Ofuscada pela batalha política da divisão de cargos do primeiro escalão, a sucessão de Paulo Vanucchi, secretário especial de Direitos Humanos da Presidência da República, irá definir como a presidente eleita Dilma Rousseff se comportará diante de uma crise anunciada. Na primeira semana de dezembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos deverá condenar o Brasil por conta da detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do PCdoB e camponeses da região do Araguaia, por agentes do Exército brasileiro, entre 1972 e 1975, com o objetivo de erradicar os focos de guerrilha lá montados durante a ditadura militar. O Brasil é o único país da América Latina que, baseado numa Lei de Anistia prestes a se tornar um estorvo jurídico internacional, jamais julgou os criminosos que mataram, torturaram e deram sumiço a opositores políticos durante o regime dos generais (1964-1985).

Até agora, não se sabe qual será o modelo de política de Dilma Rousseff para a área de Direitos Humanos. Dentro da equipe de transição, uma série de nomes começou a circular, ainda de forma incipiente, até porque a decisão será tomada por ela e pelo futuro ministro da Justiça, provavelmente, o deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP). Isso porque, embora a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) seja subordinada à Presidência, esta deve estar em sintonia com a Comissão de Anistia, subordinada à pasta da Justiça. As expectativas dos movimentos de Direitos Humanos e de amigos e familiares de mortos e desaparecidos políticos em torno do tema crescem com a hesitação da presidente eleita em falar sobre ele. A provável decisão desfavorável ao Brasil na Corte Interamericana, sediada na Costa Rica, contudo, deverá mudar esse quadro.

Entre os nomes mais cotados para o cargo de Vanucchi, que anunciou publicamente a decisão de não continuar na SEDH, estão o do advogado Paulo Abrão, atual presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, e da deputada Luiz Erundina (PSB-SP), embora haja pelo menos mais meia dúzia de pretendentes. Três delas são deputadas do PT: Maria do Rosário (RS), Erika Kokay (DF) e Irini Lopes (ES). Também o ex-deputado Orlando Fantazzini (PPS), responsável pela campanha de luta contra a baixaria na televisão brasileira, teve o nome aventado para o cargo. Gilberto Carvalho, chefe de gabinete de Lula, é outro candidato, mas apenas porque o presidente quer mantê-lo no governo Dilma. Nenhum deles, no entanto, conseguiu, até agora, o nível de apoio institucional e político conquistado por Abrão.

O principal padrinho da candidatura de Paulo Abrão para a SEDH é o ex-ministro da Justiça Tarso Genro, do PT, governador eleito do Rio Grande do Sul. Foi Genro que levou, em 2008, Abrão para a Comissão da Anistia, até então um órgão burocrático voltado exclusivamente à análise de pedidos de indenização por parte de perseguidos da ditadura e de parentes de desaparecidos políticos. Em pouco mais de dois anos, ele organizou 47 caravanas a partir das quais pôde realizar investigação de casos e julgamento de demandas de anistia em comunidades distantes. Apenas no Araguaia, em meio à resistência dos comandantes militares e do Ministério da Defesa, ele esteve três vezes com os 22 conselheiros da comissão.

Apesar disso, Paulo Abrão, 33 anos, não é filiado ao partido, mas um homem da academia. Doutor em Direito e especialista em Direitos Humanos, é professor da PUC do Rio Grande do Sul e da Universidade Católica do Distrito Federal. Na semana passada, as principais entidades ligadas à luta por cidadania e direitos humanos do país decidiram lançar o nome dele, formalmente, para substituir o secretário Paulo Vanucchi. Na linha de frente desta ação estão o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, a mais antiga entidade do gênero no Brasil, e o Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo. Um abaixo assinado elaborado pelas duas instituições está correndo o País para, até o fim do mês, ser encaminhado a Dilma Rousseff.

“Não temos outro caminho senão o de dar continuidade ao trabalho de Paulo Vanucchi”, explica Jair Kirschke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, entusiasta da candidatura de Paulo Abrão à SEDH. “Temos que avançar e acabar com a impunidade relativa aos crimes de lesa humanidade cometidos na ditadura”, afirma. Refere-se, justamente, à tortura e assassinatos sistemáticos cometidos também no Araguaia, alvo do julgamento a ser realizado, daqui a um mês, na Corte Interamericana de Direitos Humanos. “Precisamos focar no tema da tortura, e na apenas a que ocorreu na ditadura”, avalia Marcelo Zelic, do Tortura Nunca Mais de São Paulo. “Em oito anos de governo Lula, não houve uma só condenação nesse sentido”, lembra.

O sujeito oculto por trás da escolha de Dilma Rousseff, no entanto, é a terceira edição do polêmico Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), lançada em 21 de dezembro de 2009. O texto suscitou todo tipo de reação, sobretudo nos setores mais conservadores e reacionários da igreja católica, dos ruralistas, da caserna e da mídia. O epicentro da reação, no entanto, foi no Ministério da Defesa, comandado por Nelson Jobim, do PMDB. Por meio dele, os comandantes das forças armadas ameaçaram uma renúncia coletiva caso fosse mesmo criada a Comissão da Verdade, idealizada para investigar a fundo os crimes da ditadura, organizar arquivos e nomear torturadores e assassinos, não apenas os militares. Em ano eleitoral, Lula cedeu e ordenou a revisão do texto. Vanucchi ameaçou se demitir, mas foi contido pelo presidente. A tensão no setor, no entanto, só fez crescer, desde então.

A indicação de Paulo Abrão, portanto, é um voto a favor da continuidade e do aperfeiçoamento do PNDH-3. As demais indicações, embora sejam baseadas em nomes ligados à luta dos direitos humanos e defesa de cidadania, obedecem basicamente à regra geral de ocupação de cargos levada a cabo pelo PT e demais partidos aliados durante o período de transição. Implicitamente, contudo, há uma discussão interna sobre qual deve ser, de fato, a posição do governo Dilma Rousseff em relação ao tema. O nome de Gilberto Carvalho, por exemplo, é uma clara indicação contra os defensores da briga pelo PNDH-3. Carvalho faz parte do grupo petista que viu o texto como um estorvo para a campanha eleitoral de Dilma, além de um potencial pepino para o futuro governo da presidente eleita.

A deputada Maria do Rosário faz parte e tem apoio do grupo Movimento PT, corrente da qual faz parte a senadora eleita Marta Suplicy, de São Paulo. A favor dela, o fato de que, uma vez no governo, vai abrir vaga na Câmara para o suplente Paulo Ferreira, tesoureiro nacional do PT. Ela é um nome ligado à defesa de direitos da criança e do adolescente, assim como o de outra candidata à SEDH, a deputada recém-eleita Érika Kokay, de Brasília. Irini Lopes, do PT do Espírito Santo, tem apoio apenas do grupo Articulação de Esquerda, uma corrente pequena do partido, sem muito poder, cujo único cargo no governo federal é a Secretaria Nacional da Pesca. No caso de Luiza Erundina, a quarta mulher cotada para o cargo, há um entrave político, porque o PSB ainda analisa o tamanho da participação do partido no governo Dilma.

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Fonte: CartaCapital