Um dos conceitos mais controvertidos do campo do socialismo no século XX foi o dos Três Mundos, desenvolvido por Mao Zedong e expresso por Deng Xiaoping em discurso pronunciado na Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de abril de 1974, quando este chefiava a delegação chinesa. Embora não exista obra sistemática dedicada especificamente a essa formulação, apresentada à época com o status de teoria, seus fundamentos encontram-se em entrevistas de Mao Zedong, bem como em documentos e textos partidários do Partido Comunista da China.
Formulação da Teoria dos Três Mundos
Segundo essa concepção, o Primeiro Mundo seria constituído pelas duas grandes potências econômicas e militares – os Estados Unidos e a União Soviética; o Segundo Mundo, pelas potências capitalistas desenvolvidas da Europa e pelo Japão; e o Terceiro Mundo, pela esmagadora maioria dos países em desenvolvimento ou de desenvolvimento atrasado, cujas soberanias estariam ameaçadas pela ação das potências pertencentes às duas primeiras categorias. A China se incluía, portanto, no Terceiro Mundo, ao lado dos países da Ásia, África e América Latina.
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No interior do Primeiro Mundo, entretanto, a formulação chinesa estabelecia uma distinção qualitativa. Considerava-se que a União Soviética não apenas havia se transformado em uma superpotência imperialista que ameaçava o mundo tanto quanto os Estados Unidos, como também se tornara “a fonte mais perigosa de uma nova guerra mundial”. Por essa razão, os documentos chineses passam a caracterizar a União Soviética (URSS) como social-imperialista, isto é, socialista no discurso e imperialista na prática. Por essa leitura, a principal ameaça à humanidade não residiria no imperialismo clássico norte-americano, mas no expansionismo soviético.
Reorientação da política externa chinesa na Guerra Fria
Esta concepção foi sendo elaborada ao longo dos anos 1960 e ganhou formulação explícita na década seguinte à visita de Henry Kissinger e, posteriormente, do presidente Richard Nixon à China, entre 1971 e 1972. Esses encontros marcaram uma inflexão na política externa chinesa, aproximando a República Popular da China dos Estados Unidos em um contexto da Guerra Fria, gerando profunda tensão com a União Soviética. Com o apoio estadunidense, a China ingressou nas Nações Unidas como legítima representante do país, ocupando a cadeira antes destinada a Taiwan. No Comunicado de Xangai, de 1972, os dirigentes da China e dos EUA reconheceram suas profundas divergências políticas e econômicas, mas sinalizaram a disposição para o distensionamento, a realização de consultas regulares e o estímulo ao desenvolvimento progressivo das relações comerciais.
Impacto da teoria no movimento comunista internacional
A Teoria dos Três Mundos repercutiu amplamente no movimento comunista internacional e foi objeto de duras críticas. No Brasil, destacou-se a posição de João Amazonas, dirigente do Partido Comunista do Brasil, que publicou, em janeiro de 1981, o livro O revisionismo chinês de Mao Tsé-tung. Na obra, Amazonas denunciava o que considerava o caráter antirrevolucionário da teoria, acusando-a de relativizar o papel do imperialismo norte-americano, promover a conciliação com os Estados Unidos e contribuir para uma ruptura no movimento comunista internacional.
Para compreender o surgimento e o impacto dessa formulação, é indispensável considerar seus antecedentes históricos, em particular a mudança da orientação política do socialismo soviético a partir do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), realizado em 1956. Nesse Congresso, Nikita Kruschev, sucessor de Stálin na secretária-geral do partido, denunciou o culto à personalidade, responsabilizando Stálin por supostas práticas ilegais, repressões, expurgos e violações da legalidade socialista. Essas críticas, dirigidas a um dirigente falecido desde 1953, tiveram grande impacto no movimento comunista mundial.
Associadas à crítica a Stálin, emergiram novas formulações estratégicas e teóricas, como a ideia da diminuição da luta de classes no socialismo com a socialização dos meios de produção; a noção da transição pacífica por via parlamentar do capitalismo ao socialismo; e a priorização da estabilidade internacional em detrimento das lutas de libertação nacional, expressa pela política da coexistência pacífica. Admitia-se, ainda, que a economia socialista poderia competir com o capitalismo principalmente por meios econômicos, científicos e diplomáticos – concepções que, para amplos setores do movimento comunista, representavam uma ruptura com os princípios fundamentais do marxismo-leninismo.
A liderança chinesa interpretou o processo de “desestalinização” como um abandono da ditadura do proletariado e uma aproximação ao reformismo, justamente no momento em que o socialismo chinês dava os seus primeiros passos. A vitória sobre a ocupação japonesa, em 1945, alcançada com o apoio do Exército Vermelho ao custo de cerca de 20 milhões de vidas chinesas, foi seguida pela guerra civil que culminou na proclamação da República Popular da China, em 1949. Os primeiros anos do novo governo revolucionário foram marcados por profundas reformas estruturais, como a coletivização da terra e o fortalecimento da indústria pesada. O primeiro plano quinquenal, iniciado em 1953 com assistência soviética, lançou as bases para o desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo em que se preparava o Grande Salto Adiante, concebido como uma tentativa de acelerar a modernização do país.
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Neste contexto, as deliberações do XX Congresso do PCUS foram interpretadas como uma concessão ideológica ao anticomunismo. O ataque à liderança de Stálin era visto como um golpe contra o movimento comunista internacional e um fator de enfraquecimento do socialismo em escala global. Abriu-se, assim, uma divergência profunda que não se resumiu às relações sino-soviéticas. No Brasil, por exemplo, essas divergências ideológicas estiveram no cerne da crise que levou à criação do Partido Comunista Brasileiro e à reconstrução do Partido Comunista do Brasil, em 1962.
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A ruptura entre a China e a União Soviética aprofundou-se ao longo dos anos 1960, com a suspensão da cooperação nos planos quinquenais, o rompimento da colaboração na área nuclear, divergências quanto à geopolítica asiática e, finalmente, confrontos armados na fronteira sino-soviética, em 1969. Essa relação só seria normalizada em maio de 1989, com a visita de Mikhail Gorbachev à China, poucos anos antes do colapso da experiência soviética. O Comunicado Conjunto Sino-Soviético, então divulgado, formalizou a normalização das relações diplomáticas entre os dois países.
Superação da teoria e a inflexão pragmática chinesa
Naquela ocasião, Deng Xiaoping defendeu o encerramento das disputas ideológicas do passado, argumentando que elas deveriam ser deixadas de lado após décadas de ruptura. Na verdade, nos anos anteriores, a política externa chinesa já havia assumido um perfil mais pragmático, abandonando a tese de que a União Soviética constituía o inimigo principal e adotado princípios de independência, não alinhamento, e o conceito das Cinco Coexistências Pacíficas.
Essas mudanças tiveram como marcos decisivos a aprovação da política de Abertura e Reforma, na 3ª Plenária do 11º Comitê Central, em 1978, e a formulação do conceito de “socialismo com características chinesas”, consagrado no XII Congresso, em 1982.
A teoria dos Três Mundos, longe de constituir apenas uma formulação circunstancial da política externa chinesa, expressou as tensões, contradições e disputas estratégicas no interior do campo socialista durante a Guerra Fria. Sua emergência esteve profundamente vinculada ao rompimento sino-soviético, às críticas chinesas ao revisionismo soviético e à busca de autonomia da revolução chinesa em um sistema internacional dominado por grandes potências. Ao mesmo tempo, seus limites teóricos e políticos revelaram-se evidentes, tanto pela relativização do papel do imperialismo norte-americano quanto pelas fraturas que provocou no movimento comunista internacional. A posterior inflexão pragmática da política chinesa, consagrada com a Abertura e Reforma e o conceito de socialismo com características chinesas, indica que a própria experiência histórica levou a liderança chinesa a superar aquela formulação, substituindo-a por uma estratégia centrada no desenvolvimento nacional, na soberania e na inserção internacional independente.
Referências
DENG XIAOPING. Discurso do Presidente da Delegação da República Popular da China, Deng Xiaoping, na Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU. Abril, 1974.
DENG XIAOPING. Vamos deixar o passado para trás e abrir uma nova era. Maio de 1989.
COMUNICADO DE XANGAI. Comunicado Conjunto Entre os EUA e a China. Fevereiro, 1972.
DIÁRIO DO POVO. A Teoria da Diferenciação dos Três Mundos do Presidente Mao é uma importante contribuição para o marxismo-leninismo. Fevereiro, março, 1974.
Nilton Vasconcelos é doutor em Administração Pública. Secretário do Trabalho e Esporte do Estado da Bahia (2007-2014). É diretor de Relações Institucionais do Centro de Estudos Avançados Brasil China (Cebrach) e membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da Fundação Maurício Grabois.
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.