna-se essencial. Torna-se uma parte necessária do capitalismo tal como ele realmente existe.
Isso é muito importante, pois então você pode entender por que o racismo esteve presente na história do capitalismo desde o início e tem sido tão central. Tem sido uma forma de controle social central para o capitalismo. Mas isso não se deve à existência real de raças, nem a algum tipo de instinto de racismo que faça as pessoas odiarem quem não se parece com elas. É preciso olhar para os processos históricos que realmente produziram essas formas de comportamento.
Por que elas se tornam sistemáticas? Não é porque todos têm alguma intolerância básica ou porque os brancos estão naturalmente inclinados a dominar os outros. Mesmo que você esteja criticando os brancos, isso ainda é aderir à ideia de raça e permitir que o racismo molde suas ideias.
E quanto à opressão de gênero? Acredito que ela serviu ao capitalismo da forma como existe hoje, impedindo a nós mulheres de participar da esfera pública e das questões políticas, e oprimindo e explorando nossa força de trabalho no ambiente doméstico. O que você pensa sobre isso?
Como todos sabemos, a opressão de gênero não é exclusiva do capitalismo. Certamente existiu em outras formas de vida social em sociedades que precederam o capitalismo e frequentemente era muito brutal. Portanto, a questão real é: por que ela persiste no capitalismo? Como ela assume uma forma particular no capitalismo?
Como é que o gênero se torna parte de uma divisão do trabalho e da reprodução das condições de trabalho? A opressão de gênero torna-se parte da base para a existência de um mercado de trabalho e é reproduzida de acordo com a lógica do mercado e de acordo com as demandas da acumulação de capital.
Podemos ter uma perspectiva mais ampla sobre formas de dominação que não são necessariamente capitalistas. Ainda temos que identificá-las como formas de dominação que devem ser combatidas em seus próprios termos. Mas, em qualquer sociedade, essas formas de dominação assumem formas particulares. E se você quiser atacá-las, é melhor compreendê-las. Você deve entender como elas realmente existem, em vez de falar delas em termos inteiramente gerais que não abordam como elas continuam a existir no mundo em que vivemos.
Assista a entrevista completa: